Da resistência local à luta global : como nasceu a ideia de um movimento internacional de atingidos

Luiz Dalla Costa, da Coordenação Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens e um dos fundadores do MAB, conta como as injustiças no Brasil e o espírito internacionalista dos anos 1980 formaram as bases de um movimento latino-americano de atingidos por barragens, com desejo de expandir a organização para todos os continentes

Atingidos tomam canteiro de obras da represa El Zapotillo, no México, em 2010. Foto: Alexânia Rossato / MAB
Atingidos tomam canteiro de obras da represa El Zapotillo, no México, em 2010. Foto: Alexania Rossato / MAB

Como surgiu a articulação dos atingidos por barragens até chegar à ideia de criar encontros nacionais e, mais tarde, internacionais?

Luiz Dalla Costa: A história começa no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, especialmente no Sul do Brasil. Na bacia do Rio Uruguai havia a proposta de construção de mais de 20 barragens. As populações começaram a reagir, porque estavam perdendo suas casas, suas terras, igrejas, escolas, redes de vizinhança. Isso gerou um sentimento de injustiça e a necessidade de se organizar.

Ao mesmo tempo, já existiam outras regiões no Brasil atingidas por grandes hidrelétricas: Tucuruí (PA), Sobradinho (BA), Itaipu (PR – Brasil/Paraguai), Balbina (AM). Mas não havia uma política nacional para os atingidos. O que existia era uma lei de 1941, que garantia indenização apenas para proprietários. Quem era agricultor sem o título da terra, posseiro, ribeirinho, ficava sem nada. Foi essa combinação de injustiça, perda de território e ausência de direitos que deu origem às primeiras organizações regionais de atingidos.

E como essa luta, inicialmente regional e local, virou um debate nacional e até internacional?

Luiz Dalla Costa: Tem dois fatores centrais. Primeiro, a experiência concreta de injustiça no Brasil inteiro. Segundo, o momento histórico. Estamos falando dos anos 1980, com a ditadura militar perdendo força, redemocratização e, ao mesmo tempo, uma forte influência da Teologia da Libertação, das Comunidades Eclesiais de Base e de intelectuais comprometidos.

“A gente já tinha uma visão internacionalista. Muitos militantes eram formados por ideias de solidariedade, socialismo e luta anti-imperialista. Olhávamos para o que acontecia na Nicarágua, Cuba, El Salvador, para o fim das ditaduras no Cone Sul. Então, desde cedo o MAB não se via apenas como uma luta local contra barragens, mas como parte de um projeto de transformação social mais amplo”.

Também começamos a fazer contatos com atingidos de outros países. Primeiro, com argentinos e paraguaios por causa de Itaipu, depois com pessoas  da Índia, Chile e Estados Unidos. Isso foi criando uma consciência: “esse problema não é só nosso; é global”.

Primeiro Encontro Nacional e primeiros passos da articulação internacional

E quando essas articulações se transformam em encontros organizados?

Luiz Dalla Costa: Em 1987, aconteceu a primeira Reunião Nacional dos Atingidos por Barragens. Em 1989, o I Encontro Nacional e, em 1991, o I Congresso do MAB: é aí que o MAB é fundado oficialmente como movimento nacional.

Paralelamente, começou a surgir a articulação internacional. Primeiro em pequenas visitas e intercâmbios. Em 1988, por exemplo, eu fui aos Estados Unidos participar de um encontro com movimentos que discutiam o papel do Banco Mundial no financiamento de grandes barragens. Também participamos de reuniões na Alemanha, em espaços da ONU, denunciando violações de direitos.

Primeiro Encontro Internacional – Curitiba, 1997

Então, chegamos ao primeiro encontro internacional. Como ele aconteceu?

Luiz Dalla Costa: Foi em Curitiba, em 1997. Ainda era algo pequeno,  menos de 100 pessoas, mas simbólico. Participaram representantes do Brasil, Índia, Chile, Argentina, redes da Europa e até Estados Unidos. O objetivo principal foi trocar experiências e entender que o problema das barragens era global.

Duas decisões importantes saíram dali: criar o 14 de março como Dia Internacional de Luta Contra as Barragens (no Brasil já era dia nacional desde 1991, em memória de uma liderança assassinada) e reconhecer que as lutas eram parecidas em todos os continentes — camponeses expulsos, povos indígenas ameaçados, empresas multinacionais lucrando.

Foi ali que a semente do que mais tarde viraria o Movimiento de Afectados por Represas (MAR) começou a aparecer, ainda sem esse nome.

I Encontro Internacional dos Atingidos por Barragens, em 1997 na cidade de Curitiba. Foto: Acervo MAB.
I Encontro Internacional dos Atingidos por Barragens, em 1997 na cidade de Curitiba. Foto: Arquivo MAB

Base teórica e influência da Igreja e intelectuais

Havia influência da Igreja e do meio acadêmico nesse processo?

