Fronteira de resistência – Comunidades tradicionais na preservação do Cerrado e enfrentamento ao capital

No Dia do Cerrado, exaltamos luta das comunidades de Fundo e Fecho de Pasto no enfrentamento do agronegócio e de projetos hidrelétricos, que colocam em risco a biodiversidade e as importantes bacias hidrográficas desse bioma

Fronteira entre desmatamento e Cerrado. Foto: Adriano Gambarini/WWF Brasil
Fronteira entre desmatamento e Cerrado. Foto: Adriano Gambarini/WWF Brasil

Reconhecido como a savana mais diversa do mundo, o Cerrado é o bioma que contém aproximadamente 5% de toda a biodiversidade mundial, mas se encontra ameaçado pelo desmatamento que cresce em ritmo acelerado no país. A principal causa desse cenário é o avanço da fronteira do agronegócio, que tem como consequência a abertura de novas áreas de atividade agrícola e a diminuição de territórios preservados, o que contribui para o aumento das emissões de gases de efeito estufa no país. 

Ao todo, sua área, de 204 milhões de hectares, corresponde a cerca de 24% do território brasileiro, incidindo sobre os estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Minas Gerais, Distrito Federal, Bahia, Maranhão, Piauí e São Paulo. Ainda há porções de Cerrado em outros estados da federação (PR) ou em áreas disjuntas dentro de outros biomas.

Para além da sua rica biodiversidade, o Cerrado protege uma grande quantidade de nascentes e é considerado a “zona de recarga” dos lençóis freáticos, por agrupar as nascentes das três maiores bacias hidrográficas da América do Sul – Amazônica, Tocantins, São Francisco e Prata. Muitas dessas nascentes, porém, hoje estão ameaçadas.  

Na região do MATOPIBA, fronteira agrícola que compreende os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, a expansão do agronegócio tem sido dramática. Nesta área, as atividades agrícolas têm suprimido a vegetação nativa, principalmente para o plantio de soja. De acordo com dados levantados pelo MapBiomas, entre 1985 e 2020, houve uma diminuição da vegetação original em 26,5 milhões de hectares. Essa supressão resultou em mudanças significativas na biodiversidade da área, principalmente no solo, sendo este um dos principais fatores responsáveis pelas enchentes em áreas do bioma. Os dados também apontam que 50% da área original de Cerrado já foi desmatada – em 98% dos casos – pela atividade agropecuária.

Mapa baseado em dados do IBGE indica localização do Cerrado e áreas ameaçadas do bioma na fronteira agrícola que compreende os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia chamada de MATOPIBA

O Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado – SAD Cerrado indica ainda que houve um aumento de 35% do desmatamento no bioma no primeiro trimestre deste ano, o que significa 188,2 mil hectares de área devastada. Na série histórica, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE aponta que foram 6.359 km² de área destruída entre agosto de 2022 e 31 de julho deste ano. Em estudo publicado em 2019, o pesquisador Ricardo Abramovay indica que, no Cerrado, apenas 13% das áreas que podem ser desmatadas de maneira legal têm potencial para agricultura produtiva. Por isso, não é de surpreender o envolvimento e o interesse do agronegócio no avanço do desmatamento ilegal em áreas de reservas – visadas pelo grande potencial produtivo  – e na grilagem de terras de comunidades tradicionais (PCT’s)¹

Fechos de Pasto, o refúgio do Cerrado na Bahia

Em contrapartida, as Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto – CFFP²,  comunidades tradicionais típicas do sertão baiano, localizadas nas regiões norte e oeste do estado, se mantém ligadas a um modo de vida essencial na manutenção das áreas do Cerrado e da Caatinga presentes na região e na preservação de nascentes no território.

Um exemplo é a Bacia do Rio Corrente, localizada na região oeste da Bahia, onde os Fechos de Pasto despontam como áreas de refúgio e preservação do bioma. Ali, os moradores têm feito uma luta histórica de enfrentamento aos empreendimentos do agronegócio responsáveis pelo desmatamento para o monocultura, pela captura da água dos rios de maneira indiscriminada e pela expropriação de áreas de uso coletivo. 

Cultivo em área Comunitária de Fecho de Pasto no oeste da Bahia. Foto: Bya Silva / MAB

Estima-se que algumas das CFFP mais antigas existam há mais de 300 anos. Historicamente, essas áreas eram “livres”, sem cercamento, mas, a partir do avanço do agronegócio, relacionado à pistolagem e à grilagem no território, viu-se a necessidade de organizar grupos comunitários para fechar essas áreas, com o intuito de dificultar a tomada ilegal das terras. Segundo a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais – AATR, existem cerca de 1.500 Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto no país, porém, a carência de regularização fundiária brasileira faz com que apenas 130 destes tenham sua titularidade reconhecida.

Além da insegurança jurídica, outra ameaça a esses territórios é a “grilagem verde”, em que a compensação pelo desmatamento de mata nativa do imóvel rural se dá em terras apropriadas de maneira ilegal, muitas remanescentes de Cerrado, e declaradas como parte da propriedade. A prática é mais um instrumento para a ampliação do desmatamento e apropriação ilegal de áreas de comunidades tradicionais, o que é reflexo da histórica carência de regularização fundiária no estado da Bahia e do desmonte da legislação ambiental brasileira.

