Populações tradicionais alertam para ataques à soberania nacional e popular em um Brasil cada vez mais ameaçado

Do tarifaço ao PL da devastação, o imperialismo intensifica sua ofensiva sobre a soberania brasileira e ameaça a autonomia dos povos sobre seus territórios. Atingidos estarão mobilizados em defesa da soberania no 05 – Dia da Amazônia – e 07 de setembro em todo país

Mobilização durante o Dia Mundial do Meio Ambiente, em Brasília, denunciou ataques do Congresso sob os territórios a partir do PL da devastação. Foto: Gabriela Biló

Quando Donald Trump ameaçou taxar as importações brasileiras, a história foi contada na base de uma disputa comercial e política. A questão é que, impostos e taxas à parte, o tarifaço foi a confirmação de que os EUA nunca abandonaram sua cobiça pelo que consideram “as riquezas do Brasil”. Desde terras raras até o petróleo da Petrobrás, a história se repete: o imperialismo quer controlar nossos bens naturais para alimentar sua máquina de acumulação capitalista.  

A espionagem da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA) contra a Petrobrás e o golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, não foram ao acaso. Eles fazem parte de um projeto de dominação que busca garantir que o Brasil continue sendo um exportador de commodities, com suas riquezas nas mãos de corporações estrangeiras. 

Iury Paulino, da Coordenação Nacional do MAB, destaca: não é novidade que somos vítimas históricas do processo de espoliação do imperialismo, e que “há séculos vemos nossas riquezas serem levadas para promover o desenvolvimento de outros”. Ele ainda acrescenta: “Para nós, ficam as mazelas sociais e ambientais desse processo sistêmico de saques”. 

O alerta de Paulino é para esta nova fase do imperialismo dos Estados Unidos sobre a América Latina, especialmente no Brasil, a partir do avanço da extrema direita:

“É um ataque frontal à soberania, que busca desregulamentar o estado através da fragilizaçao das leis, como estão fazendo com o PL da Devastação. Atacam o sistema econômico, como no caso das taxações, para garantir vantagens econômicas, mas também para interferir na política dos Estados nacionais, buscando cada vez mais potencializar as facções entreguistas, seja pela via eleitoral ou promovendo golpes”.

Pau-brasil, açúcar, ouro, diamante, café, lítio, energia (que eles têm o despeito de chamar de ‘verde’) e tantos outros. A lista da exploração vem de séculos, chega aos nossos dias com essa nova cara do imperialismo e se estenderá ainda outras dezenas de anos para frente na mesma lógica: o povo perde, o capital ganha. 

Em benefício aos EUA, o governo Trump já demonstrou interesse pela produção mineral de lugares como Groenlândia, Rússia, República Democrática do Congo – e agora, Brasil. Na Ucrânia, Trump exigiu acordo para exploração de minerais e terras raras como condição para seguir apoiando militarmente o país, em guerra com a Rússia desde 2022.

Nessa corrida mundial, o Brasil tem posição estratégica: estima-se que temos até 23% das reservas conhecidas de terras raras – 17 elementos que não são exatamente raros, mas sim de difícil exploração – no mundo. Além disso, o Brasil concentra cerca de 92% da produção de nióbio – usado principalmente para tornar o aço mais forte, mais leve e mais resistente ao calor e à corrosão, sendo essencial em setores de alta tecnologia, como a construção civil, turbinas, trens de alta velocidade, baterias e equipamentos aeroespaciais e militares, como mísseis.

Mascarado por um discurso de sustentabilidade, aliado à uma elite entreguista que se empenha nas privatizações de setores estratégicos e oferece ao estrangeiro nossos bens naturais, o capital negocia acordos e alianças, enquanto o povo se vê perdendo espaço e poder em suas próprias terras para dar lugar a megaprojetos. 

A luta para garantir a soberania brasileira exige o enfrentamento destes ataques com o fortalecimento de projetos construídos pelo povo e que coloquem na centralidade a valorização da vida e do território. “A extrema direita não tem condições de incubar este tipo de iniciativa”, alerta Iury. “Só os verdadeiros nacionalistas e progressistas podem cumprir esse papel. No entanto, o fascismo nasce e se fortalece nos momentos de crise de horizonte da humanidade e falsamente se apropria das bandeiras e desejos verdadeiros do povo”, destaca ele.

Nos últimos anos, a Amazônia virou alvo de grandes projetos como hidrovias, corredores logísticos, hidrelétricas, projetos de mineração e estradas a serviço do mercado. No Cerrado mineiro e no Oeste baiano, o agronegócio e a mineração avançam sobre terras geraizeiras, trucida as comunidades tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto, enquanto a transição energética global aumenta a pressão por lítio, terras raras e minérios cada vez mais fundamentais ao capital. “Estamos em uma fase de extrema violência do imperialismo”, analisa Paulino. 

