Nas cidades onde há risco de rompimento de barragens, os crimes já acontecem e as mulheres lutam por garantia de direitos e que vidas não sejam perdidas. Leia os relatos:
Publicado 29/01/2021 - Atualizado 05/02/2021
Os rompimentos das barragens de rejeitos de minérios em Mariana, em 2015 e em Brumadinho em 2019, pegaram de surpresa os moradores das regiões atingidas.
Os crimes trouxeram à tona o risco que as barragens representam para a vida das pessoas e para o meio ambiente e anunciam a chance de próximos casos por vir. Nas cidades com barragens próximas às comunidades, o perigo foi reconhecido e se tornou presente na vida de muitas famílias.
Em Congonhas, Minas Gerais, 5 mil pessoas perderam o sono com medo de um rompimento na barragem Casa de Pedra, que fica a apenas 250 metros de suas casas. Já em Itatiaiuçu, em Barão de Cocais, no distrito de Antônio Pereira, e no distrito de Macacos, moradores já passaram pela situação de terem sido acordados e evacuados repentinamente após soarem as sirenes de alerta de rompimento das barragens. As famílias dessas áreas de risco estão fisicamente no caminho de um desastre, e esse caminho já é um desastre.
Com risco iminente de rompimento, famílias têm seus projetos e sonhos inibidos, vidas social e comunitária desarticuladas, convivem com doenças psicológicas causadas por medo, insegurança e incerteza, são removidas de suas casas e com isso tem seus modos de vida destruídos.
As comunidades são atingidas por sucessivos desastres causados pela negligência das mineradoras e vivem sob risco constante de algo pior que possa vir a acontecer.
“Me sinto uma pessoa atingida pelo medo do amanhã e a incerteza. Vendo a nossa história se esvaindo e medo de ser mais uma na contagem. A gente deita e perde o sono e vem o pânico se ela vai estourar. Temos medo quando chove. Vivemos em constante medo”.
(Maria Vitória*, Congonhas)
Quando o risco de rompimento de uma barragem é reconhecido pela população, os problemas antigos são acompanhados de problemas novos. Se antes sofriam com a poeira e o barulho, por problemas respiratórios, e com precariedade no sistema de abastecimento de água causados pelas atividades minerárias, agora sofrem principalmente com doenças psicológicas como síndrome do pânico, ansiedade e depressão.
A vida tranquila nessas comunidades, algumas rurais e outras urbanas, deu lugar a uma vida de luta constante. As famílias são expostas a gastos que antes não faziam parte do dia a dia.
Advogados, psicólogos, assistentes sociais, remédios, relatórios complexos, reuniões com técnicos, entidades governamentais, tudo isso faz parte da lista de problemáticas, que é extensa e recai sobre pessoas que muitas vezes não têm condições financeiras, emocionais ou tempo para lidarem.
Nessa luta as mulheres são as protagonistas. Elas lutam por elas, pelos homens que são oprimidos por medo de perderem seus empregos (já que a luta é contra seus empregadores) e por toda a comunidade (até mesmo por quem acha que não será impactado).
As mulheres dão voz aos atingidos, dão corpo à luta para que vidas não sejam perdidas e para que haja reparação integral com todos seus direitos garantidos, e dão força para resistir às violências causadas pelas empresas e governos.
Por que as mulheres lutam?
Em Congonhas, as mulheres lutam para que a barragem de Casa de Pedra, da mineradora CSN, seja descomissionada e que os moradores da Zona de Autossalvamento (ZAS) sejam realocados.
O reconhecimento do risco de rompimento levou o Ministério Público Municipal a abrir uma ação para que a creche e a escola do bairro Residencial Gualter Monteiro, localizado 200 metros baixo da barragem, fossem fechadas e construídas em local seguro, e que os 5 mil moradores da Zona de Autossalvamento (ZAS) fossem realocados.
Apesar do caráter de emergência da ação, a CSN, ainda nem iniciou as obras deixando 130 crianças sem acesso à creche desde o início do ano de 2019.
Enquanto a esfera judicial, a empresa e governo municipal discutem os riscos que a barragem oferece e o que acontecerá com as famílias, a vida continua. Mas continua de forma diferente.
Agora, as mulheres estão ainda mais sobrecarregadas porque têm que cuidar das crianças que não têm mais a creche e a escola para irem. Muitas mulheres tiveram de deixar seus empregos para ficar em casa com os filhos, porque não têm como pagar cuidadores ou creches particulares.
A renda diminuiu e os gastos familiares aumentaram. A escola era em tempo integral, assim as crianças almoçavam e merendavam no ambiente escolar, com o encerramento das atividades, a demanda por comida em casa aumentou.
Algumas famílias passaram necessidade no começo e os moradores ajudaram com cestas básicas. Iniciou aí uma rede de solidariedade, tocada por mulheres de vários bairros da cidade, que montavam cestas e faziam mesas solidárias para ajudar as famílias mais necessitadas. Esta rede exerce um importante papel na organização popular, mantendo articuladas e ativas pessoas de vários locais da cidade que se unem na luta.
