Após manifestação em linha férrea da Vale, advogada da Renova, fundação mantida pela Samarco, Vale e BHP Billiton, afirma que vai “dar o tom” em reunião com vítimas: “Não sou eu que estou falando, é o juiz dono do processo”, diz
Publicado 26/02/2021
“Eu que chamei a reunião, eu que vou dar o tom”, esbraveja a advogada da Fundação Renova, Viviane Aguiar, interrompendo a fala de Valeriana Gomes de Souza, pecuarista de Naque (MG), vítima do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana. A fundação é mantida pela Samarco e suas acionistas, Vale e BHP Billiton, para executar ações de reparação, e, segundo os atingidos, seria um braço das mineradoras responsáveis pela tragédia.
A Agência Pública teve acesso exclusivo à gravação dessa reunião, que ocorreu no dia 21 de janeiro deste ano. O tom da conversa da advogada – que coordena o setor jurídico da fundação – foi de ameaça e intimidação contra os representantes da comissão de atingidos de Naque ali presentes, que haviam organizado uma manifestação quatro dias antes.
Ao longo da conversa, Viviane se colocou como porta-voz do juiz da 12ª Vara da Justiça Federal em Belo Horizonte, Mário de Paula Franco Júnior, responsável por julgar os processos envolvendo a tragédia de Mariana.
“Eu vou reforçar uma coisa e deixar muito clara: se tiver manifestação, manifestação onde vocês colocarem pessoas em risco, vocês paralisarem ferrovia, vocês fecharem… Enfim, manifestação que não seja pacífica, isso vai parar. Não pensem vocês, não pensem, ninguém aqui pense, que foi por causa de manifestação que a coisa está andando, porque vai ser o contrário, por causa de manifestação a coisa vai parar”, provocou a advogada da Renova, referindo-se ao pagamento das indenizações devidas às vítimas.
E ela não parou por aí: “Não sou eu que estou falando isso, é o juiz dono do processo que está falando. Se tiver manifestação, a manifestação vai parar”, anunciou.
“Façam de conta que isso aqui é um barco em alto-mar com todo mundo dentro. Dentro do barco está o juiz, a Fundação Renova, todos os advogados e todos os atingidos, lá em alto-mar, e aí, de repente, um resolve fazer um motim para afundar esse barco. Nós só temos duas opções, vocês concordam? Ou nós jogamos essa pessoa para fora do barco ou essa pessoa sai por ela”, afirmou.
A reunião foi convocada às pressas depois que cerca de 50 pessoas atingidas interditaram os trilhos da linha de trem da Vale em 17 de janeiro como protesto contra problemas no Sistema Indenizatório Simplificado (Novel).
Esse modelo foi chancelado pelo juiz Mário de Paula, em julho do ano passado, em acordo entre as comissão de atingidos de Baixo Guandu (ES) e Naque, representados pela advogada Richardeny Luiza Lemke Ott, as mineradoras e a Fundação Renova, com a justificativa de compensar categorias com dificuldade de comprovação de danos pelo rompimento da barragem, como lavadeiras, artesãos, areeiros, carroceiros, extratores minerais, pescadores de subsistência e informais.
Apesar de o sistema ter sido “vendido” como alternativa para esses grupos, os atingidos denunciam que a Fundação Renova está dificultando o acesso a ele. Eles reivindicam também os pagamentos das indenizações já homologadas na Justiça, que, de acordo com Patrícia Alves Barreto, também integrante da comissão de Naque, em alguns casos está demorando até sete meses. “Se a Fundação Renova tivesse andado com o processo como deveria, não teria gerado essa manifestação”, observou à reportagem.
Valeriana afirmou que a entidade está pressionando as vítimas que não têm dificuldade de comprovar o dano a aderir ao sistema. “A sentença é para quem não tem a documentação. Só que a Fundação Renova está trabalhando ao contrário. Ela quer forçar o atingido, todos eles, está ligando para eles, para forçar eles a aderirem ao processo”, contou.
O Ministério Público de Minas pediu ontem à Justiça a extinção da Fundação Renova, alegando desvio de finalidade e ineficiência, depois de rejeitar quatro vezes consecutivas as suas contas.
Para o Ministério Público Federal (MPF), o novo Sistema Simplificado de Indenização seria fruto de “colusão”, algo como conluio, entre as mineradoras e a advogada Richardeny, com a participação do juiz Mário de Paula, para que as empresas rés paguem indenizações inferiores às devidas às vítimas da devastação causada pela onda de lama.
Esse entendimento foi detalhado no mandado de segurança impetrado pelos procuradores em 27 de outubro do ano passado – ainda não julgado – “contra as reiteradas condutas abusivas” do magistrado, segundo o MPF.