Enquanto isso, o Congresso Nacional não só é conivente, mas ativamente colabora com essa agenda. O PL da Devastação (PL 2.159/2023) flexibiliza o licenciamento ambiental para favorecer grandes empreendimentos, incentiva leis que enfraquecem demarcações indígenas e quilombolas e coloca o Brasil ainda mais submisso aos lobbies do agronegócio e da mineração.

A verdadeira soberania exige controle popular sobre os territórios e leis que priorizem os povos tradicionais, não o agronegócio e a mineração. Não basta ser contra o imperialismo norte-americano se mantivermos um modelo que entrega nossas riquezas ao mercado global. Para Iury, há uma forma importante de enfrentar este projeto que quer fazer dos territórios propriedades da elite e do capital: “Precisamos de organização popular, debatendo um projeto de país soberano e nos propondo a deixar de ser uma fazenda de produção de commodities e energias e se tornar um país desenvolvido, avançando na garantia dos direitos dos seus povos, na defesa do meio ambiente e principalmente colocando seu povo como prioridade central”.

Geraizeiros: Sem o Cerrado nós não existimos

“A vida da gente só faz sentido na nossa terra natal”, conta Joselita dos Reis Pereira, da comunidade de Ribeirãozinho, no município de Padre Carvalho (MG). Joselita faz parte dos povos reconhecidos tradicionalmente como geraizeiros, nome que faz referência às comunidades tradicionais que habitam os Gerais, uma região de transição entre o Cerrado e a Caatinga no Norte de Minas Gerais e Oeste da Bahia.

Em meio às chapadas, vales, veredas e grotas, os geraizeiros ganham identidade por causa de seu território, estabelecendo uma relação especial e particular com esse bioma. Foi assim que ficaram conhecidos como Guardiões do Cerrado.

“Nós nascemos e convivemos aqui, tirando da terra o nosso sustento e cuidando dela. A gente conhece as plantas, os remédios do Cerrado, os alimentos, as águas. Tudo que temos vem da mãe terra. Por isso, somos geraizeiros e somos chamados de guardiões do Cerrado: porque vivemos em defesa dele e sem ele nós não existimos”, explica dona Joselita.

Além de plantar e cultivar, os geraizeiros coletam espécies nativas do Cerrado, como frutos, raízes, ervas medicinais, mel silvestre, madeira e demais produtos que o Gerais oferece. É ali que está a sua vida, a sua memória e a sua cultura: “Nossa vida é aqui. É onde estão nossas famílias, nossa história e o jeito de viver que aprendemos. Fora daqui a gente não se acostuma, não tem a mesma relação com a terra e nem com a comunidade”, conta ela.

Na conversa com Joselita, a pergunta mais fácil de responder é também a mais difícil de conviver. Ao falar sobre as ameaças ao território, ela responde: “As maiores ameaças são as empresas que chegaram com o eucalipto, que secaram nossos rios, mataram os peixes e tiraram o espaço do nosso gado. Agora tem também o risco do mineroduto da SAM, que promete progresso, mas na verdade só traz destruição, tirando a água e ameaçando nossa sobrevivência”.

A ameaça da soberania dos geraizeiros sobre seu território iniciou em meados de 1970, com as extensas plantações de eucalipto em terras consideradas ‘desocupadas’ pelas empresas. Além disso, conforme cita Joselita acima, a região foi recentemente invadida por outras empresas, como a Mantiqueira Transmissora de Energia e a empresa Sul Americana de Metais (SAM), que desconsideram os direitos das famílias atingidas. O projeto do mineroduto citado pela geraizeira integra o Bloco 8, que inclui a construção da maior barragem de rejeitos de todo o Brasil. Segundo estudos do MAB e da Comissão Pastoral da Terra (CPT-MG), seriam 2596 hectares de barragem e aproximadamente 1,5 bilhão de toneladas de rejeito de minério armazenadas. Já o mineroduto, com 480km, só perderia em extensão para o maior do mundo (o Minas-Rio da Anglo American, que tem 529 km). Além disso, o complexo minerário consumiria 6,2 milhões de litros de água por hora na região, que sofre com a seca.

O ‘desenvolvimento’ pregado pelo imperialismo em todo o mundo se aplica ao território dos geraizeiros, desconsiderando a sua relação com a terra e impondo um progresso que interessa apenas ao capital. Mas Joselita alerta: “Desenvolvimento de verdade é viver bem na nossa terra, com dignidade, plantando nosso alimento, criando nossos bichos e cuidando da água. É ter energia solar, poço artesiano, pequenas barragens, pontes molhadas. É melhorar a vida a partir daquilo que já temos e do que a comunidade constrói unida, não com projetos que só servem pras empresas”, conclui ela.

Atingidos do Baixo Tocantins denunciam os impactos da hidrovia da morte à população ribeirinha. Foto: Jordana Ayres / MAB

Progresso não é essa hidrovia!

“O progresso é essa vida que já temos. Porque nós temos o nosso açaí, nós temos o nosso peixe, nós temos a nossa água, que é água limpa e boa, que vem trazer vida para nós”, analisa Fortunato Nery Ramos, morador da comunidade do Carapajó, em Cametá (PA).