“As mulheres sempre estão na linha de frente querendo ajudar. São guerreiras, são as mais atingidas e sempre são elas que fazem alguma coisa”.
(Maria Vitória*, Congonhas)
Porém, os problemas econômicos vão além, como a área é considerada de risco, há a desvalorização imobiliária na região. Para muitas famílias a casa é tudo que elas têm e este bem perdeu seu valor. Os planos de melhorias são adiados porque ninguém quer investir no local e pouco depois perder tudo. Os sonhos são interrompidos e não se sabe quando, e se, será possível retomar os planos e projetos de vida.
“Minha filha chora quando eu saio para trabalhar e ela tem que ficar em casa, ela fala para sairmos daqui, mas falo para ela que não temos condições para isso”.
(Marlucia, Congonhas, MG)
Com o medo e a insegurança tão presentes, muitas famílias desejam sair do local. Algumas saíram temporariamente, mas retornaram porque não tinham mais condições financeiras de arcar com o valor dos aluguéis. Outras, sim, por medo, saíram definitivamente.
Nesse contexto, as mulheres lutam pelo futuro, pela mitigação dos problemas existentes no decorrer do processo de realocação. Enquanto isso, têm de conviver também com a interrupção de serviços e projetos públicos.
Enquanto convivem com a insegurança, as mulheres pensam como será o futuro. O desejo de muitas é continuar no local onde sempre moraram e construíram suas famílias.
Elas querem mesmo é que a barragem saia dali, foi o empreendimento que chegou depois e causou todos esses problemas. Mas, o descomissionamento é um processo longo, que pode levar até 20 anos no caso da Casa de Pedra, e os riscos aumentam.
Neste cenário, surgem dúvidas: se saírem, as famílias vão para onde? Vai ser uma saída temporária? E como ficam aquelas casas durante esses anos? A empresa não vai zelar pelas edificações. As casas podem ser invadidas, e irão deteriorar com a ação do tempo e de vândalos. E a segurança no bairro, sem ninguém morando? Vou morar perto dos meus atuais vizinhos? Vou receber uma casa pronta ou terei que construir? E se for mais longe da cidade? As incertezas são muitas, e não existe um consenso.
O futuro é logo ali
Enquanto isso, o distrito de Antônio Pereira, na cidade vizinha Ouro Preto, parece apresentar para as moradoras de Congonhas uma previsão do futuro. Em Antônio Pereira, a barragem do Doutor, parte do complexo Timbopeba, da mineradora Vale, está no nível de risco 2 e a empresa iniciou o processo de realocação dos moradores.
Ali os problemas gerados pela realocação são sentidos e vistos por todos. São 76 famílias na Zona de Autossalvamento (ZAS) e algumas foram retiradas. Em Antônio Pereira, 25 famílias e outras sete na Vila Samarco não foram retiradas, mesmo estando no cadastro.
Em uma mesma rua, de um lado famílias saíram, e de outro ficaram. As casas evacuadas estão abandonadas, mesmo a empresa sendo responsável pela manutenção e segurança do local. Devido ao abandono elas se tornam focos de transmissão de doenças causadas por animais vetores.
Quem fica sofre com a ausência dos que foram e a insegurança crescente. Não há certeza de onde a lama pode chegar. E as ruas vazias, nas quais circulam pessoas desconhecidas, se tornam locais mais inseguros para as mulheres.
“As mulheres se sentem oprimidas em sair à noite, com medo, porque tem muita gente de fora aqui por causa da barragem. E não sabemos como é a cabeça de gente de fora”.
(Ester, Antônio Pereira)
As casas remanescentes têm desvalorização imobiliária, mas o preço dos aluguéis subiu com a alta procura por pessoas de fora do distrito. O comércio local sofre com a queda nas vendas por conta da diminuição na circulação de pessoas, por isso aumentam os preços. Com essa combinação, os custo de vida dos moradores sobe.
Outro fator de impacto são as obras de infraestrutura para o descomissionamento, que estão retirando o lazer, a saúde e a moradia das pessoas.
“Primeiramente, nunca fomos consultados pela empresa sobre tais obras. As obras estão ameaçando a natureza, ocuparam locais de lazer, dividiram a rua e estão dificultando o acesso da população à própria casa e às cachoeiras. Nascentes de água foram destruídas também durante as obras. Em síntese, nosso direito ao lazer, à saúde, à moradia, e até mesmo a vida estão sendo feridos de diversas formas”.
(Ester, Antônio Pereira)
Quem sai também sofre com a separação de vizinhos e familiares, e por deixarem suas casas construídas com muitos sacrifícios durante anos. Os vizinhos que moravam perto e conviviam diariamente foram realocados longe uns dos outros e houve também grande mudança na vida das crianças. A mudança também alterou a rotina de trabalho, algumas pessoas perderam seus empregos e outras estão tendo que dispor muito mais tempo ao trabalho.
