“O primeiro caminho a ser seguido para evitar a próxima enchente é escutar o que dizem os especialistas”, diz engenheiro sobre o RS

População da comunidade Sarandi, em Porto Alegre, relata que ainda sente medo e insegurança com a atual situação, devido à falta de manutenção da estrutura anti-enchentes do bairro

Especialista em Planejamento Energético e Ambiental, Vicente Rauber, assinou, recentemente, uma carta aberta dos engenheiros do Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE) do Rio Grande do Sul. O documento veio a público como prova de que a gestão municipal de Sebastião Melo, prefeito de Porto Alegre (RS), tinha ciência dos reparos necessários para manter o sistema contra as cheias na capital gaúcha em funcionamento. Para ele, o primeiro caminho a ser seguido para evitar a próxima enchente é escutar o que dizem os especialistas.

“Temos um dos maiores, se não o maior, sistema de proteção contra inundações através de diques, casas de bomba e comportas do país. E esse sistema não teve a manutenção mínima e necessária desde 2001”, diz Rauber, ex-presidente do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), órgão extinto em 2017.

O especialista se refere ao sistema contra enchentes de Porto Alegre, que estava em parte colapsado quando aconteceu a última enchente. Desde a década de 1970, a estrutura de concreto de 3 metros de altura e 2,6 km de extensão faz parte de um sistema de contenção de águas, que teve falhas por conta de falta de manutenção durante as cheias deste ano.

Diante deste tipo de situação, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) tem atuado junto aos atingidos por mudanças climáticas para reivindicar políticas públicas mais eficientes e capazes de proteger a vida da população.

“Todo o sistema de proteção precisa ser ampliado e modernizado. Tão importante quanto isso é formar o próprio povo, para monitorar, fiscalizar e garantir que estejam funcionando, explica Alexania Rossato, integrante da coordenação nacional do MAB no Rio Grande do Sul.

Nos últimos anos, a questão dos impactos das mudanças climáticas ganhou uma grande dimensão na pauta e atuação do Movimento. Alexania defende que a articulação popular em torno do tema é essencial para se prevenir futuros desastres. 

“A crise climática tem nos deixado mais expostos e vulneráveis. O que aconteceu no Rio Grande do Sul mostra que ainda estamos muito despreparados para lidar com essas tragédias”, afirma a coordenadora. Na visão dela, é necessário que a população esteja atenta à nova Política Nacional de Proteção e Defesa Civil e à Política Nacional de Adaptação às Mudanças Climáticas, ambas em elaboração pelo Governo Federal. 

Onde mora a reconstrução

Se o cenário da zona central de Porto Alegre, tomado por quase dois metros de água, já era considerado caótico, o que resta para os pontos onde a altura da água chegou a seis metros? No bairro Sarandi, as únicas coisas que ficaram visíveis foram as placas de “Pare”, os telhados das casas submersas – que parecem flutuar – e os galhos de árvores boiando durante um mês de alagamento.  

O terror teve início na noite do dia 03 de maio, quando o dique da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (FIERGS) extravasou, fazendo com que os moradores da comunidade da Asa Branca saíssem às pressas de suas residências. Em poucas horas, o dique do Arroio Sarandi também transbordou, causando desespero nas vilas União, Nova Brasília, Elisabeth e Minuano.

Sarandi: enchentes recorrentes

Segundo a diretoria de Planejamento Urbano (DPU) da capital gaúcha, o Sarandi foi o bairro mais afetado pela enchente na cidade. Com um total de 26.042 pessoas atingidas, a região lidera no ranking de edificações alagadas. Dentre essas, seis escolas públicas tiveram a sua estrutura comprometida.

Morando na Vila Nova Brasília há 40 anos, Valcir Facch, 67, relata que os alagamentos nas redondezas são comuns. “Alagamento sempre tem, todo ano tem… Na minha casa, só neste ano, a água já entrou três vezes”, conta.

Vindo de Lajeado na década de 1980, o morador lembra que a sua primeira moradia na capital foi às margens do Arroio Sarandi, época em que o sistema de contenção já havia sido criado, devido à enchente de 1941. Além dos dois diques que contornam as periferias do Sarandi, existem quatro casas de bombas na região que fazem parte da proteção contra cheias em Porto Alegre.

As estações de bombeamento de água pluvial (EBAPS) são compostas por 23 casas de bombas, das quais 14 foram desligadas ou pararam de funcionar no último período. As bombas servem para escoar as águas da chuva para o Guaíba e impedir o transbordo dos diques, conforme explica Valcir. Porém, as casas de bomba nunca funcionaram com regularidade.

“Sempre faltou manutenção. Todos os prefeitos passaram por aqui, mas nunca ninguém fez uma gestão eficiente do sistema”, ressaltou o atingido, em visita ao local. A equipe do MAB esteve com o morador na ponta do dique do Arroio Sarandi e não identificou trabalhadores no entorno da área realizando quaisquer atividades de reparo ou de construção.