Seu Nery – como é conhecido no MAB – sofre junto com os povos ribeirinhos do Rio Tocantins as ameaças do capital no projeto da hidrovia Tocantins-Araguaia. O projeto prevê a dragagem de mais de 200 km do leito do rio, além da explosão de cerca de 35 quilômetros do Pedral do Lourenço, considerado berço da biodiversidade aquática da região. As obras têm como objetivo viabilizar a passagem de grandes embarcações para o transporte de commodities, como soja, minérios e gado, do Centro-Oeste até o Porto de Vila do Conde, no Pará.

No Baixo Tocantins, atingidos organizados pelo MAB em Cametá, Baião e Mocajuba denunciam os inúmeros problemas gerados nas comunidades pelo megaprojeto, que não considera a importância do rio às comunidades locais e ameaça profundamente os modos de vida ribeirinhos, quilombolas e de outras populações tradicionais à beira do rio.

Sem direito de participação na decisão sobre uma obra que tanto afeta seu território, os atingidos denunciam que o projeto servirá somente – como tantos outros – para o benefício e enriquecimento do agronegócio e da mineração: “Nós não vamos ter nenhum benefício, só vamos perder o pouco que temos. Nossos peixes vão morrer tanto pela explosão do Pedral do Lourenço, quanto pela sujeira da água e a passagem das barcas”, conta seu Nery.

A relação com o território é algo comum nos povos tradicionais e incompreendido – não que se faça esforço para compreender – pelo capital. Sobre isso, seu Nery ressalta: “Não tem outro lugar para a gente ir. Nós nascemos e nos criamos aqui, estamos aqui já na nossa velhice e aqui é o nosso viver”. 

Atingidos pela Barragem de Tucuruí há mais de 40 anos, agora os ribeirinhos do Rio Tocantins sofrem com o processo de implementação da hidrovia: licenciamento atropelado, negação do reconhecimento dos atingidos, invisibilização das mulheres e das comunidades tradicionais, violência institucional e a imposição de uma lógica de desenvolvimento que destrói o que encontra pelo caminho – típica do imperialismo que deseja dominar povos e territórios para explorá-los a seu próprio benefício. 

Foto: João Zinclar

Lutar não é crime: A resistência dos povos de Fundo e Fecho de Pasto no Oeste da Bahia

Nas últimas décadas, a região Oeste da Bahia tem vivenciado uma intensificação dos conflitos agrários, especialmente em municípios como Correntina e Formosa do Rio Preto. O avanço do agronegócio, aliado à grilagem de terras públicas, têm provocado impactos diretos sobre as comunidades tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto, que habitam esses territórios há séculos e desempenham um papel fundamental na preservação do Cerrado.

No contexto dessas disputas, companheiros e lideranças das comunidades de fecho de pasto têm sido perseguidos e presos, vítimas de processos judiciais frágeis ou acusações infundadas que visam criminalizar a resistência popular, como foi o caso de Solange Moreira e Vanderlei Silva, fecheiros da comunidade de Brejo Verde, em Correntina. Essas prisões configuram uma tentativa de silenciar vozes que denunciam a apropriação ilegal das terras e a violência do modelo produtivo que beneficia poucos às custas de muitos.

“A luta dessas comunidades reflete os princípios defendidos há décadas pelo MAB. Para nós, a defesa dos territórios e o acesso justo à água enquanto bem é parte inseparável da luta pela soberania do país, que não se faz com violência e expulsão, mas com justiça social, território garantido e protagonismo popular”, destaca Moisés Borges, membro da Coordenação Nacional do MAB na Bahia.

Comunidades tradicionais do Oeste da Bahia realizam caravana para denunciar a ofensiva do agronegócio em seus territórios. Foto: Bia Silva / MAB

A expansão desordenada do agronegócio, impulsionada por interesses de grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros, ameaça os territórios tradicionais e o equilíbrio ambiental do Cerrado. Denúncias de grilagem de terras, violência armada, judicialização das posses e omissão do Estado têm se acumulado nos últimos anos. Trata-se de uma tentativa de mercantilização de espaços que há séculos são geridos de forma coletiva por comunidades que garantem, na prática, a segurança alimentar, a preservação ambiental e a permanência humana no campo.

O MAB sempre alertou que a entrega dos bens estratégicos do país ao capital privado representa um declínio da soberania. A luta das comunidades de fecho de pasto mostra que isso não se limita apenas às hidrelétricas: o território rural está sendo convertido em fronteira de saque. E, como sempre, quem mais sofre são os povos que vivem em harmonia com a terra, que estão ali não como proprietários,
mas como guardiões.

Para Moisés, a conexão da luta em defesa das comunidades tradicionais com a soberania nacional é direta. “Sem controle popular sobre o território e seus bens naturais, não há autonomia verdadeira de um país sobre o seu destino. A defesa desses territórios é a defesa de um projeto de Brasil onde os bens naturais estão a serviço do povo, e não do lucro”, conclui.

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