Em Itatiaiuçu e Barão de Cocais a situação é semelhante. As comunidades das duas cidades foram evacuadas no dia 8 de fevereiro de 2019, quando soaram as sirenes de alerta de risco de rompimento das barragens.
“Fomos acordados na madrugada pelos funcionários da empresa Arcelor e pela a Defesa Civil. Parecia um filme de terror, pessoas chorando, gritos. A gente não sabia ao certo o que tinha acontecido, se lama tinha levado tudo, se tinham pessoas no meio desta tragédia porque havia pouca informação. Então o que passava na nossa cabeça é que nossa comunidade teria sido destruída como foi Brumadinho, porque tinha passado poucos dias da tragédia”.
(Maria Eliza, Itatiaiuçu)
Nos municípios onde o processo de realocação dos moradores foi iniciado, as mulheres lutam para que todos sejam reconhecidos como atingidos já que os impactos sociais, econômicos, culturais e ambientais atingem toda a comunidade. Entretanto, as mineradoras reconhecem apenas os moradores que têm residência dentro da mancha da Zona de Autossalvamento.
Por isso, a luta dessas mulheres não é somente por uma moradia em local seguro e pela restituição do que foi perdido. É pelo direito de terem suas vidas reabilitadas e poderem retomar seus planos e projetos pessoais, viver plenamente em seus espaços de lazer, conviver nas suas redes sociais e comunitárias, serem indenizadas pelos danos morais, emocionais e sociais sofridos, decidirem sobre a forma como será feita a reparação, seu direito de escolha e de decisão sobre as próprias vidas, e também pela punição dos criminosos que causaram todos estes danos.
A união faz a força
“Estamos vivendo a mesma coisa que Congonhas e Barão de Cocais, precisamos unir forças. Podemos nos comunicar para saber da luta, ver os posicionamentos diferentes, ajudar e ser ajudado, isso é muito importante”. (Ester, Antônio Pereira)
As semelhanças dos problemas causados pela mineração nestas cidades não é obra do destino. As mulheres têm inimigos em comum. Os inimigos são os donos das empresas que, movidos pelo capital, exploram toda a força humana e natural das regiões para extrair suas riquezas.
Esse inimigo é forte, articulado, e manda e desmanda nos governos e instituições. A luta não é simples. Muitas mulheres não se sentem capazes de lutar contra “gigantes”, porque a luta demanda muito tempo, grande esforço psicológico e disposição.
Além disso, a forma que as empresas e o capital se articulam e agem é pensada para amedrontar e tornar a luta mais difícil e complexa. Mas, os fatores em comum também podem ser usados a nosso favor, pois possibilitam a unificação das forças para lutarmos em maior número, com boas estratégias, com mais conhecimento, reflexões e ampliando nosso campo de ação.
Todo poder às mulheres
Frente a todos os desafios que o “caminho para o desastre” coloca para as mulheres, elas passaram a assumir uma posição de luta para obter garantias atuais e futuras. Muitas conquistas foram materializadas, principalmente relacionadas às necessidades cotidianas como placas de sinalização, obras do gabião, pintura de faixa de pedestres e quebra-molas, pontos de ônibus, entre outras. Mas a luta maior ainda está sendo travada.
“A gente toma a frente, vamos unidas, e ainda sofremos com pessoas dizendo que somos vagabundas, que não trabalhamos. Que somos baderneiras, gente ‘sem o que fazer’. Falando que as mulheres gostam de barraco e que não tem vasilha para lavar”.
(Ester, Antônio Pereira)
Apesar de tantas conquistas, as mulheres têm de enfrentar um outro inimigo: o machismo que minimiza suas iniciativas, ações e conquistas. No caminho da luta, as mulheres recebem críticas e são tratadas como baderneiras, ao invés, de lutadoras.
Muitas mulheres têm de enfrentar o machismo dentro de suas próprias casas, com companheiros e filhos que não as apoiam e, inclusive, impedem que permaneçam nos espaços de luta. Além de todo sofrimento causado pelos crimes das mineradoras, elas sofrem com humilhações a que são expostas pelo sistema patriarcal.
“Eu considero importante lutar para que nós mulheres possamos ocupar cargos que englobam as decisões para a comunidade. Quando estamos engajadas na luta e pertencemos ao território podemos falar com propriedade, mas nós queremos ir além de somente um lugar de fala”.
(Beth, Antônio Pereira)
Muitas mulheres reconhecem a importância de permanecerem firmes na luta e de ocuparem os espaços de fala e de decisões. É essencial que as vozes das mulheres sejam ouvidas para que todos saibam o que está passando nas suas famílias e na comunidade, mas de nada adianta serem ouvidas se suas demandas não forem levadas adiante.
Por isso, é fundamental que as mulheres estejam também nos espaços de decisões. A representatividade feminina nos movimentos populares, e em todas esferas de governo e nas instituições públicas e privadas, é o principal instrumento para enfrentar o sistema capitalista, patriarcal e racista.
*Nome fictício. A entrevistada preferiu não usar o nome verdadeiro.