Em intercâmbio na Áustria, MAB e IRPAA debatem sobre o acesso à água no semiárido brasileiro

Ao longo do mês de abril, a organização austríaca Welthaus promoveu encontros entre representantes brasileiros com entidades e comunidades atingidas do país europeu

O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA) estão participando de uma série de atividades com a Welthaus (‘Casa do Mundo’ em português), no intercâmbio “Água para todos? Uma questão de justiça”. O intercâmbio acontece na Áustria e busca promover a troca de experiências sobre a desigualdade no acesso à água no Brasil, com foco no semiárido brasileiro. 

A instituição se propõe a construir mudanças sustentáveis e, para isso, vem desenvolvendo intercâmbios com organizações de diversas partes do mundo. Desta vez, as atividades envolvem o debate em escolas, universidades e com grupos de ativistas, falando sobre a convivência com semiárido e os conflitos gerados pelos grandes empreendimentos de barragens na região, bem como os riscos da privatização da água e da energia para o povo brasileiro.

Foto: Welthaus

Parte do intercâmbio se dá através de visitas em comunidades atingidas. Nas últimas semanas, dois pontos de parada foram a Estíria, estado localizado no sudeste do país, bastante montanhoso e que vivencia uma adesão às energias renováveis, especialmente a energia eólica, e, na Alta Áustria, estado industrial localizado na região norte, onde disputas sobre o equilíbrio entre desenvolvimento econômico e proteção ambiental são travadas constantemente.

Renovável sim, mas não assim

Desde 2012, a capacidade instalada de energia eólica no estado austríaco multiplicou por seis, impulsionada por políticas favoráveis e condições climáticas ideais. Atualmente, 118 turbinas eólicas operam na Estíria, gerando 310 megawatts (MW) de energia renovável. 

Apesar dessa expansão reduzir significativamente a dependência de combustíveis fósseis, de diversificar a matriz energética e contribuir para a segurança energética do estado, assim como no Brasil, muitos desses projetos de desenvolvimento não levam em consideração os povos e seus territórios. 

No último dia 19, a visita aconteceu no município de Gaal, local em que a organização popular teve destaque quando a VERBUND, “principal empresa de energia da Áustria e um dos maiores produtores de energia hidrelétrica da Europa”, como se autoafirma, buscava desenvolver um projeto de instalação de 250 turbinas eólicas em toda a Estíria até 2030, oito delas na região do Murta, na Montanha Brandkuppe, através do projeto “Energia Eólica Brandkuppe”.

Em junho de 2023, no entanto, o projeto enfrentou a oposição da população, que se organizou através de uma iniciativa cidadã, um referendo não vinculativo, contra a construção do Parque Eólico. A maioria dos eleitores rejeitou o projeto, com 71,85% dos votos contra e 28,15% a favor, enterrando de vez a iniciativa.

Através do diálogo com lideranças atingidas, o MAB pôde conhecer de perto a comunidade que participou desse processo. “Interessante que o modelo energético aqui é como no Brasil, a produção de energia não é para o povo e sim para as empresas. Uma iniciativa de produção e distribuição de energia e outra de reflorestamento. Os atingidos perceberam esse absurdo, lutaram e conquistaram seus direitos. Garantiram a preservação da montanha, que, para eles, é a principal riqueza de seu território”, conta Moisés Borges, membro da Coordenação Nacional do MAB na Bahia.

A natureza não tem lobby

Apesar da diversificação na geração de energia, a matriz hidrelétrica se mantém como a principal fonte renovável na Áustria, representando cerca de 65% do panorama energético do país. Esse potencial carrega consigo uma série de problemáticas e impactos socioambientais, como a inundação de áreas naturais, a alteração do fluxo dos rios e o deslocamento de comunidades, o que tem despertado grupos ambientalistas na defesa de  medidas para minimizar os impactos e garantir os direitos das populações atingidas. 

No dia 22, o intercâmbio promoveu uma visita no município de Schwanber, onde os atingidos, através da ONG “Arbeitskreis zum Schutz der Koralpe”, com uma iniciativa de nome “Nein zum Industriepark Koralm”, fizeram resistência a dois projetos hidrelétricos. Uma barragem com potencial de 4 MW que está paralisada há 20 anos e outra com potencial de 980 MW paralisada há 10 anos, ambas no Rio Schwarze Sulm, nascido na encosta dos Alpes, que serpenteia por 36,7 km, e além de possuir um ecossistema de águas ecologicamente importante, também abriga centenas de espécies animais ameaçadas de extinção.

