AINDA ESTAMOS AQUI: na luta contra o padrão de violações de direitos na construção de grandes barragens
Entre o progresso e a violência: o advogado Leandro Scalabrin explica como o modelo truculento de construção das grandes barragens brasileiras, durante a ditadura militar, ainda ecoa no presente
Publicado 27/02/2025 - Atualizado 28/02/2025

O filme Ainda Estou Aqui apresenta um panorama da resistência e das dificuldades vividas por famílias da classe média durante o regime militar no Brasil, com foco nas violências políticas, sociais e econômicas que marcaram o período. Embora extremamente perspicaz e necessário, o filme, como muitos outros que retratam a ditadura, foca em uma camada social economicamente privilegiada da sociedade. Por isso, é crucial enfatizar que as violações de direitos durante a ditadura afetaram de maneira devastadora muitos outros grupos sociais, principalmente os trabalhadores rurais e as populações locais, que enfrentaram abusos ainda mais profundos no contexto da construção de grandes barragens no país, a partir da década de 1970, em um contexto de total invisibilidade.
A ditadura militar brasileira foi um período em que grandes projetos de infraestrutura foram impulsionados pelo governo, incluindo a construção de usinas hidrelétricas. Esses projetos, muitas vezes apresentados como “faraônicos” e “necessários para o desenvolvimento”, envolveram violências e abusos contra milhares de pessoas, que foram removidas de suas terras sem a devida compensação ou reassentamento. É possível imaginar que – se reconhecidos políticos, intelectuais, escritores e artistas das capitais do país, cujas histórias se transformaram em livros, filmes e documentários, enfrentaram diversas formas de violência física e simbólica nesse período, os moradores de áreas rurais, onde se instalavam grandes empreendimentos, foram atingidos não só por barragens, mas pela truculência sem precedentes do estado.

Por isso, esses projetos de hidrelétricas, além de representarem um enorme desperdício de recursos, levaram a graves impactos sociais e ambientais, com a violação de direitos humanos que perduram até hoje. As populações atingidas pela construção dessas usinas, incluindo pequenos agricultores e comunidades tradicionais, foram tratadas como meros obstáculos ao “progresso”, e o direito à moradia, à terra e à vida digna foi ignorado, como explica o advogado Leandro Gaspar Scalabrin, que integra o Coletivo de Direitos Humanos do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). “Em Itaipu, 40.000 pessoas do lado brasileiro, e 20.000 do lado paraguaio, foram vítimas de violações de seus direitos, sem receber indenizações e sem serem reassentadas. Inúmeros camponeses foram desaparecidos e sequer constam das listas oficiais, como foi o caso de Aparecido Galdino Jacintho, um líder religioso que se opôs à construção da barragem de Ilha Solteira”, conta Leandro. Nesse território, a resistência dos atingidos foi tratada como guerrilha pela ditadura.
A prática de violação de direitos, que foi consolidada durante o regime militar, tem como base um modelo autoritário de desenvolvimento que persistiu por décadas. Leandro destaca que esse padrão de implantação das barragens, baseado em um planejamento centralizado e tecnocrático, está diretamente relacionado à visão do governo militar de que os “obstáculos humanos” eram apenas impedimentos a serem removidos, sem qualquer preocupação com as vidas que seriam impactadas. A ditadura criou uma série de instâncias e órgãos responsáveis pela execução desses projetos, como a Eletrobras e outras estatais, que, em nome do desenvolvimento, não hesitaram em desrespeitar direitos humanos em larga escala. As grandes hidrelétricas como Tucuruí, Jupiá, Sobradinho e Itaipu, todas com custos superfaturados, foram financiadas com empréstimos internacionais, aumentando a dívida externa do Brasil e beneficiando grandes empresas, muitas vezes estrangeiras.




Essas obras foram marcadas pela violência física e política contra aqueles que se opunham às grandes barragens. Para dar conta de qualquer resistência, o governo militar utilizou métodos autoritários, como as Assessorias Especiais de Segurança e Informações (AESIs), que atuavam no setor elétrico e eram responsáveis pela repressão e até mesmo pelos sequestros e assassinatos de sindicalistas e líderes comunitários. Isso ficou evidente no caso da resistência à barragem de Ilha Solteira, onde os camponeses e seus líderes foram tratados como inimigos do regime. O próprio Galdino, que se opôs à construção, foi preso e condenado, sendo transferido para um manicômio, onde permaneceu por mais de uma década. Seu caso reflete um padrão de perseguição e criminalização das vozes discordantes, com a resistência sendo rotulada de “subversiva” ou “guerrilheira” pelos militares.
Além disso, a ditadura brasileira se utilizou dessas grandes obras para ampliar sua influência política, como no caso da hidrelétrica de Itaipu, que se tornou moeda de troca no apoio ao golpe militar chileno que depôs o governo de Salvador Allende. A construção dessa usina, que teve grande impacto socioambiental na região, serviu aos interesses políticos do regime militar, que exigiu que o Chile se abstivesse de votar contra o projeto da usina na Assembleia Geral da ONU, em troca do apoio material e político à derrubada de Allende.

Outro legado dessa época, é a legislação que ainda rege a política de barragens no Brasil. A Lei 7.170/83, conhecida como Lei de Segurança Nacional, ainda em vigor, classifica como crime qualquer ato contra as instalações de hidrelétricas e usinas, o que serviu para perseguir aqueles que protestavam contra os impactos desses projetos. A legislação de direitos dos atingidos pelas barragens ainda é regida por normas criadas durante o período militar, que reconhecem apenas os proprietários das terras como os afetados, e que estabelecem, como única forma de reparação, a indenização financeira. Além disso, as políticas energéticas do país, como a Lei 9.478/97, que considera a energia hidrelétrica um “interesse nacional”, não preveem a participação popular nas decisões sobre grandes obras de infraestrutura, o que perpetua a centralização do poder e o desrespeito aos direitos das comunidades afetadas.
A memória dessas violações, que durante anos foi silenciada, precisa ser resgatada para que as lições do passado sirvam para evitar a repetição de abusos semelhantes no futuro. O advogado Leandro Gaspar Scalabrin ressalta que os resquícios da ditadura ainda estão presentes nas políticas públicas e nas lutas das comunidades atingidas. “Ainda estamos tentando superar o legado das violências do passado, que até hoje afetam as comunidades atingidas por barragens. Precisamos de uma política pública que realmente proteja os direitos dessas pessoas”, afirma Scalabrin.
No Brasil atual, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) continua a lutar contra os abusos históricos cometidos contra as populações atingidas em todo o território nacional. Uma das principais reivindicações da organização é implementação da Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB) – PNAB, para que a legislação reconheça os direitos das vítimas de barragens, garanta a participação das comunidades nas decisões sobre os projetos e promova uma reparação justa para aqueles que perderam suas casas, terras e meios de vida em nome de grandes projetos de desenvolvimento. O movimento, assim como outros que lutam pelos direitos humanos, também segue combatendo os vestígios de um regime autoritário que ainda influencia as políticas públicas e as práticas empresariais no Brasil.
