CRÔNICA | Poeira nas almas
O céu da cidade histórica de Congonhas (MG) tem sido tomado por nuvens de poeira causadas pelo pó de minério, que não poupa nem os emblemáticos profetas da cidade
Publicado 27/06/2024 - Atualizado 29/06/2024
“É mineral o papel
onde escrever o verso; o verso
que é possível não fazer.”
João Cabral de Melo Neto
“Olhai os lírios do campo”, disse, certa vez, o mestre dos abraços e acolhidas, das benções e milagres, do corpo ressurgido da escuridão da morte. Há os que esperam sua vinda, anunciam chegadas triunfantes, o aguardam entre os esplendores da aurora. O cronista apenas olha os céus a procura de respostas mais simples e sussurros consoladores entre preces silenciosas. Pensa nas flores e nas cores, nos lírios e nas rosas.
Em Congonhas, ele olha, mas não vê flores. São horizontes perfurados pelas máquinas insalubres, pelos “caminhões fora de estrada”, pelo formigueiro de homens e mulheres minerando o chão da terra. Vê a Casa de Pedra engolir o horizonte na Cidade dos Profetas, um dia também chamada “Congonhas do Campo”. Campo que já teve lírios e hoje é acinzentado pela poeira maldita.
A presença colonial nestas terras data de 1691, pelos menos, mas os povos carijós já tinham estabelecido seu domínio ancestral. Atraídos pela febre do ouro, aventureiros e escravocratas penetraram as matas da Passagem do Gagé chegando à desconhecidas regiões hoje chamadas de Mariana, Conselheiro Lafaiete, Ouro Preto, Sabará, Congonhas. A fé e o labor criaram a Basílica do Bom Jesus de Matosinhos, legou ao mundo o primeiro bispo negro do Brasil e imortal da Academia Brasileira de Letras, Dom Silvério Gomes Pimenta. Nesta região, foi criada a primeira forja de aço do país pela influência e o engenho de Wilhelm Ludwig von Eschwege, que veio a ser dono da Mina da Passagem, em Mariana, precursora da multinacional AngloGold.
Do alto da Basílica, é possível ver o horizonte manchado pela poeira que é depositada na cidade. Nos dias em que a boca infernal das minas libera mais pó, as tempestades fazem ensaio do fim do mundo, escurecem os céus e sujam casas e almas. O véu do santuário se rasga de cima abaixo, mas dentro de cada morador, que, além desta tóxica e doentia exposição que faz explodir os casos de doenças raras e graves, é obrigado a morar embaixo de estruturas com risco de rompimentos.
Congonhas é uma cidade sitiada. São 24 barragens de quatro empresas. A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) tem o maior número de estruturas, seguida pela Vale, Gerdau e Ferrous. A maior delas, a Barragem Casa de Pedra, da CSN, localizada próxima à área urbana, tem 21 milhões de metros cúbicos. Ao todo, são 107,5 milhões de metros cúbicos de rejeito de mineração e água acondicionados nas represas da cidade.
Chega de aridez! Voltando aos lírios do campo. Ali cresceu o que os povos originários chamavam de “kongoi”, ou “o que alimenta, sustenta”. Na medicina, a substância é indicada como diurético, anti-inflamatório e calmante. Sabendo que mais de 40% da vegetação original da cidade foi destruída, as flores amarelas e as folhas verdes e poderosas que deram nome à cidade também lutam e resistem. Aliás, lutar e resistir é o remédio que busca a cura dos males das ruas sujas, da brutal exploração, das partículas invasoras, do adoecimento que não poupa ninguém, a começar pelos pobres.
De Itabira, Carlos Drummond de Andrade dizia que era “noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas” – talvez ali já denunciando as tempestades de areia tóxica da cidade natal. O cronista não arrisca porcentagens, mas desconfia de que a poesia não mente as estatísticas.
Thiago Alves é jornalista e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Minas Gerais. Atua ativamente no campo das lutas populares e, entre uma tarefa e outra, observa as pessoas e paisagens redor, buscando perceber a beleza do cotidiano, que vira prosa simples, crônicas sem pretensão.