Luiz Dalla Costa: Muita. Bispos como Dom Demétrio Valentini, padres ligados à Comissão Pastoral da Terra (CPT), Comunidades Eclesiais de Base e Teologia da Libertação participaram ativamente. Muitos dos primeiros encontros de atingidos aconteceram dentro de paróquias.

Do lado intelectual, pesquisadores como Carlos Walter Porto-Gonçalves, Carlos Vainer, Paulo Schilling e outras universidades ajudaram a formular teorias sobre território, energia, capital internacional e direitos dos povos. Isso deu base política e acadêmica ao movimento.

Depois do encontro de Curitiba em 1997, como evolui essa articulação mundial dos atingidos?

Luiz Dalla Costa: O encontro de Curitiba foi importante porque mostrou que as lutas eram parecidas no mundo todo. Depois disso, surgiram duas frentes: continuar fortalecendo o MAB no Brasil e ampliar os laços internacionais. Entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000, nós começamos a participar de debates na ONU, no Banco Mundial, na Alemanha, nos EUA, na Índia, denunciando violações e pressionando contra financiamentos de barragens.

Segundo Encontro Internacional – Tailândia, 2003

E o segundo encontro internacional, como foi?

Luiz Dalla Costa: Aconteceu em 2003, na Tailândia, numa comunidade chamada Rasi Salai, na região do Rio Mekong. Lá, as populações estavam resistindo a represas, muito parecido com nossas lutas. Foi um encontro maior que o de Curitiba: mais países, mais movimentos da Ásia, África, América Latina e Europa.

O espírito era diferente do primeiro. Em Curitiba ainda era mais “vamos nos conhecer”. Na Tailândia já havia uma análise mais profunda: O impacto das barragens é global; o problema está ligado ao neoliberalismo, privatização da água e energia; A luta precisava ser articulada entre os países do Sul. Ali se fortaleceu a ideia de solidariedade internacional e de manter o 14 de março como dia internacional de luta, mas ainda era uma rede, não um movimento.

Mudança histórica e contradições

Esse encontro se deu no início dos governos progressistas na América Latina, certo?

Luiz Dalla Costa: Exato. Era 2003: início do governo Lula no Brasil – Evo Morales ainda não -, mas havia Chávez na Venezuela, movimentos fortes na Bolívia, Equador e Argentina pós-crise de 2001. Ao mesmo tempo, ainda estávamos sob os efeitos do neoliberalismo dos anos 1990 (privatizações, FMI, dívida externa). Por isso, havia uma tensão: de um lado, esperança com governos populares; de outro, empresas e bancos pressionando por grandes obras.

E quando nasce a percepção de que era preciso mais do que encontros? Que era necessário um movimento?

Essa consciência começa a surgir entre 2003 e 2010. 

Percebemos que, se voltamos para casa depois de cada encontro e nada fica estruturado, isso não é movimento. É só rede. E as empresas continuavam avançando, com mais força ainda – Odebrecht, Camargo Corrêa, Engevix, empreiteiras asiáticas… Então, ou a gente se organiza de forma permanente, ou só reage. Mas a virada mesmo veio no Terceiro Encontro Internacional – Temacapulín, México, 2010.

Terceiro Encontro Internacional – México, 2010: o ponto de virada

O que aconteceu ali para mudar tudo?

Luiz Dalla Costa: Esse encontro foi diferente desde o lugar. Aconteceu em Temacapulín, um povoado pequeno no México, que seria alagado pela barragem de El Zapotillo. A comunidade resistia. Então, o encontro não foi só de debate, foi dentro de um território em luta.

Dois grandes acontecimentos: determinação de “fim de rede, início de movimento”. Muitos já diziam: não basta denunciar de tempos em tempos. Precisamos de um movimento latino-americano permanente, com formação, coordenação e plano político; ação direta contra a barragem. Paramos o encontro e fomos até a obra. Entramos no canteiro, mesmo com repressão. A mensagem era: “o mundo está olhando para Temacapulín.” Foi ali que começamos a dizer claramente: “Tem que virar movimento, não só encontro.”

Durante o III Encontro Internacional, no México, atingidos tomam o canteiro de obras da barragem de El Zapotillo. Foto: Acervo MAB.
Durante o III Encontro Internacional, no México, atingidos tomam o canteiro de obras da barragem de El Zapotillo. Foto: Arquivo MAB

E já se falava em nome, em estrutura?

Luiz Dalla Costa: Ainda não como MAR formalmente, mas foi ali que se decidiu organizar um processo de longo prazo. Tiramos três resoluções principais: criar processos de formação continental, não só eventos; montar uma coordenação provisória latino-americana e; construir um movimento de atingidos da América Latina, com base, símbolos, princípios e estratégia de luta.

Como nasceu o MAR: da decisão política à construção de um movimento continental

No encontro do México (2010), aparece a ideia de ir além das redes e construir um movimento continental. O que aconteceu depois disso? Como essa decisão virou prática concreta?

