CRÔNICA | A descriação do mundo

Em sua última crônica, Padre Claret denuncia os riscos da mineração que ameaça o vilarejo de Botafogo, comunidade do circuito histórico de Minas Gerais, que protege nascentes da Bacia do Rio das Velhas, reservas de Mata Atlântica e a cultura de diferentes povos tradicionais 

A Marcha de Primeiro de Maio não só celebrou o Dia do Trabalhador, mas se tornou um protesto contra a instalação de atividades de mineradoras na região. Foto: Tiago Fernandes

A exuberância da vegetação da comunidade Bota Fogo, em Ouro Preto (MG), localidade acolhedora da 32ª Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Arquidiocese de Mariana, está ameaçada de extinção pela violência da ganância minerária na região.

Recentemente, a ameaça da mineração está causando grande temor entre os moradores de  comunidades tradicionais, que protegem um acervo natural, patrimonial e arqueológico de grande relevância ao lado de uma unidade de conservação. 

O local, pensado em âmbito global. remete à imagem bíblica da árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 2,1) associada à passagem “Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra” (Gn 1, 28), a qual cria base ideológica ‘sólida’ para o pecado original: a exploração de gente sobre gente e sobre a natureza. O mercado global ganha humor de pessoa e as pessoas se coisificam. Uma ‘descriação’, com domínio caótico criado.

Ambas as passagens emprestam à classe dominante poder ilimitado, sem qualquer tipo de controle; nem por parte da divindade, pois, em última análise, o ‘homem’, um demiurgo, não só constrói seus deuses à sua própria imagem e semelhança, mas se torna deus, conhecedor e definidor do bem e do mal; e porque, também, nenhum limite lhe é posto pelos estados nacionais e governos, independente das cores. Quem dá as cartas é o poder econômico abençoado pela ideologia da dominação apelidada de progresso num mundo em retrocesso.

Todo o orbe da terra, o universo inteiro, as pessoas, as aves, os animais, o ar, tudo lhe beija os pés e passa a girar em torno do sol do capital. Entre os humanos, homens e mulheres, pretos e brancos, nativos e migrantes se tornam servos desse senhorio global. O cifrão é centro das decisões e cada qual vale quanto pesa. Todo vivente e todas as coisas têm preço.

Junto do rei cifrão mora a rainha alienação, que faz o empobrecido gloriar-se de lavar o carro do primo rico, o agregado na fazenda, o operário na empresa, o empobrecido carregador de bancos nas igrejas. Todos alimentam o mesmo sentimento de gratidão a Deus, sem perceberem que seu sangue derramado no trabalho é o combustível do carro, da fazenda, da empresa, das igrejas. Nada a ver com Deus!

Nesse contexto, as teologias da retribuição, da prosperidade e da dominação se complementam, mutuamente, e se constituem em pilares de adestramento da sensibilidade religiosa para compor, eficazmente, o universo integral da exploração.

Ditados populares próprios do senso comum – “sempre foi assim”, “é vontade de Deus”, “dois sacos vazios não param em pé” – ganham status teológico sistematizado, ou seja, também Deus é substituído por um ‘ deus adestrado’, reduzido a instrumento de dominação.

Ganha força a concepção de um deus poderoso do lado dos poderosos. ‘Você, que é da raça divina, pode ser poderoso também, basta juntar-se a nós e, além de riqueza e luxo na terra, ainda salvará sua alma’, bradam os profetas da dominação.

Foto: Clara Lamacié/Diário de Ouro Preto

Aparentemente em três estradas, essas teologias constroem um mesmo caminho em pretensa substituição a Jesus de Nazaré. A teologia da retribuição cimenta a larga estrada da barganha. A teologia da prosperidade abre a porta do empreendedorismo, da expansão econômica e do capital. E a teologia da dominação instiga a sede do poder opressor, que busca apropriar-se dos governos e dos estados nacionais, por eleições ou golpes, instrumentalizados a favor de seus interesses.

Nessa completa inversão da criação, aparecem os sinais evidentes da “descriação” em tempo brevíssimo, se comparado aos bilhões de anos de evolução da natureza até a sua exuberância atual. A botina do capital continua pisando forte o acelerador. Serras imensas são destruídas em alguns meses. A expressão do livro sagrado “que exista a luz’ de dia e de noite lembra a energia enquanto principal elemento da intensificação da exploração pelo processo continuado (ininterrupto), e pela revolução tecnológica que ela possibilita com o consequente aumento da produtividade. A referência da organização da vida não é mais o dia e a noite, e o sangue do operário é arrancado sem lhe deixar marca física, ao menos no momento.

Assim a humanidade se orgulha de sair das trevas do domínio da natureza e do transcendente para o domínio do capital. O “homem” foge da caverna e acorda no abismo da concentração de renda e dos bens da terra. Uma tragédia social.

Apesar de pequena melhora do Brasil no último período, pois ações do governo federal tiram 20 milhões da insegurança alimentar, 60 milhões de pessoas ainda sobrevivem nessa situação. De cada quatro pessoas, uma não sabe o que vai comer no dia seguinte.

O jogo de luzes dos grandes faróis, satélites, shopping, pisca-piscas de natal, liturgias rendadas, ministros ordenados principescos, a saudade da ditadura e da cristandade, do cheiro tonto das cebolas do Egito; tudo isso embriaga o Povo que, bêbado, se torna presa fácil do sistema dominante até sua completa coisificação; indivíduo passa a acreditar que as coisas-mercadorias são mais belas que os seres vivos.

A criação dos animais, feras e homens estão nessa linha decrescente no processo de completa desumanização num planeta em marcha ré. O homem aparece como o ser que tem o poder infinito (quase) da destruição. A exploração levada à exaustão esgota o suor da classe trabalhadora, e do povo em geral, pelos mais variados mecanismos técnico-ideológicos de aumento de sua intensidade. A chibatada na cabeça dispensa a corrente nos pés, o sistema de homens ‘livres’ que disputam, entre si, empregos por salários sai mais em conta do que a manutenção de senzalas.

Essa mesma exploração esgota os bens naturais e instiga o ódio, a violência, as guerras nas suas mais diferentes formas para “recriação” infinita do sistema de morte, tendo uma eternidade de gato com sete fôlegos. O capitalismo enquanto sistema não morre de velho pela sua capacidade em reinventar-se, principalmente na sua reprodução ideológica no senso comum.

A alegoria bíblica diz que Deus criou o mundo em seis dias e no sétimo dia descansou. Parece não ser o caso agora. Não pode haver descanso de luta no risco da “descriação”.

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