No entanto, os argumentos foram rechaçados pela desembargadora Daniele Maranhão Costa em decisão do dia 9 de novembro de 2020, proferida no primeiro recurso do MPF apresentado contra esse modelo de indenização. Nele, os procuradores usaram argumentos similares aos do mandado de segurança.
A BHP Billiton afirmou, por meio de nota, que “refuta veementemente as graves alegações feitas pelos procuradores do Ministério Público Federal”.
“A 12ª Vara Federal proferiu a decisão, sendo ela cumprida pelas empresas e a Fundação Renova. A BHP informa que sempre respeitou e cumpriu integralmente as decisões judiciais proferidas pela justiça brasileira e respeita a independência das Comissões de Atingidos e seus advogados, o que será comprovado em juízo. A BHP ainda informa que nunca fez qualquer tipo de acordo com advogados locais antes de essas ações serem impetradas nesses municípios”, ressaltou a mineradora. Já a Samarco não quis comentar o assunto.
A Vale informou que “a advogada Richardeny Luiza Lemke Ott jamais prestou qualquer tipo de serviço” à mineradora, mas não se manifestou sobre o mandado de segurança. A reportagem tentou falar com a advogada diversas vezes por telefone, WhatsApp e por e-mail, mas não obteve retorno até a publicação.
A Fundação Renova ressaltou, por meio de nota, que “no processo de reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, sempre buscou dar respostas definitivas para todos os atingidos no menor prazo possível”.
“Desta forma, desde agosto de 2020, a partir de decisão da 12ª Vara da Justiça Federal, tem avançado no pagamento de indenizações para os casos de difícil comprovação de danos em que havia grande dificuldade de tratamento pelo Programa de Indenização Mediada (PIM)”, acrescentou.
Até o dia 19 deste mês, 16 municípios já aderiram ao novo modelo – nove no Espírito Santo e sete em Minas Gerais. De acordo com informações da Renova, do primeiro pagamento, em setembro do ano passado, a janeiro deste ano, mais de 5 mil pessoas receberam indenizações por meio desse método, ultrapassando R$ 435 milhões.
Os valores estabelecidos pela Justiça, com quitação única e definitiva, variam de R$ 23 mil a R$ 567 mil. A adesão é facultativa. O pagamento ocorre após a homologação do acordo pelo juiz responsável pelo caso.
“Perdão ao excelentíssimo juiz”
Após a manifestação em Naque, no entanto, o magistrado teria ameaçado suspender as homologações. A informação veio, primeiro, dos próprios advogados das vítimas. Eles fizeram circular um informe nos grupos de WhatsApp afirmando que os processos foram paralisados por causa do protesto, conforme teria anunciado o juiz a eles.
Na reunião do dia 21 – que contou também com a presença da advogada Bruna Pereira, que assina o comunicado acima –, a representante da Fundação Renova, Viviane Aguiar, reforça o recado dado pelos advogados dos atingidos:
“Ele [o juiz] disse que não vai homologar nenhum caso, não sabe quando ele vai voltar a homologar. Tem algumas comissões que já peticionaram, ele não vai sentenciar, que ele vai fazer um termômetro, se a coisa continuar como está, isso vai acabar”, ameaçou.
“Doutor Mário mesmo pediu que eu fizesse essa conversa com vocês até para que ele tenha um direcionamento de como que a gente vai seguir”, ressaltou.
“Vamos voltar a ganhar a confiança aí do doutor Mário pra ver se ele nos próximos dias homologa o que tem. (…) se ele não vai deixar subir, a Fundação não tem o que fazer. O processo vai ficar parado. Mas eu acredito que ele daqui pra frente vendo a postura da gente ele vai reconsiderar”, reforçou Viviane ao fim da reunião.
A conversa terminou com Valeriana e o pastor Wanderson Michel pedindo desculpas em nome da comissão de Naque por terem feito uma manifestação pacífica, conforme eles relataram à reportagem. “Mais do que palavras, a gente precisa ter atitudes”, respondeu Viviane aos dois, durante o encontro on-line.
Após essa reunião, intimidados, eles divulgaram vídeos pedindo “perdão” aos atingidos de toda a bacia do rio Doce, de Minas ao Espírito Santo, e também ao juiz Mário de Paula:
“A comissão de Naque quer diretamente pedir perdão a vocês por ter atrapalhado o processo, embora não tenha sido essa a nossa intenção. E hoje, nós estamos aqui humildemente direcionando também ao excelentíssimo senhor juiz da 12ª Vara, o excelentíssimo senhor juiz doutor Mário, pedindo desculpa por esse transtorno todo porque verdadeiramente ele tem nos apoiado nessa questão, mas nem todos nós temos a expertise que os mais altos graduados têm”, diz o pastor.
