NOTA | Tragédias em MG: o resultado de um modelo que produz destruição e morte

Diante de chuvas intensas no estado, comunidades que vivem no entorno de barragens de água e rejeitos da mineração sofrem com a negligência de grandes empresas que colocam atingidos em situação de extrema vulnerabilidade

Barragem da mina Pau Branco, da Vallourec, em Nova Lima/MG. Foto: Bruno Costalonga Ferrete

Segundo relatório divulgado nesta segunda (10) pela Defesa Civil do estado, desde o início do período chuvoso, em 1º de outubro de 2021, as ocorrências deixaram 3481 pessoas desabrigadas e outras 13.756 desalojadas. Também foram registradas 19 mortes provocadas pelas chuvas. A Defesa Civil informa que os óbitos ocorridos na tragédia de Capitólio não serão incluídos no balanço até que as investigações sejam concluídas.

No domingo (09), segundo a Polícia Rodoviária Federal, havia diversos pontos de interdição na BR 040, BR 381, BR 352, BR 329, BR 262, BR 365, BR 259 e MGC 12, sendo 21 pontos de interdição total e 61 pontos de interdição parcial, entre rodovias estaduais e federais.

O caos ambiental, social e econômico que anualmente provoca tantas vítimas no estado não é algo novo. Não é por acaso que o centro histórico de Mariana, planejado na primeira metade do século XVIII, foi colocado nas partes altas e longe do Rio Carmo. E assim são tantos outros exemplos. O problema das inundações é algo que vem preocupando os responsáveis pelo planejamento urbano desde que as cidades começaram a se desenvolver.

Os crimes agravados pelas condições climáticas adversas, porém, se aprofundam quando o interesse da especulação imobiliária, da mineração, dos empreendimentos de geração de energia, de uma agricultura predatória e de outras inciativas que priorizam o lucro encontram a conivência do governo em diversas instância. Isso acontece quando o poder público negligencia questões ambientais relevantes e posterga o investimento em soluções para problemas tão recorrentes. A situação vivida pelas cidades alagadas em Minas Gerais é agravada pela falta de políticas públicas básicas e de defesa social capazes de garantais moradia, saneamento e obras que evitariam tragédias ambientais.

A culpa não é da chuva. É responsabilidade histórica de quem constrói um modelo de desenvolvimento que produz a morte como resultado corriqueiro. Nas regiões atingidas por barragens, seja por empreendimentos de geração de energia ou armazenamento de água, seja por rompimentos criminosos, o resultado desta tragédia ganha novas amplitudes, danos e prejuízos.

Bacia do rio Jequitinhonha e Pardo

Desde final de dezembro de 2021, quando as chuvas se intensificaram em Minas Gerais, a região semiárida na bacia do Jequitinhonha e do Rio Pardo de Minas – que em geral sofre com a escassez de chuvas – vive grandes transtornos causados pelos alagamentos.

São centenas de famílias que perderam suas casas e sua produção e estão abrigadas em escolas. Em Indaiabira, na região do Rio Pardo, as famílias perderam todos os seus equipamentos de trabalho rural, produção e muitas casas também foram danificadas ou destruídas.

Em Salinas, a água entrou dentro da cidade e várias residências foram alagadas. Em todo Alto Rio Pardo houve muitas perdas com o transbordamento de água das barragens das hidrelétricas Machado, Mineiros e outras.

No Vale do Jequitinhonha, próximo à divisa da Bahia, os reservatórios das usinas hidrelétricas de Irapé e do Setúbal encheram mais do que o normal com as chuvas causando inundações em quase toda a Bacia. Os alagamentos atingiram inclusive, vazanteiros e ilheiros (moradores das ilhas no rio Jequitinhonha) que perderam toda sua produção agrícola, importante fonte de renda da economia local.

Em Salto da Divisa, região atingida pela Usina Hidrelétrica Itapebi, a infiltração do lençol freático tem prejudicado mais de 200 famílias. É importante deixar claro que há uma necessidade de planejamento com a reconstrução do Estado como um todo e assistência técnica rural para as famílias que perderam sua produção. Também é importante realizar uma fiscalização mais rígida nas barragens que estão assoreadas e não conseguem acumular água na época das chuvas. No total, mais de mil famílias foram atingidas e cerca de 300 estão desabrigadas.

