Crônica | Olha o trem!

O trem de minério de ferro, que passa apressado pelas cidades históricas mineiras, simboliza um modelo econômico que tem “atropelado” os direitos da  população local: 12 das 24 barragens que cercam Congonhas tem alto dano potencial associado e poderiam destruir bairros inteiros em caso de rompimento

Trem carregado de minério em Congonhas (MG). Foto: Divulgação

Tudo preparado para o seminário do programa municipal de segurança de barragem na antiga estação do município de Congonhas (MG): gerador à entrada para se prevenirem da costumeira queda de energia, cadeiras espalhadas sob uma tenda, sistema de som montado, dois telões enormes e equipe de recepção com riso fácil. Funcionários da empresa andam de um lado para outro à espera dos participantes, que não chegam, com exceção de gatos pingados. Iniciam, assim mesmo, o ato pouco depois da hora marcada, pois, no fundo, o que conta é a foto e a formalidade.

A Defesa Civil do município faz uma breve abertura, lembrando que o evento tem o patrocínio das mineradoras Vale, CSN e Gerdau, e passa o microfone à palestrante, a qual, depois de apresentação de praxe, revela seus números. Os primeiros tentam transmitir um tom de alívio, ainda que talvez não reflitam a realidade dos fatos vistos de outra perspectiva. Os dados se referem à quantidade de barragens com interferência em Congonhas. Segundo a porta-voz, o número caiu de 24 no ano de 2022 para 15 em 2024.  Nem Deus sabe quais procedimentos foram feitos nessas que não contam mais e se isso realmente aumentou a segurança do povo, pois informação é algo caro à empresa, guardada sob sua batuta, usada a favor de seu interesse. Os outros números se constituem. Todos numa fonte inesgotável de insegurança e adoecimento sem perspectiva de solução eficaz.

São 12 mil pessoas, 9 mil imóveis, 36 bairros na área de auto-salvamento em Congonhas. O eufemismo indica que, em caso de rompimento, a pessoa precisa ter a condição de fugir, sozinha, da morte. Como isso será possível?

Barragem Casa de Pedra está, da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), fica a cerca de 300 metros de bairros residenciais de Congonhas (MG). Foto: Joka Madruga

Embora o tempo médio, em teoria, seja de 30 minutos para que a lama avance sobre a cidade, esse intervalo chega a 8 segundos no caso de bairros de Congonhas que estão a 300 metros da barragem Casa de Pedra. Que equipamentos seriam necessários para uma empreitada tão sinistra? Como tanta gente poderia se salvar em tão pouco tempo? Essas perguntas ficam sem respostas no império do cifrão, o que torna inócuo qualquer simulado.

No meio da apresentação, o trem berra e, em poucos instantes, passa rente à estação, com trepidação e barulho intensos, o que leva a interrupção da fala até aquela coisa doida sumir na noite. ‘Vamos esperar o trem!’. Ele sequer abana o rabo e sua longa cauda passa chicoteando à moda do ‘café com pão, manteiga não’, totalmente naturalizado, naquela monotonia misturada à escuridão dos pensamentos nessa fumaça densa da conjuntura atual.

‘Vamos esperar o trem!’. O capital tem precedência, embora seja o trabalho que gere toda a riqueza do mundo. Os bens naturais pertencem ao povo, mas são diuturnamente surrupiados, dentro e fora da lei.  Difícil compreender um planeta onde tudo tem limite – inclusive a própria vida -, apenas esse troço medonho de carga da ganância corta as cidades ao meio e segue triunfante eternidade afora só porque é de ferro.


*Padre Antônio Claret, ligado à Arquidiocese de Mariana, defende, desde o início do seu sacerdócio, os direitos da parcela mais oprimida da população. É também coordenador do MAB, em Congonhas, onde atua em comunidades atingidas pelas barragens da região a partir da metodologia das comunidades eclesiais de base.

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