Amazônia, um filho teu não foge à luta…

Entrevista com Dom Erwin Kräutler, Bispo do Xingu e Presidente do Cimi Nathana Simões Jornal “Voz de Nazaré” Incansável, Dom Erwin Kräutler diz que a discussão sobre Belo Monte está […]

Entrevista com Dom Erwin Kräutler, Bispo do Xingu e Presidente do Cimi

Nathana Simões
Jornal “Voz de Nazaré”

Incansável, Dom Erwin Kräutler diz que a discussão sobre Belo Monte está apenas começando.

“Recuso-me a afirmar que essa luta está perdida”. A declaração é de Dom Erwin Kräutler, Bispo do Xingu e presidente do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), sobre a Usina Hidrelétrica de Belo Monte. O prelado que atua na região há 45 anos, quase 30 deles dedicados como Bispo, conhece como ninguém a realidade do povo amazônida. Em entrevista exclusiva a Voz de Nazaré, ele reitera os motivos pelos quais Belo Monte não é imprescindível para o desenvolvimento do Brasil, e que existem diversas alternativas, não somente de energia, mas de respeito à dignidade, que poderiam ser adotadas. Para ele a “luta” para tentar impedir que a usina se torne uma realidade está apenas no começo.

Belo Monte não é apenas uma discussão que já perdura 30 anos, é uma incógnita que se arrasta há décadas, tanto para as populações diretamente afetadas quanto para o resto do Brasil. Para os que defendem a sua construção, Belo Monte trará consigo prosperidade, mas  para outros, como Dom Erwin, não há dúvida de que a usina afetará profundamente a vida de comunidades ribeirinhas, populações indígenas e o povo da parte mais baixa da cidade de Altamira, e por consequência, cada cidadão brasileiro.

1) Após o leilão de concessão do aproveitamento de Belo Monte, do último dia 20, o senhor acredita que as chances de conseguir impedir a sua construção ficaram mais distantes? Ou o senhor acredita que ainda é cedo para dizer que a luta está perdida?

Dom Erwin: Recuso-me a afirmar que essa luta está perdida. O próprio Juiz Federal de Altamira, Antônio Carlos Almeida Campelo, que concedeu as três liminares na véspera do leilão admite que estamos apenas no início de uma verdadeira guerra judicial “nesta soma de absurdos que foi o leilão de Belo Monte”[1].  Continuo a acreditar que, finalmente, a Carta Magna do Brasil seja respeitada. A planejada usina hidrelétrica Belo Monte é a primeira no Brasil que, se for construída, aproveita recursos hídricos de áreas indígenas (Paquiçamba e Arara). Em um caso desse tipo a nossa Constituição Federal exige no seu Artigo 176 uma lei específica[2]. E essa lei regulamentadora simplesmente não existe. Nem sequer foi discutida no Congresso Nacional. Ao lado da denúncia de “irregularidades ambientais”, este é o argumento primordial das ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público Federal (MPF) e de outras entidades, entre as quais o Cimi (Conselho Indigenista Missionário). O Desembargador Jirair Meguerian, presidente do Tribunal Regional Federal, 1ª Região, cassou todas as liminares num tempo recorde, para possibilitar o leilão. O que realmente espanta é que Jirair Meguerian em nenhum momento contestou os argumentos. Justificou apenas que a decisão do MPF por ele derrubada se baseou tão somente em “conjecturas”. Essa alegação não deixa de ser uma indicação de que o meritíssimo não havia lido as 50 (cinquenta) páginas da decisão. Deixou-se influenciar por outros parâmetros. Ora, se um Artigo da Constituição Federal é considerado mera “conjectura” (= fantasia, hipótese) então o Brasil está à beira da falência de Estado de Direito. A Constituição Federal foi desrespeitada, violada. Essa é a verdade! Nem o presidente da República nem um juiz estão acima da Constituição Federal. Se assim for, o Brasil já se tornou ditadura.
Até o insuspeito Senador Pedro Simon faz um alerta ao Presidente da República. Cobra explicações ao povo brasileiro sobre o processo de licitação e declara textualmente: “Precisamos de energia, mas a controvérsia em torno de Belo Monte espanta. E não é de agora. Nem os militares, com o Congresso fechado, ousaram levar adiante a obra[3].

2) Na semana passada, o diretor de licenciamento do IBAMA, Pedro Bignelli, afirmou ao site Agência Brasil, que nenhuma terra indígena seria afetada com a construção de Belo Monte. O que senhor acha desta declaração?

