“O MAB me transformou em um ser político. Foi uma tomada de consciência.” Depois de vivenciar a luta emblemática do Vale do Jaguaribe, no Ceará, Iury quis levar o sonho de justiça social que descobriu no MAB para atingidos de outras partes do Brasil.
Publicado 20/08/2021 - Atualizado 30/08/2021
“Você ser atingido é uma questão muito profunda, porque muda toda uma dinâmica de vida e a gente passa a viver de incertezas sobre tudo, desde os primeiros estudos até a fase das obras. Você vive da terra, mas fica sem vontade de plantar uma árvore no seu quintal, porque não sabe se ele vai ser inundado ou não. Na verdade, você não sabe nem onde vai viver mais. Aí chega um Movimento que diz que, coletivamente, você pode lutar contra boa parte dessas incertezas. Que você pode lutar pelos seus direitos – uma noção de direito que era tão distante da nossa realidade, da nossa interpretação”. Para Iury Paulino, atingido pela Barragem do Castanhão, em Alto Santo (CE), o Movimento dos Atingidos por Barragens transformou a insegurança e o medo em perspectivas de justiça social no semiárido cearense. Promoveu, assim, uma transformação profunda na dinâmica fundiária da região através da força das ideias e da luta.
Segundo o atual coordenador do MAB, o Vale do Jaguaribe, onde ele cresceu, sempre foi dominado por coronéis proprietários de grandes latifúndios. A maior parte da população vivia nessas terras e tinha que pagar pelo direito básico de morar com parte da sua produção. “Eu nunca achei isso justo. Meu pai e meu avô terem que trabalhar duro para entregar 40% da sua safra para alguém que não cultivava nada. Apenas porque essa pessoa dizia que era dona daquilo tudo. Naquela época, eu pensava até por uma lógica cristã. ‘Deus não deu a terra pra todo mundo?’ Eu ainda não entendia muito por que, mas não achava aquela situação que a gente vivia certa. Então, apareceram pessoas do Movimento que disseram que eu não era louco e que a gente podia lutar juntos contra essa lógica. Aí eu me encontrei”.
A partir de meados dos anos 90, Iury se tornou um dos 20 mil atingidos pela obra do Açude Público Padre Cícero (conhecido como Castanhão), que faz parte de um sistema de integração de bacias hídricas do Ceará. A princípio, não havia perspectiva de indenização para maior parte dos atingidos – agricultores de baixa renda, que viviam em pequenas posses informais. A família de Iury, por exemplo, não teria direito à reparação porque não tinha titularidade da terra onde vivia.
Para o militante, foi neste momento que o MAB ajudou a promover uma mudança radical na lógica de ocupação do território. “O Movimento foi um divisor de águas histórico no Vale do Jaguaribe”, ele avalia. A partir de um longo e intenso processo de luta contra o governo federal, aos poucos, os atingidos testemunharam alguns dos grandes latifúndios serem divididos em pequenos lotes de terras em reassentamentos ocupados pelo povo.
“As famílias passaram a ter acesso à terra, a ter estrutura para produzir de forma coletiva ou individual, a ter moradia digna e autonomia para trabalhar, uma coisa que as pessoas ali nunca tiveram antes”, conta.
O desejo de levar aquela conquista para mais atingidos fez Iury mergulhar fundo na história, na dinâmica e nos sonhos da militância. “A gente vai se apaixonando pelo processo da luta. A grande gratidão que tenho ao MAB é me fazer um ser político, me fazer compreender as importantes dimensões da luta, seja pelo processo de formação, seja pelo processo histórico do Movimento, seja pelos exemplos de outras pessoas”, afirma.
O coordenador conta que essa foi uma tomada de consciência sem volta. “Eu passei a me compreender como gente dentro desse processo e descobri que eu poderia fazer parte da transformação do que precisa ser mudado”. Segundo ele, um dos momentos mais marcantes nessa jornada, desde então, foi sua mudança para o Pará, com o propósito de ajudar a construir a luta no estado.
A luta em meio a maior floresta tropical do mundo
“Nos mudamos, eu, minha companheira e minha filha, com muita vontade de construir uma nova história junto ao Movimento, mas com muitas incertezas. Eu nem conhecia a região Norte do país antes disso. Era um desafio enorme, mas fomos muito bem recebidos e nos apaixonamos”, lembra o coordenador, sobre sua empreitada amazônica assumida há 10 anos.
Na época, Iury se mudou pra Itaituba (PA), para se engajar na luta contra o Complexo Tapajós e o Complexo Portuário. Depois se juntou a outros militantes em uma das missões mais complexas e importantes que o MAB já articulou no país: a resistência a Belo Monte em Altamira (PA). A polêmica construção da terceira maior usina do mundo aconteceu contra a vontade da população tanto da área urbana, como de reservas. Dezenas de milhares de indígenas e povos tradicionais foram forçados a abandonar suas casas e seu meio de subsistência. O conflito chamou a atenção do mundo todo, especialmente de organizações ambientalistas internacionais que promoveram campanhas midiáticas de grande repercussão. O desafio do MAB era, em meio a tudo isso, promover o protagonismo dos atingidos nessa luta e assegurar seus direitos básicos.
“Belo Monte foi bem emblemático. Uma obra que secou 100 quilômetros de rio. Uma dimensão muito diferente de tudo que eu já tinha vivido, envolvendo público urbano, comunidade indígena, sob o olhar do mundo todo”, conta Iury.
Ele lembra que o MAB teve que lidar com uma estrutura de repressão muito intensa que causava temor na população. “Foi um processo bastante violento e perverso, que trazia todos os aspectos das barragens que foram construídas nas ditaduras. A equipe do governo coagia as pessoas que se manifestavam na base. Uma das dificuldades era convencer os atingidos a vencer o medo para construir um processo organizativo para o enfrentamento de tudo aquilo”.
Apesar do enorme impacto gerado pela obra, inaugurada em 2016, Iury acredita que a experiência do MAB com lutas coletivas foi fundamental para assegurar a construção dos diversos assentamentos de Altamira e a reparação de uma parte expressiva dos atingidos.
“Fazer a luta na Amazônia é um desafio enorme. É uma região maravilhosa, muito importante, que dispõe de grandes quantidades de recursos que são especulados e alvo de muitas disputas. E, por isso, é uma terra que o tempo todo é saqueada. Enquanto isso, faltam recursos básicos para o povo. Mesmo os atingidos por barragens muitas vezes não têm energia elétrica. È uma região muito complexa nesse sentido. Eu me sinto muito orgulhoso de ter a oportunidade pelo MAB de construir a resistência aqui. Estamos fazendo a nossa parte junto com um povo que é muito lutador. Você vê quantas lideranças da Amazônia já foram assassinadas e, mesmo assim, as pessoas continuam lutando. E eu desejo que o MAB aqui continue sendo para muitos a luz que ele foi pra mim”.