Atingidos pela enchente em Porto Alegre denunciam ameaças cometidas por DEMHAB e pedem reunião com prefeitura

Com data de despejo marcada, moradores relatam: “Estão ameaçando que, quando chegar dia 28, vão pegar as máquinas e passar por cima das casas”

Ao lado dos moradores da Vila Brasília, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) fez a primeira reunião geral da Rua Aderbal Rocha. Foto: Giulia Morschbacher / Resgatemais

Depois de oito meses da enchente de maio, o Departamento Municipal de Habitação de Porto Alegre (DEMHAB), anuncia a demolição do conjunto de 57 moradias da Rua Aderbal Rocha, no Sarandi, zona norte da capital gaúcha. O motivo são as novas reformas no Dique da Casa de Bombas 10, que faz parte do sistema de proteção contra as cheias. Posto isso, há também a remoção das famílias do local, que dizem terem sido pegas de surpresa, como conta a moradora Elisângela: “Eles estão ameaçando que quando chegar dia 28, eles vão pegar as máquinas e passar por cima das casas”. 

Há mais 30, Elisângela Melo, 42 anos, mora atrás do Dique Arroio Sarandi, na Vila Brasília. Ela faz parte do núcleo de moradores que terão que abandonar a Rua Aderbal. Após ter criado seus dois filhos no pátio em que hoje divide com a mãe e a irmã, Elisângela relata que foi discriminada pelo DEMHAB por atualmente morar sozinha. “Eles dizem que a gente tem que sair daqui até dia 28 de fevereiro, só que o meu nome não saiu ainda na lista. Porém, os nomes da minha mãe e da minha irmã, que moram no mesmo pátio, em casas separadas, saiu”. Buscando entender melhor o que aconteceu, a moradora foi atrás de respostas: “Entrei em contato com o DEMHAB e disseram que, como eu moro sozinha na casa, vou ficar por último. Ou seja, vai sair todo mundo e eu vou ficar. Como se eu fosse discriminada por morar sozinha”.

Sempre buscando olhar para frente:

Elisângela tenta achar formas de sair da área de risco, pois todo dia acorda com a vista para o dique. Foto: Giulia Morschbacher / ResgateMais

Além de conviver com as perdas materiais e problemas estruturais, devido aos 40 dias que seu lar ficou debaixo de água, Elisângela se preocupa com o matagal que tem crescido no entorno da casa. O quarto dela é quase dentro do paredão do Dique. Sua janela dá de frente para a vegetação que vem florescendo bastante desde o final da enchente de maio, o que atrai bichos indesejados, como excesso de insetos, cobras e até mesmo a presença de jacarés.

Apesar de não ter sido contemplada na chamada do Compra Assistida, por não estar na lista do DEMHAB, Elisângela já está procurando residências que estejam dentro das exigências da Caixa Econômica Federal (CEF), responsável pelo programa. Mas, tanto ela quanto a mãe e a irmã, vêm esbarrando nos requisitos contratuais. “Eu não tenho direito de escolher onde eu vou morar. Eles querem que a casa [do vendedor] tenha escritura, tenha Habite-se (documento que atesta que um imóvel está em conformidade com as normas de segurança, infraestrutura e habitabilidade), não pode ter nenhuma porta quebrada e nenhum vidro quebrado. Isso tudo no valor de 200 mil”, diz a atingida.

O Compra Assistida é um programa de habitação que disponibiliza a compra de imóveis em até R$200 mil para quem teve sua moradia destruída ou danificada por enchentes. A iniciativa tem sido utilizada em todo o Rio Grande do Sul, como uma das principais medidas de reconstrução. Somente em Porto Alegre foram abertos 4 mil processos de solicitação por parte da prefeitura à CEF, dos quais 2 mil haviam sido habilitados, e 41 foram concluídos. Ou seja, menos de 2% das famílias que necessitam de moradia fixa receberam a chave.

Ao lado da mãe e irmã, Elisângela posa para foto na intenção de mostrar que não está sozinha. Foto: Giulia Morschbacher / Resgatemais

Elisângela trabalha na recepção de um prédio, na Avenida Cristóvão, onde bate ponto às sete horas da manhã. Por causa disso, precisa morar em um lugar minimamente perto de seu serviço. A dificuldade maior em aceitar as casas ofertadas no site da Caixa, se dá porque parte delas ficam na Região Metropolitana. “A gente não está se negando a sair. A gente só quer ter o direito de escolher onde vai morar e escolher a nossa casa”, pontua a recepcionista.

“Eu moro a vida inteira com a minha mãe. Agora a gente vai ter que todo mundo se separar e cada uma vai para um lado? Isso também é algo que causa um problema emocional na gente. Não é só questão de casa. Eu criei  meus filhos tudo aqui com ela. Isso é um negócio que mexe emocionalmente com a gente. Tem dias que eu choro e que eu não como, porque a gente não sabe  o que vai acontecer. Tem que sair até o dia 28, mas para onde eu vou? Vou para debaixo de uma ponte? Vou alugar uma casa com mil reais? Se é tudo por corretora ou por imobiliária. Eu tô me sentindo coagida”.

