CAITLIN SCHROERING | “A luta por direitos deve ser globalizada, porque a exploração está conectada, como mostram as mudanças climáticas”
Membro do Comitê de Solidariedade ao MAB nos EUA, a professora universitária Caitlin está atuando como voluntária em Canoas (RS). Em entrevista exclusiva, ela defende a colaboração entre movimentos sociais de diferentes partes do mundo para que o poder popular possa mudar os sistemas que estão destruindo o meio ambiente e oprimindo as pessoas
Publicado 02/08/2024 - Atualizado 05/08/2024
Para Caitlin Schroering, “há algo incrivelmente único e poderoso nos movimentos sociais no Brasil, e, em particular no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que pode servir como referência para organizações de outras partes do mundo”. Por isso, a pesquisadora têm atuado entre o Brasil e os EUA na luta contra a privatização da água e outros temas relacionados aos conflitos por recursos. Doutora em Sociologia pela Universidade de Pittsburgh e mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidade da Flórida, ela é, atualmente, professora no Departamento de Estudos Globais da Universidade da Carolina do Norte e membro do Comitê de Solidariedade ao MAB nos EUA.
De forma mais geral, sua área de atuação envolve direitos humanos à água, economia política e movimentos sociais transnacionais, a partir de abordagens feministas e anticoloniais, que ela aprofundou a partir de intercâmbios no Brasil, quando conheceu em campo o trabalho do MAB. Atualmente, ela está novamente no país para atuar junto aos integrantes do movimento no Rio Grande do Sul, apoiando as vítimas das enchentes no estado. Para a professora, a luta por moradia, água e vida digna deve ser globalizada, porque a exploração dos territórios e das comunidades está conectada internacionalmente, a exemplo do que que acontece com as mudanças climáticas. Confira, a seguir, entrevista completa.
O que te motiva a pesquisar e atuar em movimentos sociais no Brasil?
Em 2008, participei de um intercâmbio em Belém do Pará e passei alguns dias num assentamento do MST no sul do estado. Na ocasião, aprendi sobre extrativismo e exploração da Amazônia e sobre as formas atuais de colonialismo. Me senti paralisada pela ganância do mundo, especialmente do meu país, e decidi voltar para os EUA e me organizar para lutar. Na volta, eu concluí um mestrado em Estudos Latino-Americanos na Universidade da Flórida e iniciei um programa de doutorado em Sociologia na Universidade de Pittsburgh, focado em estudos de movimentos sociais, e me dediquei a uma pesquisa sobre privatização da água.
Essas experiências práticas e acadêmicas me mostraram a necessidade de colaboração entre movimentos sociais em diferentes partes do mundo. Por isso, minha atuação se concentra em compreender as estratégias e os impactos desses movimentos, apoiando-os de forma prática. Então, não venho apenas estudar movimentos no Brasil, mas trabalhar em solidariedade a eles, como uma militante, porque acredito que a luta deve ser globalizada. Acho que há algo incrivelmente único e poderoso no passado e no presente dos movimentos sociais no Brasil, e em particular, no MAB. Acho que o resto do mundo pode aprender como as coisas são feitas aqui e acredito que a gente precisa trabalhar juntos e aprender como conectar nossas lutas. É sobre isso que escrevo e pesquiso!
Como os agentes privados de mercado têm interferido nos direitos coletivos relacionados ao acesso à água, à terra e à energia em todo o mundo?
De muitas maneiras, né?! Porque o mercado só quer ganhar lucro. O lucro sobre a vida. Portanto, sacrifica-se a vida em todas as suas formas para obter lucro: a energia, a terra, a água – todos se tornaram mercadorias, colocando o “direito” de uma empresa de extrair lucro sobre a vida. Não pode haver direitos reais ou justiça quando o mercado está no controle, porque tudo – até a vida humana – é reduzida a uma mercadoria. Esta é também uma ética muito individualista… trata-se de lucro para poucos, e não do bem coletivo da humanidade e do meio ambiente.
Existem diferenças de padrão no caso de países subordinados às políticas liberais?
Então, este é mais complicado, né? Claro! Sim, existem! Mas também penso que cada vez mais, devido ao poder das empresas e do capital financeiro, vemos diferenças de abordagem também dentro dos países. As pessoas são exploradas em todos os lugares por causa do capitalismo. É mais fácil fazer essa exploração quando é mais difícil de ver. Então, um país como o Brasil tem seus recursos extraídos para trazer lucro para outro lugar. Mas esse mesmo processo de extração aconteceu nos EUA – um país construído em terras roubadas e com o trabalho das pessoas sequestradas e escravizadas. E hoje, os pobres, os trabalhadores dos EUA, também não se beneficiam deste sistema.
