Carolina Morishita: “A construção coletiva da reparação digna no caso Brumadinho é fruto da união de forças dos atingidos perante uma das maiores empresas do mundo”

Entrevista: A defensora Carolina Morishita fala sobre o processo de Brumadinho e destaca a importância da reparação coletiva e da criação de um marco legal para proteção dos direitos dos atingidos

Atendimento comunitário em Revés do Belém (MG). Foto: Divulgação

A defensora pública Carolina Morishita atua no Núcleo Estratégico para Proteção de Vulneráveis em Situação de Crise em Minas Gerais. Por isso, acompanhou de perto  os efeitos do crime da Vale / BHP Billiton / Samarco em Mariana (MG) e, atualmente, trabalha junto às vítimas do crime da Vale em Brumadinho, que causou a morte de 272 pessoas e  contaminou a Bacia do Rio Paraopeba com uma lama tóxica que matou a fauna e flora por todo o seu percurso. 

Em entrevista ao MAB, Morishita comenta sobre os principais desafios que a Defensoria Pública,  junto a outros órgãos e movimentos da sociedade civil – como o próprio Movimento dos Atingidos por Barragens – enfrenta para garantir às vítimas e às comunidades atingidas o direito de reparação justa. 

Nessa jornada, Carolina tem atuado com grande empenho e sensibilidade, ouvindo os atingidos e lideranças sociais com com uma escuta ativa e generosa. A partir dessa escuta, ela defende o protagonismo das famílias que tiveram suas vidas irremediavelmente atravessadas por um dos maiores crimes ambientais do país no processo de reparação e ressalta a importância da organização coletiva.

Passados 4 anos do rompimento de Brumadinho, quais os maiores entraves no processo de reparação das pessoas atingidas pelo crime?

Certamente, a maior dificuldade é o grande percurso de luta que se percorre na efetivação de direitos das pessoas atingidas. Em todo território, o dia do rompimento é um marco de transformação das vidas pela perda de amigos e familiares, modos de vida e possibilidades de geração de renda. Na memória coletiva, as imagens dos rejeitos destruindo comunidades talvez seja a mais marcante, mas nos territórios é comum que as violências do não reconhecimento e danos posteriores surjam de forma ainda mais marcante nos relatos. 

No cenário de adoecimento mental e exaustão, os desafios e limitações à participação social na efetiva construção das medidas de reparação são provavelmente o maior dificultador. Um processo participativo traz maior possibilidade de reparação real.

Na prática, o que quer dizer reparação coletiva? Qual a importância desse tipo de reparação?

Reparação coletiva é conseguir visibilizar a complexidade do dano. O entendimento de que não é suficiente indenizar individualmente as pessoas no território, que é preciso reconhecer a alteração do próprio território, da comunidade, dos modos de vida diversos, do pertencimento das pessoas é em si aumentar a responsabilidade de empresas e empreendimentos. Pacificar que o dano e a reparação são complexos e também coletivos implica numa ampliação de medidas e de gastos em reparar. Esse incremento é pedagógico em alertar que as medidas de prevenção devem ser adotadas porque o dano é custoso. 

Qual a relevância da atuação das organizações, movimentos sociais, igrejas e associações de moradores no diálogo com a justiça e acompanhamento do processo de reparação?

As organizações de base, movimentos, igrejas, associações, terreiros e grupos de base são potencializadores de conquistas pela capilaridade, conhecimento do território, processos de mobilização e articulação, tanto para a consolidação de pautas e demandas como para cobrança de melhor articulação, comunicação, entendimento do processo. 

O momento inicial traz a compreensão e a empatia de múltiplos setores sociais. Porém, rapidamente, as atenções externas se voltam a outras pautas e a pessoa atingida permanece com todas as obrigações familiares, de trabalho e comunitárias que tinham antes do rompimento somadas a todos os danos, atividades, providências, dúvidas e temores causados em decorrência do rompimento. 

O apoio à mobilização e construção de redes – espaços de desabafo, mas também de esperança e entendimento de possibilidades, são um alento à saúde mental e, por meio da troca e do acolhimento, amplificam as vozes e permitem pensar caminhos e respostas que as Instituições e o processo judicial não encontrariam sozinhas. 

Na sua opinião, como seria possível melhorar o protagonismo dos atingidos nesse processo?