Luiz Dalla Costa: Depois de Temacapulín, a gente entendeu: “Se queremos um movimento, temos que organizar, formar gente e criar estrutura.” A partir de 2010 começamos um processo lento, paciente, de seis anos, para construir o que hoje é chamado de MAR — Movimiento de Afectados por Represas. Não foi algo lançado da noite para o dia. A gente decidiu: antes de anunciar qualquer movimento, vamos construir base, formar lideranças, visitar territórios, entender a realidade de cada país.

O movimento continental americano se fortaleceu nas lutas em comum (Cuba, 2024). Foto: Acervo MAB
O movimento continental americano se fortaleceu nas lutas em comum (Cuba, 2024). Foto: Arquivo MAB

Como funcionava esse processo de formação?

Luiz Dalla Costa: Foi criado um método. Chamamos de “Escola de Formação da Realidade Latino-Americana”. Ela tinha duas partes em cada país: Estudo teórico e político – história da energia na América Latina, papel das hidrelétricas, imperialismo, modelo neoliberal, povos indígenas, dívida externa, governança da água; Vivência territorial – visitar os povos atingidos em cada país, participar de assembleias, pescar, caminhar, ouvir histórias, dormir nas casas das famílias. Essa formação aconteceu na Colômbia, Guatemala, México, Brasil e Cuba. Em cada país ficávamos entre sete e 10 dias.

E a organização? Formaram uma coordenação?

Luiz Dalla Costa: Sim. Ao final da primeira etapa da formação, em 2012, criamos uma Coordenação Provisória Continental. Ainda sem nome oficial de MAR, mas já com o compromisso de organizar o movimento em toda América Latina Essa coordenação tinha representantes de: Brasil (MAB), México (Temacapulín e movimentos indígenas), Colômbia (povos afro e camponeses), Guatemala (Conselho dos Povos Maias), Chile, El Salvador, Argentina e Peru.

2016: o nascimento oficial do MAR

Quando essa construção vira, oficialmente, o MAR?

Luiz Dalla Costa: Em 2016, em Chapecó (SC), durante um encontro do MAB, reunimos lideranças desses países e lançamos o MAR como construção política. Não como movimento pronto, mas como processo. O nome “MAR” veio depois. Significa Movimento de Afectados por Represas, mas também significa “mar de gente”, “mar de águas”. E hoje já se discute mudar para Movimento de Atingidos por Energia e Clima, porque o atingido não é só quem perde a terra para barragem, é quem perde tudo por enchente, mineração, seca, energia cara, clima extremo.

2019: Primeiro Encontro Continental do MAR

E quando o movimento se apresenta publicamente como continental?

Luiz Dalla Costa: Em 2019, no Panamá, realizamos o Primeiro Encontro Continental do MAR. Aí sim, com delegações de mais de 15 países. Foi a primeira vez que o mundo ouviu oficialmente: “Existe um movimento latino-americano de atingidos em construção.”

Qual a diferença entre aquela rede internacional inicial e o MAR?

Rede é gente que se encontra, assina manifesto e volta para casa. Movimento é outra coisa: tem princípios políticos, tem formação de quadros, tem símbolos, calendário de lutas, coordenação e base popular, tem companheiros dispostos a lutar e resistir no território. O MAR é isso: não é ONG, não é campanha de internet, não é evento; é povo organizado.

E hoje, como o MAR está organizado?

Luiz Dalla Costa: Hoje temos Coordenação Continental Provisória (representantes eleitos nas escolas de formação); Escolas de Formação em andamento (3ª geração), agora envolvendo também África e Europa; atuação em 17 países na América Latina, cada um com sua realidade; calendário comum de lutas – 14 de março como Dia Continental e Internacional de Luta. E o sonho agora é maior: transformar o MAR em um movimento internacional de atingidos do mundo inteiro. O próximo encontro deve ser na África.

O MAR hoje: clima, energia, desafios e futuro da luta latino-americana

E como o tema clima e energia entra MAR adentro?

Luiz Dalla Costa: Entra como centro estratégico. Antes falávamos só de barragens. Hoje, entendemos que o conflito é com o modelo energético e climático. A crise climática multiplica os atingidos: enchentes, secas, rompimento de barragens, energia cara, populações inteiras sendo expulsas.

Por isso, o MAR começa a se definir não só como movimento contra barragens, mas como movimento dos atingidos pelo modelo energético e pela crise climática. Isso é profundo, porque amplia muito quem é atingido.

O MAR quer ser só latino-americano ou algo além?

Luiz Dalla Costa: O MAR nasce latino-americano, porque temos uma história comum de colonização, barragens, extrativismo e resistência. Mas a crise climática e energética é global. Hoje já temos contatos com África, Ásia e Europa.

O sonho é chegar ao que chamamos de Movimento Internacional de Atingidos por Barragens, Energia e Clima. E não é discurso, já estamos iniciando escolas de formação com africanos, povos do Congo, da África do Sul, e movimentos da Índia.



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