Conforme o estudo “Na fronteira da (i) legalidade: Desmatamento e grilagem no Matopiba”, realizado pela AATR em conjunto com o Instituto Federal da Bahia (IFBA), e a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, já são 82.300 hectares cadastrados como reserva legal sobreposta ao conjunto das áreas de fechos da Bacia do Rio Corrente. 

A guerra pela água

Além das CFFP, a defesa dos territórios, proteção do meio ambiente e resistência ao modelo de produção capitalista envolve diversos grupos. São os povos indígenas, quilombolas, camponeses, quebradeiras de coco, geraizeiros, entre outros, que encaram, cotidianamente, violações de direitos humanos na faixa do MATOPIBA. Na história mais recente, com o avanço da implantação de projetos de hidrelétricas no Brasil, em especial entre o final da ditadura militar e o início dos anos 90, as lutas e enfrentamentos dos atingidos por barragens representou um avanço no debate nacional acerca da soberania, seja em termos de território, como também da exploração dos recursos naturais, além dos impactos gerados pelo capital nos modos de vida de comunidades e povos tradicionais e na proteção do meio ambiente e na luta contra os efeitos das mudanças climáticas.  

Por isso, na região oeste da Bahia, há uma sobreposição dessas lutas. Muitas das Comunidades de Fecho de Pasto, além de sofrerem com o avanço do agronegócio sobre as terras e águas, precisam também enfrentar empresas do setor elétrico que querem construir barragens, especialmente Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) em seus territórios.

Nessa região, a disputa da água por esses setores tem como elemento norteador a violência. Já nos anos 70, era comum a presença de grupos de grileiros e pistoleiros que ameaçavam a população através da tomada ilegal de terras e do cercamento de áreas, chegando a realizar atos de violência física a execução de lideranças comunitárias.

Da mesma forma, houve diversas tentativas de construção de barragens, como foi o caso da Barragem de Sacos e Gatos nos anos 90, que violava direitos humanos e ambientais.

Em 2017, quando a multinacional Igarashi utilizou bombas para desviar a água do Rio Arrojado para irrigação, houve uma grande reação popular no município de Correntina (BA). A empresa fazia captação de uma quantidade desproporcional de água, diminuindo sua vazão e deixando as comunidades à “mingua”.  Conforme demonstra o estudo “Hidrogeologia do Aquífero Urucuia: Potencialidades, Vulnerabilidades e Conservação”, do pesquisador Natanael da Silva Barbosa, há um rebaixamento do nível das águas no oeste da Bahia, mudança essa que não é provocada pela falta de chuvas. As evidências deixam cada vez mais explícita a responsabilidade do agronegócio nas alterações socioambientais no Cerrado baiano na captura das águas.

De acordo com informações divulgadas no Atlas da Irrigação – Uso da Água na Agricultura Irrigada de 2021, da Agência Nacional de Águas – ANA, atualmente, a irrigação é responsável por cerca de 50% da captação de água bruta em mananciais superficiais e subterrâneos no Brasil. Neste cenário, a Bahia apresenta forte crescimento de áreas irrigadas, em especial no Cerrado do oeste, com adoção de pivôs centrais. É importante ressaltar que a liberação de outorgas pelos órgãos competentes são as grandes responsáveis por esse uso exacerbado da água na região.

Em 2021, outras empresas, dessa vez do setor energético, como a Hy Brazil Energia, passaram a assediar ribeirinhos e fecheiros nos municípios de Jaborandi e Coribe (BA), na tentativa de convencer a população local a aceitar a implementação do projeto UHE Veredas no Rio Formoso, sob a promessa de geração de empregos e proteção do meio ambiente. A empresa anunciava em suas peças publicitárias de divulgação do projeto que uma de suas principais premissas era o “diálogo e transparência junto à população local”. Seus funcionários, porém, coagiram, por diversas vezes, moradores na tentativa de convencê-los a aceitar uma proposta que, na prática, transformava a água em mercadoria, através da compra e arrendamento de áreas de terras na beira do Rio Formoso.

Leia também: 22 ANOS DE LUTA E RESISTÊNCIA DOS ATINGIDOS NO OESTE DA BAHIA

As alterações geográficas e ambientais, assim como as violações de direitos, fruto desses dois setores, reforçam a tese de que o único interesse do capital é a geração de lucro, não a proteção à vida. Fica nítido que quem realmente salva a biodiversidade brasileira são os povos e comunidades tradicionais na defesa de seus territórios. São fecheiros, ribeirinhos e atingidos pelos grandes projetos, que enfrentam os empreendimentos do capital e, entre ameaças às suas vidas e às suas comunidades, constroem a luta através da organização popular.



1 O decreto 6040/07 da Política Nacional Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, define povos ou comunidades tradicionais (PCT’s)  como: “Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição” (BRASIL, 2007).

2 Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto (CFFP) são áreas coletivas para manejo do gado, ou criação de animais de pequeno porte, em que pequenos proprietários que possuem em sua maioria vínculos de parentesco ou alianças que perduram há séculos, fazem uso comum da terra, mantendo vivas tradições culturais, étnicas e produtivas. Sendo que os fundos de pasto ficam localizados no entorno das áreas individuais, e os fechos de pastos, apesar de ter as mesmas características e sistema de uso, dá-se em um local mais distante das áreas individuais.

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