Os processos tradicionais têm uma limitação de entender como participação espaços que são de escuta apenas. Não há dúvidas de que ouvir as pessoas atingidas, absorver suas contribuições e analisar o encaixe entre essas falas e as normas técnicas jurídicas é também importante. O protagonismo, contudo, vem da participação, da escuta que modela, altera, gere, decide. No decorrer do processo, na construção do pagamento mensal emergencial e mobilização para inscrições coletivas, na definição de critérios do Programa de Transferência de Renda, entre outros, houve momentos em que o processo não foi apenas participativo, mas popular, pautado pelo povo. Não foram e não são processos perfeitos em sua execução e satisfação, mas são precedentes importantes para conflitos socioambientais.

Hoje o protagonismo das pessoas atingidas pode e deve ser fortalecido na construção dos projetos de demandas das comunidades atingidas – conhecido também como anexo I.1. Demonstrar que é possível, efetivo e gera reparação e satisfação garantir projetos das pessoas, propostos pelas pessoas, detalhados e executados com incidência dos territórios trará uma compreensão mais ampla do que é participação e estabelecerá um piso mais alto a ser cumprido por todos os atores em casos semelhantes.  

Carolina Morishita fala para atingidos em frente a 2ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Belo Horizonte, após audiência no último 25 de janeiro. Foto: Francisco Kelvim / MAB

Como evitar que os atingidos sejam “revitimizados” no caso das enchentes de rejeito e outras violações que seguem sendo praticadas pelas mineradoras no território?

A construção de controle social pelo fortalecimento das comunidades e a continuidade de acompanhamento técnico pelos órgãos, mas também pelas assessorias técnicas independentes não solucionam, mas auxiliam na mitigação e resposta às violências. 

Da mesma forma, a presença da Defensoria Pública nos territórios, não apenas pela compreensão do que ocorre, mas pela demonstração de trabalho conjunto com as pessoas atingidas é maneira de buscar enfrentar essas práticas. 

O conceito de reparação coletiva é antagônico ao de reparação individual? Qual a diferença?

Não há oposição. A construção coletiva de acesso à direitos e reparação digna é a união de forças das pessoas e famílias perante uma das maiores empresas do mundo. É o reconhecimento de que em comunidades uns são os alicerces dos outros e que não existe resposta bem sucedida se uma parte da comunidade não for reconhecida em seus danos. E, mais, uma pessoa que busca – e obtém – individualmente a sua indenização ainda pode e é importante para a reparação coletiva, apoiando as articulações, auxiliando pessoas mais vulnerabilizadas de sua comunidade e conhecer caminhos, contribuindo em espaços coletivos. 

Qual o status da matriz de danos do crime? O que falta para que ela seja concluída?

A construção da uma potencial matriz de danos está pendente de decisão judicial. As instituições de justiça apresentaram petição judicial para que seja iniciada a chamada liquidação de danos, uma fase processual em que os danos individuais serão a temática central.

O que mais te motiva nesse trabalho longo e árduo de representação dos atingidos?

Rememorar o processo é lembrar sempre que o início dessa atuação veio com a perda irreparável da vida de 272 pessoas. Em certa medida, a dor e a tristeza são elementos permanentes de estar envolvida no tema. Acontece que, mesmo  imersas nessa angústia, as pessoas e comunidades acolhem umas às outras, festejam as conquistas uma das outras, são solidárias às dificuldades e propositivas. 

Poder contribuir e aprender com lideranças que são alicerces comunitários, mulheres que em meio a sobrecarga se atentam aos vizinhos, crianças e adolescentes descobrindo seus espaços e trazendo pautas, guardiões da natureza das comunidades tradicionais protegendo a terra etc., tem permitido uma nova compreensão do que pode ser atuar como defensora pública.

Me fortalece também como pessoa no entendimento de pertencimento, de parceria, de pertencimento, de cuidar e acolher e, especialmente, das muitas coisas que são possíveis coletivamente.

Na sua opinião, qual a importância da criação de um marco legal para garantir a reparação dos direitos dos atingidos?

Um marco legal que traga uma Política Nacional de Atingidos por Barragens consolida as vitórias construídas por atingidas e atingidos em seus territórios, estabelecendo uma base mínima de proteção, possibilitará novas construções e avanços. O marco legal pode ser a consolidação de uma pauta que trouxe envolvimento dos territórios, investimento de tempo das lideranças e esperança de reparação. Enxergar na lei o reconhecimento de toda essa dedicação é fortalecedor de outras pautas essenciais. Por exemplo, garantido o direito à assessoria técnica independente na Política Estadual de Atingidos por Barragens começa uma nova etapa: a construção de um entendimento do que é assessoria técnica independente e quais são suas funções essenciais. 

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