Por exemplo, as estimativas mais recentes mostram que 17% dos familiares com crianças nos EUA não conseguem comprar comida suficiente para as suas famílias: 22% delas são de famílias negras, 21% de famílias latinas e 9% de famílias brancas. E este é o país mais rico que o mundo já conheceu, mas é claro que existe desigualdade, já que este país foi construído com base na violência e na extração, e mantém a sua riqueza e poder através deste mesmo padrão.
As forças armadas dos EUA utilizam mais petróleo do que qualquer outra entidade no mundo e emitem mais gases com efeito estufa do que países “industrializados” inteiros. É literalmente a maior pegada de carbono do mundo. E o governo está isento de divulgar emissões. Todo o dinheiro vai para o complexo industrial militar para defender a nossa hegemonia.
O meu país gasta o seu dinheiro para bombardear e matar pessoas, inclusive na Palestina… Ao invés de gastar o dinheiro em alimentação, saúde, educação, habitação. Então, sim, existem diferenças nos países, mas também acho que o povo tem mais em comum: são apenas algumas pessoas com poder que beneficiam o mundo inteiro. Mas o desafio é que o nosso sistema educativo não nos ensina isso. Então, as pessoas não sabem sobre a história ou o presente.
Como os conflitos por recursos naturais afetam a população mais vulnerável?
O que me vem à mente é o livro Grito da Terra, Grito dos Pobres, de Leonardo Boff. A exploração está toda conectada. E vemos isso com as mudanças climáticas. As mudanças climáticas não são uma coisa passada ou futura, estão acontecendo e os mais vulneráveis estão sofrendo. As pessoas que viveram em equilíbrio com o ambiente, e que menos fizeram para causar o problema das mudanças climáticas, por exemplo, são as que mais sentem os seus efeitos. Trata-se de poder, opressão e ganância – as mesmas forças (capitalismo racial, patriarcado, colonialismo) que oprimem as pessoas estão destruindo o meio ambiente também. A gente não está separado da natureza. Nós fazemos parte da natureza, né? Mas esquecemos disso.
Qual a importância dos movimentos sociais nessa dinâmica do conflito por recursos?
As pessoas que estão destruindo o mundo têm todo o poder, sim. Mas não precisa ser assim! A gente tem que trabalhar juntos para mudar isso. Eu acho que os movimentos sociais são a única esperança no mundo. Para mudar quem tem o poder, para recuperá-lo, para dizer que isto cabe a nós, o povo, compartilhar e viver em equilíbrio com outras pessoas e com natureza. O poder do povo é real.
Aprendi como organizadora que existem duas formas principais de poder: pessoas organizadas e dinheiro organizado. Não temos dinheiro organizado, mas podemos organizar as pessoas para mudar quem tem o poder. Isso está tão evidente agora na Cozinha Solidária em Canoas (ES), onde eu estou escrevendo isso agora. Eu vejo as pessoas atingidas que foram esquecidas pelo estado e, na verdade, o mundo. Há partes das comunidades mais afetadas onde o plano é não ajudá-las a reconstruir suas vidas, porque é uma boa localização e os poderes constituídos querem vender as terras aos ricos para construir mansões, mas as pessoas vivem lá. Então, as pessoas precisam de movimentos sociais organizados, como o MAB, para ajudar não apenas na mobilização após uma catástrofe, mas também para construir o poder popular para mudar os sistemas que estão a destruir o ambiente e a oprimir as pessoas. O povo precisa de solidariedade, não caridade.
No Brasil, o governo de São Paulo acabou de privatizar a companhia de água. Qual o impacto desse movimento de privatização do ponto de vista dos direito humano à água?
Vou responder isso com uma história sobre meu país, tá? Nos Estados Unidos, houve um movimento nos anos 1800 e 1900 para criar sistemas públicos de água. Isso ajudou a garantir e expandir o acesso à água potável, o que também reduziu significativamente as taxas de doenças e mortalidade. Nove em cada dez pessoas nos Estados Unidos recebem água de uma concessionária pública e a tendência é a “re-municipalização” do sistema, devolvendo à esfera pública serviços que foram privatizados.
Globalmente, a “remunicipalização” de serviços públicos que foram privatizados está crescendo, sugerindo uma reversão da tendência de privatização que ocorreu nas décadas de 1980 e 1990, porque o neoliberalismo não melhorou a vida para o povo. A privatização e a austeridade ajudaram a consolidar a riqueza e não a melhorar a vida dos pobres.
Em torno de 500 dos maiores sistemas de água dos Estados Unidos mostraram que as concessionárias privadas cobraram uma média de 59% mais do que os sistemas controlados publicamente (aproximadamente US$315 por ano para 60.000 galões contra US$500 para uma empresa privada).