A assessoria de comunicação da Fundação Renova informou à reportagem que, por não ter tido acesso ao áudio da gravação, não irá se manifestar sobre o caso. A Pública solicitou à assessoria de comunicação da Justiça Federal uma entrevista com o juiz Mário de Paula. Sem resposta, as perguntas foram enviadas por e-mail e não houve retorno até a publicação.
Em vídeo, integrantes da comissão pedem desculpas à comunidade após pressão recebida em reunião
Honorário de R$ 450 mil
A comissão de atingidos de Naque foi uma das primeiras, ao lado da de Baixo Guandu, a aderir ao Sistema Simplificado de Indenização. As duas, representadas pela advogada Richardeny Lemke, inauguraram o método.
Até fevereiro de 2020, Richardeny trabalhava como assessora jurídica da prefeitura de Baixo Guandu. Ela abriu seu escritório de advocacia no dia 2 de junho, um mês antes de ganhar a primeira ação como representante da comissão de atingidos do município. Ela é procuradora de, pelo menos, outras quatro comissões que já aderiram ao sistema: Linhares, São Mateus, Itueta e Itapina (distrito de Colatina).
“Enquanto diversos atores se juntaram a “grupelhos radicais” e passaram os últimos anos na mídia com discursos de efeito, porém vazios de conteúdo, foi a referida advogada quem, em termos práticos, criou as condições fáticas e jurídicas para que a presente matriz de danos pudesse ser estabelecida”, elogiou Mário de Paula na sentença de Baixo Guandu.
Nela, o juiz estipulou honorário de R$ 450 mil a Richardeny, a serem pagos pelas empresas rés. “Trata-se de valor singular, rigorosamente pontual, em razão do ineditismo, pioneirismo e importância da demanda de Baixo Guandu, como precedente positivo, para toda a bacia do Rio Doce”, justificou o magistrado.
Apesar de o juiz ter dado o mérito à advogada e aos atingidos de Baixo Guandu por terem encontrado “um novo caminho”, “uma nova via de acesso à política indenizatória” para a reparação às vítimas de difícil comprovação de danos, a ideia teria partido da Fundação Renova, conforme relatou à Pública a coordenadora da comissão da cidade, Lucilene Angélica Soares.
“Pra gente tentar conseguir essa sentença, o que a gente fez: a própria Renova teve reuniões conosco e falou: ‘Vocês só vão conseguir provar que vocês são atingidos depois de vocês formalizarem essa comissão, justamente escolher um advogado para representar vocês como procurador e fazer uma matriz de danos’”, lembrou.
Em entrevista à Folha de S.Paulo no dia 4 de novembro do ano passado, o presidente da Renova, André de Freitas, diz que o modelo foi sugerido pela fundação.
“Para alguns casos, conseguimos construir validações alternativas, mas em alguns casos você não consegue fazer. Então, fomos estudar outros desastres pelo mundo e trouxemos algo que, na tradução, se chama Justiça Possível. A lógica é que tem uma hora que a técnica [para identificar os direitos] não dá conta de validar algumas realidades. Isso resultou numa decisão da 12ª Vara Federal [do juiz Mário de Paula] que estabeleceu um mecanismo pioneiro para a indenização dessas pessoas com baixíssimo poder de comprovação. Houve uma delimitação de casos que existem para serem indenizados”, afirmou ao jornal.
Segundo o procurador André Sperling, o MPF considera os valores das indenizações “ridículos, valores baixos, valores que absolutamente não fazem reparação integral”. As críticas foram feitas durante coletiva de imprensa no dia 29 de outubro do ano passado, sobre os cinco anos da tragédia de Mariana.
Os valores, chancelados pelo juiz da 12ª Vara, estão sendo questionados também pelos atingidos: “Ele deu uma sentença de quitação para todos os danos. Antes dele dar a sentença, teria que ter um cálculo de danos que a gente nem sabe. Não tem nenhum estudo comprovado que nosso dano pode ser mais do que isso, ou pode ser menos do que isso que o juiz deu”, observou o pescador de Povoação, distrito de Linhares, no Espírito Santo, Walkimar Fioreti.
A pescadora Patrícia Barreto, que entrou na comissão de Naque em março de 2020, disse que foi saber sobre a quitação final – ela é contra –, apenas ao longo do processo. “Nem todos os membros da comissão têm acesso à realidade do que está acontecendo verdadeiramente, e com tudo isso os atingidos ficam prejudicados pela falta de informação”, afirmou, acrescentando que muitas pessoas estão aderindo ao sistema sem saber da quitação.