Bacia do rio Doce

Desde a noite de sábado (08), a comunidade de Mainart, subdistrito do município de Mariana, sofre com a enchente que tomou a praça da comunidade e invadiu casas. O rio subiu na comunidade após o comunicado da empresa Maynart Energética, integrante do grupo Companhia Energética Integrada (CEI), de que abriria a válvula de uma de suas barragens localizadas acima da comunidade. A localidade está, atualmente, entre dois complexos hidrelétricas de propriedade da empresa Novelis, que são operadas pela empresa Maynart Energética/CEI.

O Estudo de Impacto Ambiental da barragem de Fumaça (a última delas a ser construída, em 2003 abaixo de Mainart) indica que deveria ser feito um estudo após a construção da barragem para avaliar se a comunidade de Mainart poderia permanecer no mesmo local ou precisaria ser reassentada devido a possíveis inundações. A empresa responsável pela barragem nunca apresentou este estudo à população, apesar de inúmeras cobranças. Até a segunda feira (10), a empresa não havia prestado assistência aos moradores da comunidade.

Além disso, a água do rio Gualaxo do Sul, que recebe as águas do rio Mainart, segue para os municípios Acaiaca e Barra Longa, que, desde a madrugada do dia 08, sofrem com enchentes. Em Barra Longa, a situação se agrava devido à presença de rejeitos de mineração que continuam acumulados no Rio Carmo seis anos após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana.

Em Gesteira, distrito de Barra Longa, a igreja católica da comunidade, que está em reforma sob a responsabilidade da Fundação Renova desde o rompimento da barragem de Fundão, teve parte da torre destruída pelas chuvas. A situação de toda a estrutura que faz parte do patrimônio cultural da cidade está comprometida.

Em Ponte Nova, desde a noite de domingo (09), o rio Piranga está avançando pelas ruas e casas abaixo da UHE Brecha, que tem enchentes recorrentes.

Nos município de Raul Soares e no distrito Abre Campo (pertencente à Granada), a situação também é séria. Pelo terceiro ano consecutivo, a população vive dias de medo e acumula perdas devido a enchentes pois as ruas das localidades são tomadas pelas águas dos rios Matipó e Santana, onde estão instaladas duas barragens hidrelétricas da empresa Brookfield/Elera Renováveis.

Em Ouro Preto, no distrito de Antônio Pereira, onde está localizada a Barragem de rejeitos Doutor, de propriedade da Vale, a população não dorme com medo do rompimento da estrutura que tem nível de risco 1. A empresa alega que a barragem continua estável e está monitorando a situação, mas a população não se sente segura com as informações fornecidas.

No Vale do Aço e no Vale do Rio Doce, as enchentes pioraram nesta segunda-feira (10). Governador Valadares já tem três bairros alagados: Aimorés, Itueta e Resplendor. As UHE de Baguari (CEMIG, Neoenergia e Furnas) e a UHE Aimorés (Vale e CEMIG) anunciaram que podem abrir as comportas por causa do volume da chuva, o que deve criar uma situação caótica durante a semana.

Bacia do Paraopeba

Região atingida pelo crime da Vale que matou 272 pessoas, a bacia do Paraopeba sofre com enchentes em Congonhas e região. O município de Congonhas, que fica a 89 quilômetros de Belo Horizonte, sofreu com diversos alagamentos, deslizamentos, enchentes e transbordamento de rios que deixaram pelo menos 138 pessoas ilhadas ou desabrigadas, segundo dados preliminares. De acordo com a Defesa Civil da cidade, o número total pode chegar a 400. Uma notícia de deslizamento na área da barragem Casa de Pedra, da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), também deixou a população em pânico. Em caso de rompimento, os moradores do entorno teriam 30 segundos para fugir da morte. Ao todo, a população de Congonhas, de aproximadamente 54 mil habitantes, é cercada por 24 barragens, sendo que 54% têm dano potencial associado considerado alto.

Na região imediatamente atingida pelo rompimento da Barragem do Córrego do Feijão, cidades estão embaixo d’gua. 150 famílias estão desabrigadas em São Joaquim de Bicas, 150 em Juatuba, 200 em Citrolândia, bairro de Betim, 30 em Mário Campos e 150 em Brumadinho. Ao menos 30% das famílias perderam tudo.