Uns insistem, outros persistem: 

Família Góes em frente à casa que, daqui a menos de um mês, não existirá. Foto: Rafa Dotti / BdF RS

Vizinha de Elisângela, Carmem Góes também está com problemas para encontrar uma nova moradia seguindo as condições colocadas pela Caixa. “Se eu não achar casa até 60 dias, eu vou sair da fila da Caixa. Saindo da fila de espera, eu não sei quando vou voltar para a lista”, reclama Carmem. 

Com uma filha cadeirante, a dificuldade de Carmen em achar um novo lar aumenta toda vez que busca priorizar a acessibilidade na hora da compra. “A caixa só oferece apartamento para nós, e nós não queremos apartamento, queremos casa para deixar mais acessível para ela que precisa.”

Aos contemplados no Compra Assistida, a Caixa concede o tempo de 60 dias para a procura do imóvel. Entretanto, o fato que tem deixado os moradores apreensivos é justamente o limite de 30 dias para despejo, notificado pelo governo municipal. “O DEMHAB veio várias vezes aqui na minha casa entregar a cartinha concordando com o Estadia Solidária, só que nós não queremos. Eu vou sair daqui só com a minha casa. Não sou obrigada a aceitar o que eles querem. Eu quero ter o direito de escolher”, afirma a vizinha Elisângela.

Sem casa nova na mão, o que resta?

Segundo o ofício do DEMHAB, as 57 famílias que serão retiradas, seja aquelas que não estão na lista do Compra Assistida ou as que não encontraram a casa desejada, têm direito ao programa Estádia Solidária. A diarista Fátima Velasque é quem relata o que leu no documento de despejo: “Agora eles vieram com uns papel para gente assinar porque querem tirar a gente daqui e que vão dar tipo um aluguel social”. É comum que, assim como Fátima, muita gente confunda o Estádia Solidária com o Aluguel Social. Na verdade, o modelo é bem parecido. A diferença é que o A.S. o governo deposita direto na conta do proprietário do imóvel alugado, e no E.S. o dinheiro vai direto para uma conta no Caixa Têm do benefício, no caso, do próprio morador. Com o Estadia Solidária os moradores receberam um auxílio de R$1 mil por mês durante o período de 12 meses. O ofício não descreve nenhum outro benefício para além do Estádia Solidária ou auxílio para a mudança de casa.

Marido de Fátima investiu na construção da casa e do bar, que hoje é a sua única fonte de renda. Foto: Giulia Morschbacher / Resgatemais

“A gente não tem para onde ir com mil reais por mês, porque ninguém vai querer tirar um aluguel por mil reais. Aí tu tem que dar caução, pagar carreto, tirar todas as coisas da gente, destruir tudo que a gente tem e ir para onde?”, diz Fátima indignada com a situação. Diarista, nas horas vagas ela ajuda o marido com os clientes no bar “Amigos do Sertanejo”, o local tem um estilo de boteco. Então, não é só um lugar para comprar, mas para escutar música, beber e jogar sinuca. Quando questionada sobre a vontade do marido que estava acanhado para dar entrevista, ela responde: “Ele não quer sair daqui. É o único trabalho dele. Ele trabalhou 30 anos para conseguir comprar essa casinha e montar esse bar. Com o fundo de garantia, ele pagou esse bar e agora vão tirar tudo dele”.

Fátima relembra o dia que saiu de casa, era sábado quando o dique rompeu. Depois de 35 dias ela retornou, mas a água não tinha recuado. “Entrei com água por aqui. Porque o mais importante, eu queria ver se a minha casa estava ali. Porque até aquele momento a gente não sabia se a casa estava de pé, e meu maior medo era que eu ia perder a minha casa. Eu entrei com água podre e quando eu enxerguei a minha casa, eu fiquei muito feliz”,  fala ela com a voz embargada de emoção. 

Imagem tirada em cima do Dique do Campo de futebol, que fica na Rua Aderbal Rocha. Fotos: Rafa Dotti / BdF RS

O que a diarista estranhou foi seu nome ter saído na lista das casas a serem demolidas, sendo que ela não mora na área de primeira fase de demolição. Para ela, o processo de remoção tem sido confuso. A moradora afirma que não há transparência sobre as determinações e que o DEMHAB tem agido de modo desorganizado. “Era para sair 57 casas, mas muitas pessoas nem estão com nome na lista. Se essa é a prioridade de tirar as casas daqui, então que eles deem para nós as 57 casas primeiro. Tem gente que já está com nome na lista lá no começo da Aderbal, mas quem vai sair são esses daqui do final da Aderbal. E por que estão saindo os nomes de quem é do começo e muitos do início da Aderbal não tem nome lista?”, se questiona Fátima.

Encontro entre moradoras e moradores do Sarandi e o MAB reuniu cerca de 13 famílias. Foto: Giulia Morschbacher / Resgatemais

Se organizando enquanto moradoras, ao lado do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Elisângela, Carmen e Fátima se reuniram com o restante dos vizinhos, na última sexta-feira, para pensar em soluções. Por meio do MAB, os moradores protocolaram um pedido de reunião com o Gabinete do Prefeito Sebastião Melo, o DEMHAB, Departamento Municipal de Águas e Esgoto (DMAE) e a Secretaria Municipal de Meio Ambiente.


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