PL da Devastação gera apreensão entre atingidos sobre renovação automática de licenças e risco de tragédias

Ministra Marina Silva afirma que proposta desmonta a fiscalização, silencia povos tradicionais e deve aumentar o desmatamento, a grilagem e os desastres ambientais.

Bombeiros atuando nas buscas no Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), em 2019. Foto: Ricardo Stuckert/ Fotos Públicas

Em um ano decisivo para a agenda climática global, o Brasil se prepara para sediar a COP30, enquanto a Câmara Federal discute o Projeto de Lei 2.159/2021, conhecido como PL da Devastação. Essa proposta, que flexibiliza o licenciamento ambiental, é vista como um retrocesso sem precedentes nas legislações ambientais do país e uma grave ameaça aos direitos humanos dos atingidos por barragens e pelas mudanças climáticas.

A recente aprovação do projeto no Senado, por 54 votos a favor e 13 contra, gera apreensão entre as comunidades que historicamente sofrem com os impactos de grandes empreendimentos, especialmente aqueles relacionados a barragens. O projeto teve como relatora a senadora Tereza Cristina (PP-MS), uma liderança do agronegócio no Congresso. Por isso, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) tem se articulado contra o PL da Devastação, denunciando os retrocessos que a proposta representa, como aconteceu durante o ato do Dia do Meio Ambiente – no último dia 05 de junho, em Brasília (DF).

Na ocasião, cerca de 1000 atingidas e atingidos de todas as regiões do país marcharam na capital para denunciar os impactos do PL em suas vidas. Além dos movimentos sociais, a proposta vem recebendo críticas veementes de especialistas, ambientalistas e da Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, que, recentemente, prestigiou a Jornada de Lutas das Mulheres do MAB, quando destacou os impactos da flexibilização para os territórios atingidos. Para ela, é inconcebível que, diante da maior emergência climática vivida pela humanidade, o país decida abrir mão de sua principal ferramenta de controle ambiental.

O que está em jogo?

Entre as mudanças, o projeto permite que empreendimentos considerados de médio porte obtenham licenças de forma automática, apenas com base na autodeclaração do empreendedor, sem necessidade de análises técnicas prévias, o que fragiliza os órgãos ambientais, ameaça comunidades, ignora a crise climática e ainda fere a Constituição. Thiago Alves, membro da coordenação nacional do MAB, explica o retrocesso:

“O processo de licenciamento e os estudos de impacto socioambiental foram conquistas da classe trabalhadora a partir da Constituição de 1988. Essas regras mínimas permitem que as comunidades atingidas participem das discussões sobre empreendimentos que impactam suas vidas. O PL da Devastação busca desmantelar essas conquistas, colocando em risco a saúde e a segurança das pessoas.”

Marina Silva durante Jornada das Mulheres, em Brasília (DF). Foto: Anthony Luiz / MAB

Em entrevista exclusiva ao MAB, Marina Silva enfatiza a gravidade da situação e explica a atuação do governo no momento: “O Ministério está em diálogo constante com parlamentares, mas a aprovação desse projeto sem um debate adequado é alarmante. A licença por adesão e compromisso permite que o empreendedor declare estar em conformidade, o que reduz drasticamente a fiscalização e a proteção das comunidades. Estamos diante de um cenário onde os direitos das pessoas podem ser desconsiderados em favor de interesses econômicos”, ressalta.

A ministra reforça que, em um país que já sofre com desastres ambientais recorrentes – como os crimes de Mariana e Brumadinho (MG) ou o crime que fez Maceió afundar – retirar o poder dos órgãos de controle é o mesmo que assinar um cheque em branco para novos desastres.

Em suma, o chamado autolicenciamento ambiental significa que empresas, cuja operação tem alto risco para as comunidades do entorno, poderão simplesmente preencher um formulário para começar a operar, sem vistoria, estudo prévio ou qualquer análise técnica. O projeto também permite que as licenças ambientais sejam renovadas automaticamente, tornando as vistorias uma exceção e enfraquecendo drasticamente a fiscalização, o que é particularmente grave para quem vive no entorno de empreendimentos que oferecem grandes riscos para as comunidades onde estão instalados.

Nesse contexto, Marina afirma que a atuação dos atingidos é mais importante do que nunca:

“Os que militam pelo direito à terra e à vida precisam ser ouvidos urgentemente, para que possamos criar uma nova realidade em que o desenvolvimento sustentável e a justiça social sejam priorizados.”

