ARTIGO | Adaptação é uma questão de vida ou morte no Brasil

Ensaio destaca a importância de política de resiliência climática e adaptação com participação popular

Lago do Aleixo quase seco, deixando barcos e flutuantes encalhados, durante a maior seca em 121 anos que Manaus sofreu em 2023. Foto: Rafa Neddermeyer / Agência Brasil

Ao longo dos últimos anos, tem se intensificado os eventos extremos no país relacionados à mudança do clima — secas prolongadas, ondas de calor e chuvas extremas que passam a ser recorrentes em diferentes regiões. Entre 2013 e 2022, de acordo com a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), 4 milhões de pessoas no Brasil foram afetadas diretamente por eventos relacionados às mudanças climáticas em mais de 90% dos municípios brasileiros. E o número de vítimas fatais tem aumentado a cada ano. Faltam investimentos e uma política robusta de adaptação.

Atualmente, segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima (MMAMC), 1.038 municípios são mais vulneráveis e o órgão estuda formas de intensificar ações emergenciais e estruturantes que passam, por exemplo, pela decretação de emergência para facilitar obras. Ao mesmo tempo, o MMAMC tem se debruçado sob o Plano Clima (2024-2035), que tem como objetivo principal “aumentar a resiliência do país”, articulando 15 planos setoriais e integrando políticas federais e a agenda do clima. O desafio, porém, não é pequeno por conta de obstáculos, como garantia de orçamento, integração entre estados e municípios e participação.

O fato é que quanto mais tempo demoramos, mais vidas podemos perder.

Grandes metrópoles: onde a mudança do clima encontra a desigualdade e o racismo estrutural

Em grandes metrópoles como São Paulo (SP), considerada a área mais suscetível às mudanças climáticas na América Latina, além do número alto de pessoas em áreas de risco, há menos investimentos do Estado nessas mesmas regiões e menos acesso a água encanada, tratamento de esgoto, estruturas para manejo de águas de chuva. Ou seja, o racismo ambiental potencializa não só as chuvas extremas, mas seus efeitos, como as enchentes.

De acordo a Defesa Civil, 750 mil casas estão localizadas em áreas de risco para deslizamento ou desabamento na região metropolitana da capital paulista, resultado direto da falta sistemática de uma política de moradia.

Vista aérea do Jardim Lapenna em São Paulo, entre becos e vielas, população se aglomera em ocupações precárias. A região está localizada em área de risco de enchentes que acontecem com regularidade. Foto: Toni Pires no El País

Em Manaus (AM), maior metrópole da Amazônia, o mesmo se repete. Somente a capital tem mais de 600 áreas de risco. Em 2023, durante as chuvas de março, nove casas foram engolidas pelo deslizamento no bairro Jorge Teixeira, zona leste da capital, matando oito pessoas. A ocupação existe há cerca de cinco anos, em área de risco, conhecida pelo poder público. Parte das famílias retornou para as casas após as chuvas, e convive com o risco por não ter condições econômicas de morar de aluguel ou comprar um imóvel em outro local. Essa é a realidade da maioria dos brasileiros que vivem nas áreas de risco pelo país.

Como se não bastasse, o número de ocupações em torno de rios e córregos urbanos tem aumentado 102% em pouco mais de três décadas. Segundo o Mapbiomas, São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Manaus e Curitiba concentram a maior parte do problema. Isso mostra que há um descompasso entre as políticas de adaptação e o planejamento da ocupação nos municípios, o que pode fazer com que o número de mortos em virtudes de enxurradas e enchentes, como no Vale do Taquari (RS) em novembro de 2023, se torne uma tendência.

Prevenção salva vidas e poupa recursos

Nos últimos 10 anos, o país teve mais de R$500 bilhões de prejuízos calculados referentes a desastres provocados por secas e chuvas. De acordo com um estudo da Organização das Nações Unidas (ONU), a cada U$1 em prevenção, se economizava U$7 em recuperação. Ou seja, com a frequência e intensidade desses fenômenos aumentando, investir em estrutura de prevenção e adaptação poderia, não só diminuir gastos a longo prazo, como também melhorar a qualidade de vida e risco que correm milhares de famílias.

Prevenir com ampla participação popular de moradores de áreas de risco e suscetíveis poderia ser outro diferencial de uma política robusta de adaptação. Hoje, o Estado tem uma ampla estrutura de monitoramento do Clima, a partir do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e de monitoramento de riscos com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), mas na ponta, as ações de comunicação e educação ainda ficam a cargo das defesas civis estaduais e municipais, que continuam com pouca estrutura, formação e capacidade de atuação.

Na prática, essa situação faz com que, em muitos casos, conforme ocorreu em São Sebastião (SP), no último 27 de janeiro. Mesmo com as sirenes acionadas diante de uma chuva de mais de 100 mm, quase ninguém apareça nos pontos de apoio ou que a comunicação se dê com mensagens vagas e gerais, como “fique em casa”, o que pode ser a pior situação em caso de áreas próximas a córregos e rios.

O Brasil tem uma oportunidade única — um país continental, desigual, em crescimento, com quase nove milhões de pessoas em áreas de risco (o equivalente a uma Áustria) —, fazer uma política de resiliência climática e adaptação com participação, transformando as cidades brasileiras para um novo tempo.

Francisco Kelvim é membro da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), arqueólogo e jornalista da Amazônia.

*Este conteúdo foi publicado originalmente no portal Amazônia Latitude.

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