Na Pensilvânia, as concessionárias de água privatizadas cobraram 84% a mais do que as públicas. Em Nova Jersey, as pessoas em sistemas privados pagam 79% a mais. Estudos e experiências mostram que a privatização da água significa taxas mais altas e água de menor qualidade. Consequentemente, locais que privatizaram a água estão se voltando para reivindicá-la como pública. Em suma, o custo é uma razão significativa para a virada da remunicipalização, mas outra razão importante é que os serviços públicos são, por definição, mais responsáveis e transparentes para o público. E quando não são, porque são controlados publicamente, há espaço para considerá-los responsáveis.
Com relação às populações atingidas por barragens, estamos vivendo a internacionalização dos processos relacionados aos crimes ambientais cometidos no Brasil por empresas com capital internacional. Ao mesmo tempo, governos estaduais do país têm se alinhado às propostas das mineradoras em detrimento das demandas da população. Como você vê esse cenário? Como fica a centralidade da vítima nessas disputas de interesses?
Não sou brasileira, mas me vejo como um membro do mundo. Então, isso não é para isolar o Brasil. Acho que vemos processos semelhantes acontecendo em muitos lugares, né? Os estados ainda são importantes, claro, mas o poder do capital e das corporações globais é cada dia mais poderoso. E é assustador, porque as empresas não prestam contas aos estados. Não há regulamentação, na verdade. Acho que isso é muito errado: o capital não deveria governar. E os “líderes” políticos não são realmente líderes se não ouvirem as pessoas que os elegeram. As vítimas devem estar no centro – quaisquer decisões tomadas sem elas não são justiça. E o capital – lucro – não deveria estar acima da vida. Isso vale para qualquer lugar deste planeta. E estou ao lado das pessoas que lutam pelos seus direitos em todo o mundo.
Como você vê a atuação do MAB junto às populações atingidas por barragens? Qual a importância da articulação coletiva nesse contexto da construção e operação de barragens em todo o mundo?
Esse trabalho é muito importante em muitos aspectos. Esse é o tema do livro que escrevi, que será publicado em setembro. Acho que o MAB é único. Como Rob Robinson (também membro do Comitê de Solidariedade ao MAB nos EUA) e eu conversamos, é difícil explicar o trabalho do movimento para quem está nos Estados Unidos, porque não há nada como o MAB lá. O trabalho é muito importante, especialmente agora que vemos infraestruturas envelhecidas com maior risco. Enquanto isso, os governos não garantem a segurança das estruturas existentes e seguem licenciando novas barragens, focados apenas nos lucros das empresas. Isso não acontece somente no Brasil. São muitos países, incluindo os Estados Unidos, que têm infraestruturas terríveis, causando acidentes e maiores riscos. No entanto, ninguém está falando sobre isso.
Na sua biografia você diz utilizar abordagens anticoloniais na sua atuação e pesquisa. No tema da energia e da água, o que significa ser anticolonial?
Para mim, é sobre minha metodologia. Com o qual meu trabalho é solidário. Eu sou uma pesquisadora, sim. Mas também sou uma militante. Uso o termo “anti” ao invés de “decolonial” por causa da minha própria posição como pessoa branca de um país colonizador. Tenho a obrigação de lutar contra o colonialismo e o imperialismo. Portanto, para mim, o tema da água significa lutar contra as formas contínuas de colonialismo e imperialismo sob a forma do capital financeiro. Os movimentos sociais não precisam de acadêmicos. Por exemplo, o MAB não precisa de mim para o “estudar”, mas acredito na investigação, em teoria com práxis, no trabalho em solidariedade com os movimentos.
Vim para a academia trabalhando em movimentos sociais e não o contrário. Então, não consigo separar minha militância da minha pesquisa. Como escreveu Florestan Fernandes: “para o sociólogo não há neutralidade. Ou você está do lado do opressor ou do oprimido”.
É também, por isso, que estou muito envolvida na luta contra o genocídio que está a acontecendo na Palestina neste momento. Eu não posso ser uma professora que apenas escreve sobre decolonialismo e fala sobre isso nas aulas, mas depois não faz o mesmo, sabe?
Quais os paralelos podemos traçar entre as violações de direitos ocorridas contra comunidades atingidas nos EUA e no Brasil ?
As mesmas corporações, o mesmo sistema capitalista racial causa a exploração no mundo: Veolia, Vale, Black Rock estão lucrando! E as pessoas são deslocadas, não têm teto, não têm cuidados de saúde, não têm comida, são atingidos pelo extrativismo em todos os lugares no mundo.
