Nordeste: o Brasil à frente do seu tempo

No dia do nordestino, 08 de outubro, Dalila Calisto, da coordenação nacional do MAB, reflete sobre um povo e um território que floresce apesar do histórico de preconceitos

Setanejos na região do Raso da Catarina (BA), no submédio São Francisco. Foto: João Zinclar

“não eu não sou do lugar dos esquecidos, não sou da nação dos condenados, não sou do sertão dos ofendidos, você sabe bem, conheço o meu lugar”. Em suas músicas Belchior fala que é preciso combater toda ideia que reduz o Nordeste a um lugar de inferioridade. A ideia do Nordeste como um lugar atrasado, fraco e apequenado foi inventada há mais de um século pelas elites cafeicultoras do sudeste do Brasil, que disputavam com as elites nordestinas o poder político e econômico, no século 20, numa época em que o Nordeste, que até então havia sido a principal economia do país, estava enfrentando um período de declínio da economia do açúcar.

Foi justamente nessa época que essa região passou a ser caracterizada como nordeste. Os sulistas começaram a fazer expedições na região e voltavam com relatos depreciativos e estigmatizados sobre essa população que circulava nos jornais da época com a reprodução de uma visão distorcida, estereotipada e xenofóbica sobre o Nordeste, que tinha o intuito de reduzir a sua importância política e econômica. Assim, o Nordeste foi sendo visto como o lugar do atraso, da fome, da pobreza, do coronelismo, e o sudeste-sul como o lugar do avanço e do desenvolvimento.

Essa dicotomia norte-sul que existe há séculos é tão forte que o sudeste costuma ser tratado como o lugar universal, que representa todo o país, e quando se fala do nordeste e, mesmo do norte do país, relaciona-se sempre com algo regional e homogeneizado, mesmo se tratando de uma região que abriga nove estados e possui mais de 60 milhões de pessoas. Essa depreciação histórica sobre o Nordeste é uma realidade que continua se manifestando nos dias de hoje, seja em frases cotidianas ou mesmo em manifestações proferidas publicamente, como a fala do governador de Minas Gerais, Romeu Zema. 

Mas é preciso ir além e falar daquilo que o Nordeste é. Enxergá-lo com suas potencialidades e possibilidades, em seus múltiplos rostos, sotaques e culturas. Pois, a despeito da desigualdade regional, “há um nordeste que é grande e que cresce”, como diz o poeta Flávio José.

O Nordeste é a síntese desse Brasil progressista, plural, diverso. O Nordeste é o Brasil à frente do seu tempo. Há um outro Brasil, de origem escravista, eugenista, segregacionista, racista, excludente, em que uma raça se coloca como superior às outras, que precisamos destruir.

Na história recente, o Nordeste tem ocupado, por diversas vezes, o lugar de protagonista no cenário nacional. Na educação, na cultura, na economia, no turismo, na política, o que vemos é “o Nordeste vestindo de orgulho a nação”. Além da determinação e da resistência incansável de sua população, é crucial destacar que os governos progressistas das últimas décadas fizeram uma significativa contribuição. O resultado disso foi uma região que se ergueu com determinação, demonstrando todo o seu potencial e magnitude. 

Hoje, a cidade de Sobral, no Ceará, possui o título de melhor educação em tempo integral do país. No ranking dos estados com a melhor educação pública nas séries iniciais, são os estados do Ceará, Pernambuco e Paraíba que ocupam a liderança. Das 100 melhores escolas públicas 97 são da região Nordeste. A Universidade Federal do Ceará já é a melhor universidade do norte e nordeste do país e a 23ª melhor universidade da América Latina. O conhecimento acadêmico construído nas universidades públicas do Nordeste tem ganhado relevância no país. Hoje em dia, brasileiros de outros estados e estrangeiros se deslocam para estudar nessa região.

Nos veículos culturais de massa o Nordeste vem ocupando um lugar de notoriedade. O Ceará, por exemplo, vem desbancando o eixo sul-sudeste e protagonizando no horário nobre o principal programa de comédia da televisão brasileira, com seus personagens e sua linguagem próprias, sem ter que anular o seu sotaque. As séries produzidas pelos artistas e produtores nordestinos alcançando uma grande audiência no streaming. Hoje a região Nordeste cresce bem mais que o Sudeste. Com um percentual de 2,9% acima da média nacional, o Nordeste é a região que mais cresce no país. Sem falar que essa é a região turística hoje mais visitada pelos estrangeiros, como exemplo os Lençóis Maranhenses que foi o local mais procurado em 2022. 

Na política, o Nordeste foi capaz de salvar o país democraticamente com uma resposta linda e histórica. A atuação exemplar do Consórcio Nordeste, que enfrentou as adversidades políticas e fez avançar a compra de vacinas para o povo brasileiro, na pandemia da Covid-19. O que significará a projeção de diversas lideranças progressistas da região, como as lideranças de estados do Maranhão e Piauí, que até então tinham pouca expressividade no cenário nacional, e hoje atuam em cargos políticos de relevância no governo federal. 

O Nordeste como esse lugar de referências tem alcançado dimensões inimagináveis, como por exemplo, a possibilidade de ser o ideário de vida da juventude das novas gerações. Diferente da geração dos meus avós e pais, que tinham no seu imaginário São Paulo como um lugar onde se alcançava melhores condições de vida, de trabalho e renda. Hoje em dia, esse tipo de pensamento não é mais comum nos jovens do nordestinos. Essa conquista alcança não só a esfera do simbólico, mas aponta para a necessidade de superação da desigualdade regional, seja no âmbito da economia, da política, da educação e da cultura dessa porção do Brasil.

Se é correto afirmar que estamos diante de um novo tempo, onde o mundo será multipolar, em que o poder será compartilhado entre diferentes potências e não mais monopolizado por uma única nação, onde a hegemonia perde a vez e a pluralidade de referências ganha força, então é preciso questionar a desigualdade regional e buscar entender profundamente o que se passa no Nordeste, esse território por onde começou o Brasil. Sua gente formada por maioria negra, de descendentes de povos indígenas, têm o sangue genuinamente brasileiro, sangue de um povo que esteve na formação do Brasil do início ao fim. Se Deus fosse brasileiro certamente seria nordestino. 

Sempre à frente de seu tempo, o Nordeste é um lugar de efervescência de lutas. O primeiro estado brasileiro a libertar as pessoas escravizadas foi o estado do Nordeste, o Ceará. O que foram as grandes revoltas populares, a Guerra de Canudos, a Revolta da Balaiada, a Batalha dos Jenipapos. A luta dos atingidos pela barragem de Itaparica, a guerra da água, em Correntina. O Nordeste é feito de um povo que não esmorece. Esse orgulho de ser o que se é, de fazer parte dessa terra.

O Brasil deve muito ao Nordeste, por isso este deve ser prioridade nas políticas governamentais e na vida das organizações políticas que acreditam na transformação social e que percebem este lugar como o celeiro cultural e um legado de resistência popular deste país. O Nordeste merece todas as nossas homenagens. Parafraseando Dorival Caymmi “quem não gosta de nordestino bom sujeito não é”. E o Nordestino, como disse Euclides da Cunha, “é antes de tudo um forte”.

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