Dom Erwin: Essa declaração já conheço há tempo pois foi divulgada em verso e prosa pela mídia, mas não deixa de ser uma falácia. O IBAMA (Pedro Bignelli) e Maurício Tomasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), sempre argumentaram que nenhuma área indígena será inundada. Esconderam, porém, o outro lado da moeda.
O painel de 40 especialistas[4] divulgou já ano passado seu parecer sobre a viabilidade de Belo Monte. O documento analisa entre outras coisas os impactos causados aos povos indígenas. O Governo, lamentavelmente, não se deixou impressionar.
Em primeiro lugar, se Belo Monte for construída, a obra será realizada no limite de terras indígenas com inegáveis impactos sociais e culturais causados pela proximidade do canteiro de obras e de pessoas estranhas às aldeias.
Ao longo de cerca de 100 km, a volta Grande do Xingu sofrerá “redução da vazão e rebaixamento do lençol freático com impactos biológicos originando um Trecho de Vazão Reduzida (TVR), com vários impactos biológicos e sociais associados, como os problemas para a navegação e os efeitos sobre as florestas inundáveis”. Essa perda de recursos naturais e hídricos prejudicará diretamente os povos indígenas.
Áreas indígenas não serão inundadas. Sim! O contrário acontecerá: aos indígenas será cortada a água! Como viver no seco? De que se alimentarão, já que “o conjunto das espécies que vivem neste trecho do rio não sobreviverá sob um regime de vazão”, em outras palavras, se aos indígenas falta o peixe?
Não é macabro cinismo afirmar que nenhuma terra indígena será afetada, se aos povos indígenas aí existentes é arrancada a condição de sobrevivência?

3) Alguns especialistas apontaram que apesar de Belo Monte ter um custo elevadíssimo, ela será a Usina menos produtiva do Brasil, e deve funcionar com apenas 40% da capacidade. Apesar dessas críticas, o Governo persiste em considerar Belo Monte imprescindível para o desenvolvimento do Brasil. Na sua avaliação, porque há esta insistência?

Dom Erwin: São dois fatores que causam essa insistência. Um é de ordem política o que o Governo se nega a admitir. Mas quem não sabe que Belo Monte é a menina dos olhos do PAC 1? Se o Governo levar uma derrota, põe em risco, no entender da cúpula do PT e do presidente, a eleição da Dilma Rousseff que, como então ministra de Minas e Energia concebeu esse plano e o deu à luz. Num contexto como esse não há mais clima para uma discussão serena. E o próprio presidente avisa: tem que ser feito, mesmo que seja “de qualquer jeito”, até “sozinho se for necessário”. Assim ele não tem como negar que a questão tem conotação política, pois Lula mesmo o revela, quando diz com todas as letras: “As usinas de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio são coisas que nossos adversários torcem para não dar certo”[5]. Assuntos e decisões tão importantes e de consequências irreversíveis para a Amazônia, o Brasil e o planeta Terra, são banalizados ao nível de queda de braço político-partidário e ainda eleitoreiro, ou então à briga entre a torcida de um time e outro. Até que ponto chegamos?
O segundo fator é “econômico” e esse abarca o maior número de mentiras, pois desde o início se quis vender o projeto como medida necessária para evitar o “apagão”. Fala-se de energia barata para as casas dos pobres. Mera demagogia! Na realidade a quem interessa Belo Monte são as grandes empresas, especialmente do setor mineral e, naturalmente, as firmas barrageiras que mais uma vez querem auferir somas astronômicas e empregar seu maquinário e “know how” num modelo tradicional de construção de hidrelétrica com barramentos, imensos paredões de cimento, diques e canais de derivação, repetindo os erros do passado, alagando áreas imensas e arrasando florestas.

4) Algumas pessoas defendem uma discussão em torno da busca de energias alternativas: energia solar, por exemplo. O senhor acredita que esta é uma tendência global e que o Brasil poderia sim pensar em investir mais neste tipo de alternativa?

Dom Erwin: O Brasil está perdendo uma enorme chance de inovar. Nessa época de preocupação mundial em relação ao aquecimento climático em um ritmo nunca visto, o Brasil poderia dar ao mundo um eloquente exemplo de cuidado mais esmerado com o meio-ambiente e, ao mesmo tempo, de avanço na busca de fontes alternativas de energia, como a energia solar e eólica. Não nos faltam universidades, centros de pesquisa, e cientistas de ponta na busca de tais alternativas. Falta incentivo para tal. É mais fácil gritar “o país precisa de Belo Monte” do que investir em estudos mais aprofundados que a médio prazo chegariam sem dúvida a conclusão de que não precisamos de nenhuma hidrelétrica Belo Monte, pois nesta Amazônia tropical temos energia solar de sobra, e não temos necessidade de alagar nem sequer um campo de futebol, de sacrificar um rio e acabar com uma encantadora paisagem.

5) O senhor levou esta questão para a Ad Limina?