Atingidos pela mineração em MG relatam apreensão sobre autolicenciamento

Os depoimentos de pessoas diretamente atingidas por desastres relacionados à operação de barragens no Brasil evidenciam os riscos dos grandes empreendimentos que pretendem se auto-licenciar para a sociedade, o meio ambiente e, especialmente, as comunidades que dependem de recursos naturais para o seu modo de vida.

Geisa Cristina Tomé, que sobreviveu ao rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, afirma que sua vida e a de sua filha mudaram para sempre: “É muito difícil conviver em um lugar onde não podemos plantar ou colher. Agora, o PL da Devastação traz o medo de que outros lugares no entorno também sejam destruídos. Eu, muita das vezes, tenho que sair de uma área que está contaminada, para levar minha menina pra brincar onde não tem contaminação. Mas, e se depois da PL da devastação eles destruírem outros lugares também? Pra onde que nós vamos?”, questiona.

Sua preocupação reflete um sentimento comum entre as comunidades atingidas: a falta de reparação por crimes já cometidos e a insegurança em relação ao futuro por medo de novos desastres. Simone Silva, presidente da Associação Quilombola de Gesteira, que é atingida pelo crime de Mariana, vai além. Ela afirma que, para quem já teve tantos direitos violados, o novo projeto só aumenta a sensação de que a impunidade vai seguir afetando a vida dos mais vulneráveis.

“Infelizmente, meu quilombo é um quilombo devastado, varrido do mapa. E ele não foi incluído no acordo de repactuação do governo federal feito em 2024. O governo e as instituições de justiça excluíram o único quilombo onde a lama passou, destruiu, matou, apagou histórias e identidades”, desabafa.

A dirigente afirma que, diante das injustiças sofridas em seu território, a comunidade acredita que o novo projeto de lei deve impactar ainda mais a vida dos moradores que convivem com as consequências da impunidade de mineradoras no país.

“Esse PL vai punir o nosso quilombo muito mais. Essa lei pode extinguir o quilombo de Gesteira do mapa e da história de vez. As mineradoras já têm licença para matar, e agora vão matar ainda mais o povo preto, os quilombos, as comunidades indígenas e ribeirinhas”, denuncia Simone.

Para advogado, direitos da população estão em risco

Artur Colito, advogado popular, que atua no MAB. Foto: Nívea Magno / MAB


Mais do que um retrocesso, Thiago Alves defende que o PL representa um risco direto à vida de milhões. “Estamos falando de pessoas que já sofreram com o desmantelamento de suas vidas devido às barragens e empreendimentos. Se esse projeto passar, muitos mais sofrerão as consequências. O que está em jogo são as vidas, a dignidade e o futuro dos brasileiros.” Neste contexto, Artur Colito, advogado popular que atua no MAB, afirma que a discussão em torno do projeto evidencia a necessidade urgente de um debate inclusivo e responsável sobre as consequências desta legislação. “Não podemos nos acostumar com um modelo de democracia que retira direitos. O licenciamento é uma conquista histórica e sua flexibilização é um ataque às comunidades que dependem dele para garantir seus direitos.”

O advogado afirma que, na verdade, o projeto só intensifica um ataque ao licenciamento que vem acontecendo há muitos anos. Um exemplo disso é o chamado licenciamento corretivo e o licenciamento simplificado, que já são praticados em Minas Gerais. “A Vale executa há seis anos operações ambientais gigantescas na reparação de Brumadinho através de licenciamento corretivo, em que a população atingida não tem acesso completo aos estudos que baseiam as medidas até hoje”, afirma.

O licenciamento corretivo é um procedimento utilizado no Brasil que permite aos empreendimentos que estão em operação, sem a devida licença ambiental, regularizem sua situação. Esse tipo de licenciamento é aplicado em casos onde a atividade já está em funcionamento, mas não possui as autorizações necessárias que garantam que suas operações estejam em conformidade com a legislação ambiental.

Artur ainda explica que o Estudo de Impacto Ambiental, conhecido como EIA/Rima, também é desrespeitado pelas empresas. “No Vale do Jequitinhonha, a empresa Sigma Lithium reconhece os danos citados no estudo, mas não repara as famílias atingidas por sua operação no município de Itinga. Em outros casos, os empreendimentos burlam a lei. Por exemplo, a Lei Mar de Lama Nunca Mais exigia depósito de caução para o caso de rompimento de barragens de empresas mineradoras, mas o valor é uma merreca, um desrespeito frente ao direito das famílias que podem ser atingidas. Se esse tipo de violação acontece agora, imaginem, então, o que vai acontecer se passar essa boiada que é o PL da Devastação?”, questiona o advogado.

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