O MAB denuncia que o assoreamento do rio depois do rompimento da barragem Córrego Feijão aumenta o nível das enchentes e a lama tóxica que vira poeira causa intoxicações e contaminação no solo. Muito dos atingidos tiveram seu auxílio financeiro emergencial bloqueado pela Vale e mais de 50 mil atingidos/as não foram reconhecidos. O auxílio é um direito conquistado para que os atingidos possam ter condições mínimas em momentos como este. E todos continuam com medo na região, pois tem outras barragens de água e rejeito em situações de ameaça de romper, como a Barragem Serra Azul, Rio Manso, Varzea das Flores, entre outras.

Em Itatiaiuçu, cidade a 82 km de Belo Horizonte, as comunidades já estavam vivendo as consequências do acionamento do plano de emergência da barragem Serra Azul da ArcelorMittal, desde fevereiro de 2019. Mais de 200 famílias foram desalojadas e outras 700 continuam morando nas comunidades ameaçadas pela barragem em nível 2 de emergência. Além disso, no ultimo dia 22 de dezembro, as comunidades denunciaram o vazamento de rejeitos de outra barragem pertencente à Usiminas, mas a empresa não reconheceu o fato.

Além de sofrer com a insegurança diante do risco provocado pelas barragens das siderúrgicas ArcelorMittal e Usiminas, muitas famílias das comunidades de Lagoa das Flores e Vieiras ficaram isoladas por conta da inundação da área.

A situação de pânico, especialmente em períodos chuvosos, é uma constante na vida dos moradores do município desde fevereiro de 2019, quando houve o acionamento do plano de emergência da barragem Serra Azul, após a siderúrgica ArcelorMittal detectar uma mudança no nível de segurança da estrutura. Na ocasião, 200 famílias foram evacuadas e outras 700 continuaram morando abaixo da barragem, ameaçadas pela estrutura que tem nível 2 de emergência.

O isolamento das comunidades caracteriza um claro descaso com os atingidos que estão extremamente expostos em caso de rompimento das barragens. “A mineradora ArcelorMittal, inclusive, se negou a disponibilizar maquinário para obras emergenciais solicitadas pela prefeitura do município

Barragens tidas como seguras aterrorizam moradores

Na noite de domingo (09), a prefeitura de Pará de Minas, a 83 quilômetros de Belo Horizonte (MG), emitiu alerta máximo para os moradores do entorno da Barragem do Carioca, que faz parte da PCH da usina Santanense. De acordo com Defesa Civil do município, a estrutura apresenta alto risco de rompimento e pode atingir ainda a zona rural das cidades de Pitangui, Onça de Pitangui, São João de Cima, Casquilho de Baixo, Casquilho de Cima e Conceição do Pará. 

No comunicado feito pelo 10° Batalhão do Corpo de Bombeiros por volta das 19 horas, a orientação oficial era que os moradores que vivem abaixo da hidrelétrica deixassem suas casas imediatamente. Em vídeos que circulam pelas redes sociais, um bombeiro alerta a população sobre o nível do rio São João que pode subir até 60 metros.

No começo da noite, a barragem que triplicou seu volume, de acordo com informações da prefeitura, já vertia água pelas laterais, inundando fazendas do entorno. Em caso de transbordamento, a água pode atingir as casas de moradores mais próximos em apenas 20 minutos e não plano de evacuação previamente organizado.

Os crimes das mineradoras se repetem

No sábado (08) uma montanha de rejeitos de mineração desabou sobre uma barragem de água (Dique Lisa) e provocou um transbordamento que atingiu a BR-040, que ficou fechada por dois dias, provocando prejuízos sociais, ambientais e econômicos para o território. Uma pessoa que passava na rodovia no momento ficou ferida. Segundo a Defesa Civil, seis famílias tiveram que ser evacuadas além de um Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS) do IBAMA com 400 animais.

