Finados | Pelo menos 55 atingidos do Rio Doce já morreram esperando suas casas serem reconstruídas

Após oito anos de disputas na justiça, 262 famílias que tiveram suas casas devastadas pelas lama não têm, sequer, um prazo para receber suas novas moradias

Cemitério ao lado da Igreja de Nossa Senhora das Mercês, em Bento Rodrigues, foi uma das poucas construções poupadas pela lama  (Foto: Flavio Tavares/Repórter Brasil)

Em novembro de 2023, o rompimento da barragem da Samarco (Vale / BHP Billiton), em Mariana (MG), completa oito anos e a Justiça ainda tenta construir algum consenso entre as mineradoras, estados, municípios e atingidos diretamente pelo crime. Ao todo, três acordos judiciais já foram descumpridos pela Fundação Renova – organização criada para executar a reparação da Bacia do Rio Doce. Desde então, pelo menos 55 pessoas que viram suas comunidades serem soterradas faleceram enquanto aguardavam receber a chave de suas novas casas.

262 outras pessoas atingidas pelos 62 milhões de metros cúbicos de lama em um dos maiores crimes socioambientais do país ainda aguardam as casas prometidas que não têm, sequer, um prazo de entrega. “A gente sabe que dinheiro nenhum paga o que a gente vivia em Bento Rodrigues original, mas ainda espero voltar a viver em comunidade, mesmo que seja no reassentamento que está sendo construído”, afirma Manoel  Muniz, que já perdeu a mãe e o irmão, que também sonhavam em receber suas casas. 

Manoel Muniz, ex-funcionário da Samarco, é um dos atingidos que há oito anos espera a reconstrução de sua casa em Bento Rodrigues (MG). Foto: Kadu Ferreira

Segundo o atingido, que é ex-funcionário da Samarco, quando ocorreu o crime, ele estava há um ano aposentado e pretendia viver sua aposentadoria no lugar onde cresceu e criou sua filha. “Meu pai, cresceu lá, eu também. Os nossos vizinhos eram nossa comunidade, nossa família também, mas, depois de oito anos de espera e incertezas, muitos desistiram de ir morar lá. Eu acho que o que reassentamento não vai ser a mesma coisa, né? Não é igual. As casas não são iguais. Não vão estar as mesmas pessoas, mas eu queria ter de volta uma comunidade”, conta o morador, explicando que, na Bento Rodrigues original, as casas eram simples, mas tinham quintal, horta, galinheiro e estavam a poucos metros de uma grande área verde.

“Mesmo quem já recebeu a chave da sua casa, voltou pra dentro de um canteiro de obras. Hoje, a nova comunidade de Bento é um grande canteiro de obras, com máquinas, poeira e casas que já estão apresentando muitos problemas de estrutura”, afirma Manoel. Segundo ele, o projeto da sua casa só foi aprovado agora e a previsão é que a construção ainda leve pelo menos um ano e meio. 

Área afetada pelo rompimento de barragem no distrito de Bento Rodrigues, zona rural de Mariana, em Minas Gerais

O preço da espera

Sobre as famílias que perderam suas moradias, somente 88 casas foram entregues, das 350 que foram destruídas. Há ainda 25 casos que foram judicializados, por falta de entendimento entre as famílias e a Fundação Renova. Em setembro de 2022, os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, ao lado do Ministério Público e das Defensorias Públicas, encerraram formalmente as negociações de indenização pela tragédia sem chegar a um resultado. A tentativa de acordo conduzida pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ não avançou porque a Samarco, a Vale e a BHP Billiton não se propuseram a pagar os valores requeridos no prazo pedido. As empresas também não aceitaram pagar a indenização de danos futuros do desastre, aqueles que ainda não puderam ser avaliados. Depois de 250 reuniões, as partes continuaram em um impasse.

“Entre os moradores que continuam sem reparação, muitos desenvolveram doenças psíquicas e assistem as disputas na justiça, sem direito à participação na construção do novo acordo de reparação”, afirma Letícia Oliveira, integrante da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, que atua na mobilização dos atingidos para reivindicarem seus direitos.

Um estudo realizado pela Universidade Federal de Minhas Gerais – UFMG revela que os moradores da região atingidos pela lama apresentam problemas de saúde mental aumentados. A ocorrência de depressão na população de vítimas adultas (maiores de 18 anos), por exemplo, é cinco vezes maior do que a média da população brasileira. O transtorno de estresse pós-traumático, por sua vez, é 12 vezes maior nesta mesma faixa etária de atingidos do que a média da América Latina. O estudo revela ainda a ocorrência de estresse pós-traumático em 82% de crianças e adolescentes afetados diretamente pelo desastre. “É como se a memória da tragédia estivesse sempre voltando”, explica Mailia de Castro, médica psiquiatra da faculdade de medicina da UFMG e responsável pela pesquisa.

Foram avaliados pelo estudo transtornos mentais como a depressão, o transtorno de ansiedade generalizada, o transtorno de estresse pós-traumático, o risco de suicídio e transtornos relacionados ao uso de substâncias. A depressão autodeclarada era de 15% antes da tragédia. Contudo, o diagnóstico de agora corresponde ao dobro disso, ou seja, cerca de 30% das vítimas apresentam quadro depressivo. Este número é cinco vezes maior do que a média do Brasil, segundo dados da Organização Mundial da Saúde de 2015. Já o transtorno de ansiedade generalizada foi diagnosticado em 32% dos entrevistados, prevalência três vezes maior que a média brasileira.

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Letícia Oliveira conta que, a partir do próximo dia 04, muitos desses atingidos da Bacia do Rio Doce estarão em luta em Brasília, para reivindicar do governo federal uma resposta para a situação das comunidades que aguardam a reparação.

“O governo federal não pode ser negligente diante dessa situação. Precisamos que o estado brasileiro intervenha e cobre uma solução das mineradoras, já que são os órgãos públicos que concedem a licença e regulam a atuação dessas mineradoras. O papel do estado, agora, é atuar firmemente na reparação e na proteção dos atingidos para que a mineração não siga fazendo vítimas no país”.

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