Para virar o jogo será preciso fazer mais do que manutenção

Para o engenheiro Rauber, uma das soluções para os alagamentos é promover a recuperação ambiental das margens dos rios da cidade. “De maneira alguma podemos deixar a terra sem vegetação, porque esta terra é arrastada pela água da chuva que vai para as canalizações, para os arroios, para os rios que, depois, ficam sem espaço para escoar mais água. E essas são as águas que invadem a cidade”, explica o especialista.

Para ele, a reconstrução da cidade precisa incluir um programa de reassentamento para os moradores de áreas de risco, o que significa realocar moradias em territórios seguros na intenção de transformar o antigo terreno em área verde.

Outra análise do engenheiro é que o acúmulo de lixo no bairro dificulta o funcionamento do sistema de drenagem nos arroios e dilúvios, pois os resíduos causam lentidão no fluxo das águas da chuva que entram nos bueiros, por vezes, resultando no entupimento das “bocas de lobo” e aumentando as chances de alagamento. 

Ou seja, na versão do especialista, diversas negligências explicam as proporções que tornaram esta enchente uma das maiores tragédias climáticas do Brasil. Ainda assim, Rauber não acredita que o problema tenha sido causado pela falta de orçamento do DMAE. Numa entrevista concedida ao jornal Brasil de Fato, ele avalia que existe viabilidade financeira para tornar Porto Alegre uma cidade mais segura do ponto de vista da gestão hídrica. “Para a realização deste plano [de modernização do sistema de proteção], o DMAE pode utilizar parte dos R$ 430 milhões que tem em aplicações financeiras”, disse Rauber ao jornal. 

Balanço da tragédia

Dois meses após o início das enchentes, ainda existem, segundo a Defesa Civil estadual, 388.781 pessoas desalojadas e cidades inteiras destruídas, que mostram a dimensão da tragédia. Ao todo, foram 2.398.255 pessoas atingidas, em 478 municípios e 178 óbitos confirmados.

Especialistas apontam que pelo menos três fatores combinados foram determinantes para a dimensão do desastre. O primeiro deles são as próprias chuvas extremas, com volumes bem acima da média influenciadas pelo El Niño. Em alguns locais, a precipitação ultrapassou 300 mm em poucos dias, sobrecarregando rios e bacias hidrográficas, o que ocasionou enchentes no Vale do Taquari, Vale do Rio Pardo e Serra Gaúcha.

O segundo é que toda essa água do Delta do Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí chegou a Porto Alegre. Somente entre o 1º e 7 de maio, o Rio Guaíba recebeu um volume de 14,2 trilhões de litros de água, de acordo com o Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Por último, todo o sistema de proteção contra enchentes e inundações, que foi construído na região metropolitana, foi recorrentemente fragilizado nos últimos anos.

Sistema de proteção de Porto Alegre: prevenir continua sendo o melhor remédio 

Ainda na sua criação, Porto Alegre tinha 476.160 hectares de área, com 35% de área urbanizada situada abaixo da cota três (três metros acima do nível do mar). Ou seja, uma cidade plana e baixa, o que já indicava o risco de inundações. Foi apenas após a grande enchente de 1941 – quando mais de 70 mil habitantes foram atingidos pelo alagamento do Guaíba, que o município passou a discutir formas de se proteger das cheias. Na época, a capital ficou um mês sem energia elétrica e sem água potável, quando o Guaíba atingiu a marca histórica de 4,75 metros.

A partir da tragédia, foram analisadas diferentes propostas para a prevenção de transbordamentos: o aumento da seção de vazão do rio Guaíba, contenção das cheias a partir da construção de barragens nos formadores do rio, construção de um canal no rio Gravataí e formação de uma doca que protegesse Porto Alegre na cota de três metros. Essa história está registrada na cartilha “Prevenir é o melhor remédio: sistemas de proteção contra inundações e alagamentos de Porto Alegre”, de 1992, assinada por Vicente Rauber.

Todas as soluções acima tinham em comum a necessidade de construção de grandes obras e, por isso, foram descartadas. No fim das contas, os gestores da época optaram pelo o sistema de “pôlderes”, composto por diques (muros), reservatórios, dutos e bombas.

“O projeto, de responsabilidade do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), tomou como referência a enchente de 1941, estabelecendo-se a cota de coroamento 6 metros. A implantação do sistema se iniciou na década de 1970, ainda não estando completamente concluída. Se, por um lado, a “taipa” que circunda Porto Alegre impede a entrada das águas dos Rios Gravataí e Guaíba, as mesmas poderiam entrar e fazer extravasar as águas dos arroios afluentes. Por isso, o projeto inclui a extensão do sistema (diques, casas de bombas, comportas) ao longo das margens dos principais arroios, igualmente na cota de coroamento 6 m. Denominamos estes trechos diques internos”, diz o texto da cartilha.

De acordo com o diagnóstico da Prefeitura de Porto Alegre, o único equipamento do sistema que não apresentou problema foi o Muro da Mauá. Vale ressaltar que, sob os governos Nelson Marchezan Júnior (PSDB) e de Sebastião Melo (MDB), o DMAE teve uma redução drástica do seu quadro efetivo e investimentos. Em 2013 a força de trabalho era de 2.325 trabalhadores e passou, em 2021, para cerca de 1.100, e R$ 239,72 milhões investidos em 2012, o valor caiu para R$ 136,87 milhões em 2022.

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