Uma família do município de Paula Candido que viajava para o aeroporto de Confins desviou sua rota para escapar do bloqueio na 040 e teve seu carro atingido por um deslizamento de terra enquanto passavam pela Serra da Moeda. Todos os cinco passageiros morreram: pai, mãe e duas crianças de 3 e 6 anos. As mortes não serão contabilizadas no vazamento da mineradora, mas certamente seriam evitadas se não fosse a negligencia da empresa.

A barragem que transbordou fica na Mina Pau Branco, de propriedade da empresa Vallourec, uma transnacional de origem francesa que, além da mineração, atua no setor de siderurgia. A barragem, que, segundo relatos de um diretor da Agencia Nacional de Mineração (ANM), estava quase rompendo, teve seu nível se segurança elevado para 3 (risco eminente de rompimento) e posteriormente reduzido para 2. A incerteza da população segue, já que a mina foi vistoriada a menos de um mês estava com a documentação em dia. Esse é mais um desastre tecnológico causado pela postura criminosa das mineradoras se repete antes que tenham sido punidos os responsáveis pelos crimes em Mariana e Brumadinho 6 e 3 anos atrás.

O MAB se mobiliza para avaliar o número de atingidos e os danos causados pelas enchentes em áreas de barragens. O movimento já se articulou com entidades que entraram nessa segunda-feira (10) com uma ação na justiça demandando o bloqueio imediato da distribuição de lucros da companhia e de remessas de recursos ou transferências de ativos para matriz na França.

A ação tem objetivo de impedir que a empresa fuja de suas responsabilidades e pagamentos de futuras indenizações e reparações pelos possíveis danos causados, evitando que se repita a impunidade que existe em outros casos semelhantes.

Uma realidade que denuncia o modelo econômico e a negligencia de governos e empresas

Tantas perdas humanas e prejuízos de toda ordem que devem aumentar nas próximas semanas fazem parte de uma macabra tradição de irresponsabilidade solidária entre os governos constituídos e as empresas privadas que exploram o trabalho e os bens materiais do povo brasileiro. Somente no relato acima, estão envolvidas 12 grandes empresas, a maioria de capital internacional, que exploram e deixam o rastro de destruição construindo barragens que geram uma insegurança sistêmica que pioram nas épocas de chuvas.

Uma afirmação básica a se fazer é que não existe segurança nas barragens no Brasil e, mais uma vez, Minas Gerais é exemplo disto. Todas as estruturas, mesmo as que não estão oficialmente monitoradas por risco de rompimentos, causam danos quando, por exemplo, abrem as comportas. Os prejuízos causados incluem o assoreamento dos rios e córregos e o pavor gerado em milhões de pessoas que vivem com algum grau de dano psicológico por medo dos efeitos desta insegurança.

É fundamental o fortalecimento do papel do Estado neste processo fazendo investimentos em estruturas de fiscalização de barramentos e outros empreendimentos, no fortalecimento da Defesa Civil, do Corpo de Bombeiros e de outros órgãos fundamentais nestes momentos e na aprovação e correta implementação de leis que garantam a segurança para os atingidos que moram ou venham a morar perto de barragens, que puna os responsáveis por crimes desta natureza e garanta a reparação integral dos danos causados.

Neste contexto, o MAB continua o seu trabalho de denunciar as muitas situações que colocam a vida de milhões de pessoas em risco, de motivar ações de solidariedade para acolher e diminuir o sofrimento de tantas pessoas, de levar informação segura e organizar a luta por direitos durante o momento das inundações, mas, sobretudo, depois em que as populações são praticamente abandonadas a própria sorte sem amparo do estado e das empresas para garantir moradia e as condições para reconstruir a vida.

Em meio a todos estes esforços de solidariedade, o Movimento é atacado pelo Governador Romeu Zema (Novo), que, ao invés de anunciar ações efetivas para resolver esta calamidade, ataca os movimentos ambientalistas e todos aqueles que questionam este modelo de mineração e geração de energia que provoca desastres anuais. O governador, aliado de primeira hora de Jair Bolsonaro (PL), atua desviando a atenção dos fatos, alimentando um discurso de ódio enquanto atua para desmobilizar o Estado e desmontar as leis ambientais que poderiam ser grandes aliados neste difícil momento da vida minera.

O MAB e demais organizações da luta por direitos não recuam e se mantém ao lado do povo brasileiro nestes difíceis momentos que serão superados com solidariedade e luta.

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