“Até eu levei para os atingidos que a plataforma seria uma maravilha, só que na verdade está dando a quitação final. Eu não sou a favor da quitação final. É um absurdo, eu falo por mim. Aceitar a quitação final por quê? O meio ambiente não vai voltar, ou mesmo a matéria-prima do produtor rural, do pescador, da lavadeira, do areeiro, de todas as categorias, não vai voltar”, lamentou.
Atingidos sugerem assédio de advogados
A sentença inaugurada em Baixo Guandu virou modelo para outros municípios e mudou os rumos do que estava sendo construído no sistema judiciário referente à tragédia de Mariana até então. Conforme acordo homologado pelo juiz Mário de Paula, em agosto de 2018, entre as mineradoras e os Ministérios Públicos, Defensorias Públicas e as Advocacias Públicas da União, do Espírito Santo e de Minas Gerais, as empresas rés deveriam contratar assessorias técnicas independentes para orientar as vítimas a buscar reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem do Fundão.
De outubro de 2018 a julho de 2019, com a ajuda do Fundo Brasil de Direitos Humanos – expert do MPF –, os atingidos de 18 territórios da bacia do rio Doce escolheram as suas assessorias técnicas, mas até hoje as contratações não saíram do papel devido a obstáculos colocados pelas empresas rés. O MPF, o Ministério Público de Minas Gerais e as Defensorias Públicas pediram que o juiz determinasse as contratações, mas o magistrado ainda não se manifestou. A entidade irá voltar a campo para uma nova consulta aos atingidos.
Sem o respaldo das assessorias técnicas independentes, e com a inauguração do Sistema Simplificado de Indenização, os moradores da bacia do rio Doce passaram a ser assediados por advogados particulares de todas as partes.
A pressão, conforme narraram os atingidos ouvidos pela reportagem, chega tanto às lideranças, para que elas convençam a comunidade a aderir ao sistema, como também às vítimas de municípios que já têm acesso ao novo fluxo.
Isso porque, para ingressar no modelo, a pessoa deve ser representada por advogado ou defensor público, segundo sentença judicial, pois apenas esses profissionais podem acessar e preencher os dados no sistema disponível em plataforma on-line da Fundação Renova.
O juiz Mário de Paula tem estabelecido em suas decisões que os advogados particulares podem cobrar até 10% do valor das indenizações individuais devidas às vítimas. Como muitos advogados que representam as comissões passam a ser contratados também pelos atingidos individualmente, a adesão ao novo modelo pode significar o recebimento de honorários expressivos.
Além das contratações particulares, como procuradores das comissões de atingidos, eles recebem os honorários de sucumbência – que variam de R$ 100 mil a R$ 150 mil por acordo – pagos pelas empresas rés, estabelecidas nas decisões do magistrado.
O presidente da Associação de Pescadores de Conselheiro Pena e Região, Lélis Barreiro, disse que “uma enxurrada de advogados de outras cidades está indo para Conselheiro Pena”. Ele estima que foram abertos 28 escritórios de advocacia no município depois que o novo sistema foi inaugurado.
Liderança na região e membro da comissão de atingidos da cidade, Barreiro diz que está sendo assediado pelos advogados para que Conselheiro Pena entre no modelo. “Eu conheço todos os advogados, eles me ligam para me fazer parceria, para aderir ao processo da 12ª Vara. Não sei como eles conseguem meu telefone. Eu devo ter aqui no meu celular uns 15 telefones de advogados”, contou.
“O absurdo maior que eu vejo nisso tudo é que o advogado está vindo para aderir ao processo da 12ª Vara, não briga pelos direitos dos atingidos. Provoca pânico e discussão entre os atingidos. Coloca atingido contra o outro, coloca advogado contra o outro ou a comissão contra outra. Está dando uma encrenca danada”, acrescentou Barreiro.
Diante desse cenário, as vítimas da bacia do rio Doce voltaram a se reunir presencialmente, com número-limite de participantes devido à pandemia, para debater os problemas trazidos pelo Sistema Indenizatório Simplificado. Três encontros ocorreram este ano, e neles as denúncias de assédio por advogados particulares têm sido constantes.
Conforme relataram alguns atingidos nos encontros, alguns advogados chegam na comunidade e oferecem 5% de seus futuros honorários para as lideranças, “com o objetivo de corrompê-las e motivá-las a falar para os demais atingidos que confiam nos advogados e que não haverá mais pagamento nenhum fora da judicialização, que a Fundação Renova vai cortar tudo e que a única alternativa é aderir ao sistema de indenização da 12ª Vara”. As atas das reuniões serão entregues à seção mineira da Organização dos Advogados do Brasil (OAB), em Belo Horizonte, segundo Barreiro.