Como regular a atuação de empresas transnacionais que atuam com exploração do setor de energia ao redor do mundo em relação a proteção dos direitos humanos de comunidades atingidas?
Essa é a questão, né? Não sei se tenho uma resposta boa, sabe? Mas acho que temos que revidar. Temos que resistir. Então, temos que agir como o MAB, pressionando os governos pela responsabilização da Vale… ou o que fizemos em Pittsburgh, dizendo que não queremos outra parceria pública privada (PPP) como a “solução” para resolver o problema do chumbo (porque foi uma PPP que causou o problema no primeiro lugar). É assim que fazemos. Juntos, a gente pode ter poder, né?
Com relação às mudanças climáticas, como o capital internacional impacta nesse tema? Quais são as populações mais afetadas?
Eu poderia falar muito sobre isso, mas a primeira coisa que me vem à mente é uma reunião do MAB no Rio, no mês passado (junho), sobre mudanças climáticas. Foi excelente e o que foi discutido lá também se relaciona com a questão sobre o que “anticolonial” significa para mim. Os oradores falaram sobre como a Academia também reproduz o capitalismo – capital pago para estudos para mostrar que as alterações climáticas não existiam muitos anos atrás, por exemplo. Então, os capitalistas perceberam que as alterações climáticas eram uma abertura para mais acumulação e criam novos mercados tecnológicos. Por isso, o “capitalismo verde” não vai funcionar para melhorar a mudança climática!
Outra coisa verdadeira e poderosa que foi afirmada é que pessoas já morreram devido às mudanças climáticas. Elas não significam o fim do mundo para todos. Os ricos podem escapar. Os pobres não podem. Perto do final da reunião alguém afirmou que “nós somos atingidos pelo modelo de sociedade”. Vemos isso no Rio Grande do Sul, onde estou agora… quem tem recursos consegue limpar melhor suas casas, ficar com a família, se mudar. Mas as pessoas mais vulneráveis e marginalizadas morreram, vivem nas barracas à beira da estrada, sem aquecimento, sem saneamento, sem água, sem comida, são esquecidas por todos. O sistema econômico enxerga as suas vidas como “descartáveis”.
E para mim isso é um crime. O sistema capitalista é violento. E com as alterações climáticas, essa violência só se tornará mais violenta. E as pessoas mais vulneráveis – os pobres, os negros, os povos indígenas – já são as que mais sofrem.
Qual a importância das redes de solidariedade internacional entre atingidos por grandes empreendimentos?
É muito importante porque as pessoas não sabem. Eu ensino aos meus alunos sobre Brumadinho, por exemplo, e eles não sabem disso. E eles ficam com raiva – eles me perguntam por que não sabiam… Eu pergunto para as turmas quem se beneficia com o fato deles não saberem? Ou no Brasil, as pessoas ficam surpresas ao ouvirem que muitas crianças passam fome. Nos EUA e no Brasil – provavelmente na maioria dos lugares – não temos informações, não percebemos como as mesmas forças estão nos oprimindo. E quem se beneficia com isso? Não é o povo. São os capitalistas, certo?
Então, sim, a solidariedade é importante. É importante aprender sobre a história, as vitórias, as lutas e as diferentes formas de organização… É importante para a estratégia, mas também para a esperança. Sinto esperança nos espaços com o MAB/MAR… A gente não pode fazer nada se não tem esperança. Então, nesses espaços de solidariedade internacional, podemos imaginar o mundo que queremos e até começar a criá-lo!
Na sua perspectiva, como transformar o modelo energético para garantir acesso a esse serviço com soberania e justiça social?
Eu realmente acho que o trabalho que o MAB faz de educação popular é muito importante. Existe uma citação, atribuída a diferentes pessoas, que diz “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Vejo meus alunos de 18, 19, 20 anos e eles veem que o mundo está quebrado. Mas eles realmente não têm esperança. Eles não conseguem imaginar que as coisas possam mudar. Mas a realidade é que o sistema que temos é uma pequena parte da história humana. A única constante é a mudança. Como será essa mudança? Mais violência? Mais ganância? Parece que sim, claro. Mas não precisa ser assim. Mas essa é a armadilha: a hegemonia cultural! Não podemos imaginar uma saída. Mas quando trabalhamos juntos, a esperança é mais fácil, porque podemos ver as mudanças, mesmo que pequenas, acontecendo juntos na comunidade. Construímos o mundo que queremos. Talvez não possamos ver isso em nossas vidas. Mas fazemos a nossa parte. Pode ser bobagem compartilhar isso, mas vou: eu tatuei, no braço esquerdo, “a luta continua” e no braço direito “Internacionalizemos a luta, internacionalizemos a esperança”. Está lá para me lembrar por que faço o trabalho que faço.