Dom Erwin: Sim, levamos! Digo “levamos”, pois não fui apenas eu quem apresentou a preocupação pelo futuro da Amazônia, mas estivemos lá todos os bispos do Regional Norte II da CNBB e assim o assunto pertencia a todos. Havia dois momentos de tratarmos das hidrelétricas na Amazônia. O primeiro foi a Coletiva de Imprensa, promovida pela Radio Vaticano no dia 15 de abril, em que falamos abertamente sobre os projetos de hidrelétricas nos rios Xingu e Tapajós e suas consequências imprevisíveis. O segundo momento foi a audiência particular com o Papa. Dom Esmeraldo de Santarém encontrou-se com o Papa pessoalmente naquele mesmo dia 15 de abril e o Papa pediu-lhe que deixasse algo por escrito a respeito das ameaças ao Rio Tapajós. Eu mesmo fui recebido pelo Papa no dia 16 de abril, dia de seu aniversário natalício, e “peguei o gancho” deixado por Dom Esmeraldo e expliquei ao Papa toda a problemática que Belo Monte irá trazer para os povos do Xingu, se o projeto realmente for executado. Aproveitei para entregar-lhe em mãos o texto que eu tinha preparado para a Coletiva de Imprensa. Posso revelar que a nossa angústia a respeito do futuro da Amazônia e, de modo especial, dos nossos rios Tapajós e Xingu tocaram o Papa profundamente.

6) Nos últimos meses muitas ações foram feitas para tentar impedir que Belo Monte se torne uma realidade, além de protestos o senhor chegou a escrever uma carta e se encontrar com o próprio Presidente Lula, agora o que o senhor pretende fazer, quais serão as próximas ações?

Dom Erwin: Na realidade não se trata de novas ações ou outras cartas ao Presidente. Vou simplesmente continuar a defender, em todas as ocasiões que se apresentam, os povos do Xingu, os povos indígenas, os ribeirinhos e o povo de Altamira que será tremendamente atingido, se Belo Monte tornar-se realidade. Enquanto Deus me der fôlego não deixarei de empenhar-me, de modo especial em favor dos mais prejudicados e necessitados. Quero repetir sempre com Dom Oscar Romero: “Como pastor, estou obrigado por mandato divino de dar a vida por aqueles que amo”.

7) Para finalizar gostaria que o senhor falasse um pouco sobre a importância da presença da Igreja nessa discussão, e também do cidadão comum, o senhor acha que todos deveriam se posicionar sobre o assunto?

Dom Erwin: Quero apenas citar um trecho do Documento de Aparecida que lembra a visita do Papa ao Brasil em 2007:
“Em seu discurso aos jovens, no Estádio do Pacaembu, em São Paulo, o Papa Bento XVI chamou a atenção sobre a “devastação ambiental da Amazônia e as ameaças à dignidade humana de seus povos” e pediu aos jovens “um maior compromisso nos mais diversos espaços de ação”” (DAp 85).
Estou convicto de que não apenas nossa juventude é interpelada a assumir esse “maior compromisso”, mas todos nós. A faixa etária não importa.
No Símbolo Apostólico professamos: “Creio em Deus, Pai Todo-poderoso, Criador do céu e da terra”. A fé no Pai Criador implica no amor e no zelo por tudo que Ele criou e na responsabilidade a ser assumida pelo lar (ecologia = do grego: “ciência do lar”) que Ele nos confiou, também em vista das futuras gerações.


[1] Em entrevista a João Carlos Magalhães, da Folha, neoliberalismo.wordpress.com/2010/03.

 

[2] Art. 176 – As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. Parágrafo 1º – A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.

 

[3] O Estado de São Paulo, Economia & Negócios, 23 de abril de 2010.

 

[4] O painel de especialistas abrange 40 membros, entre os quais Francisco de Moral Hernandez, engenheiro elétrico da Universidade de São Paulo (USP), Sônia Magalhães, antropóloga da Universidade Federal do Pará (UFPA), Jorge Molina Carpio, hidrólogo,  Geraldo Mendes dos Santos, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Paulo Buckup, presidente da Sociedade Brasileira de Ictiologia, Antônio Carlos Magalhães, antropólogo, Nirvia Raena, professora da UFPA, Oswaldo Sevá, professor da Universidade Estaduald de Campinas (UNICAMP), Hermes Fonseca de Medeiros, doutor em ecologia, professor da UFPA, Philip Fearnside, do Departamento de Ecologia do INPA, Glenn Switkes +, International Rivers Network.

 

[5] O Estado de São Paulo, Economia & Negócios, 22 de abril de 2010: O Presidente da República afirmou isso em entrevista depois de almoço no Itamaraty com o presidente do Líbano, Michel Sleiman.

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