Alguns dispositivos contribuem na luta dos atingidos, um exemplo é a Diretiva-Quadro da Água (DQA) da União Europeia (UE) estabelecida em 2000, um marco legislativo crucial para a proteção e gestão sustentável dos recursos hídricos na Europa. A DQA determina que a qualidade da água do Rio Schwarze Sulm deve permanecer muito boa, o que para muitos especialistas, exclui a construção de uma usina hidrelétrica. 

Ainda assim, a luta tem sido bastante dura. A poluição, a construção de barragens e a pesca excessiva fazem parte da disputa diária travada entre investidores e as comunidades ao longo do rio, estas que historicamente preservam seu território. 

Emergência climática vs Combustíveis fósseis

Também no dia 22, na capital da Alta Áustria, Linz, um diálogo foi realizado com a iniciativa de cidadãos Pro Natur Steyrtal. O grupo de ambientalistas está em processo de resistência às iniciativas de exploração de gás natural da empresa australiana ADX em Molln. O  “Projeto de Gás Gigante Welchau”, apontou que potencialmente existem 22 a 24 bilhões de metros cúbicos de gás na cidade, o que equivale a três vezes a necessidade anual de gás na Áustria.

Quando divulgado pela empresa, em janeiro de 2023, o estudo despertou oposição não só por parte da população, que se reuniu em mais de 11 mil pessoas em manifestações públicas, mas também de organizações ambientalistas como Greenpeace, Fridays for Future, Naturschutzbund e a Umweltdachverband, que defendiam que as perfurações causariam impactos ambientais significativos, como a contaminação do solo e da água, além de prejudicar a biodiversidade local.

Ainda hoje, com o projeto em andamento, a Pro Natur Steyrtal alerta que a empresa não divulga informações suficientes, e que a implementação do projeto, apesar de ter como justificativa a independência do país no mercado global de energia, contradiz as metas do governo austríaco relativas à emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE), também gerados pela queima de combustíveis fósseis, como o gás natural, contribuindo para o aquecimento global e para o avanço das mudanças climáticas.

O contexto Brasileiro

No Brasil, a disputa por bens naturais, como água e terras, se intensifica entre comunidades tradicionais e ribeirinhas de um lado, e grandes proprietários de terras e empresas multinacionais do outro. Essa disputa, que se arrasta há décadas, se traduz em conflitos fundiários que muitas vezes se entrelaçam com disputas pela água.

Apenas no estado da Bahia, já são cerca de 2.878 aerogeradores em parques eólicos, com capacidade de 7,6 gigawatts (GW). Apesar da promessa de desenvolvimento de uma nova indústria, o avanço da transição energética no Brasil tem sido acompanhada de violações de direitos e conflitos no campo e na cidade. Da mesma forma, a queda de braço entre as medidas de descarbonização e adaptação climática adotadas pelo Brasil, contra o avanço do agronegócio, tem levado ao desmatamento em áreas de preservação ambiental e à perda de biodiversidade em biomas fundamentais para a manutenção de condições favoráveis ao clima.

Leia mais:
Fronteira de resistência – Comunidades tradicionais na preservação do Cerrado e enfrentamento ao capital

Nesse cenário, a prática internacionalista tem sido fundamental para a denúncia, muitas vezes abafada na imprensa doméstica. “Participar de um intercâmbio como esse é uma rica oportunidade de sensibilizar diversos grupos aqui da Áustria, desde escolas, universidades e outros ativistas, para conhecer melhor os problemas do Brasil, que são causados por esse modelo de desenvolvimento destruidor que tanto usurpa os bens naturais e ameaça a vida dos povos das comunidades tradicionais”, relata Aldenisse Silva, colaboradora do IRPAA.

O avanço desenfreado do agronegócio, da mineração e de projetos de infraestrutura, como barragens e parques eólicos, têm expulsado comunidades de suas terras e marginalizado-as do acesso à água. É a partir desse entendimento que acontece o intercâmbio entre Welthaus, MAB e IRPAA. As atividades se encerram na primeira semana de maio com encontros para debater a questão da água, os conflitos travados no semiárido brasileiro e as experiências de organizações populares na defesa dos direitos humanos.

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