CRÔNICA | Abril vermelho, verde e rosa

“Apressa-te a viver bem e pensa que cada dia é, por si só, uma vida”. Sêneca

Abril está se fechando. Mais um mês que passa deixando as datas comemoradas pelas institucionalidades e pela esperança popular. A começar pelo Dia da Mentira, esta celebração tão nossa, tão permissiva, tão lúdica por tornar socialmente aceita uma prática repudiada nos outros 364 dias. Esta honrosa data foi influenciada pelo distante rei francês Carlos IX que, no século 16, alterou o dia da virada do ano para 1º de janeiro. Antes, as comemorações se davam entre 25 de março e 1º de abril. Os mais revoltosos quase fizeram uma revolução e revidaram marcando festas que não existiam.

No Brasil, veja só leitor, foi em Minas Gerais, esta terra de gente tão sincera, que saiu a “primeira mentira”, justamente publicada pelo especialíssimo jornal “A mentira”, que noticiou, em 1º de abril de 1828, a falsa morte de Dom Pedro I, informação prontamente desmentida pelo veículo. Tantos anos depois, o Brasil acordaria vivendo um dia de mentiras que viraria uma verdadeira noite sombria de 21 anos. Em 1º de abril de 1964 começava o Golpe Civil-Militar que derramaria sangue, faria da violência um método de Estado e acabaria com a fervilhante geração que transformava o país.

Enterro do estudante Edson Luís no regime militar brasileiro, em 1968. Foto: Arquivo Nacional / Correio da Manhã

Na sequência das comemorações seguimos com o empolgante 13 de abril, dia do Hino Nacional Brasileiro, tocado pela primeira vez nesta data em 1831, no Teatro São Pedro de Alcantara, no Rio de Janeiro (RJ). A primeira gravação da composição se deu apenas em 1917 e, após disputas e mudanças de letras, só se tornou oficial nas comemorações da independência em 1922.

Quatro dia depois, em 17 de abril, fazemos a memória do massacre que marcou mais uma violência contra a classe trabalhadora brasileira, agora no interior da Amazônia, em 1996, quando 21 trabalhadores e trabalhadoras Sem Terra foram assassinados pela Policia Militar, em Eldorado dos Carajás, no Pará. Esta data motiva o Abril Vermelho, mês da Jornada de Lutas por Reforma Agrária Popular e Soberania Alimentar do MST. Neste ano foram 30 ações em 14 estados.

Outra data de memória e luta está logo na sequência: 19 de abril, Dia dos Povos Originários. Dia de luta, que é resultado da intervenção corajosa de indígenas no Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, realizado em abril de 1940, em Pátzcuaro, no México. No Brasil, a data foi instituída por Getúlio Vargas em 1943, como “Dia do Índio”, sendo renomeada em 8 de julho de 2022, após uma dura discussão parlamentar.

O leitor certamente aguarda o 21 de abril. Tiradentes é uma estrela neste calendário. Em Minas Gerais, o governo estadual torna Ouro Preto a capital do estado e ali concede medalhas para celebrar supostos agentes históricos relevantes. Nos últimos anos, os movimentos sociais e sindicatos têm feito a entrega da medalha da luta popular na ocasião, homenageando quem realmente faz a história acontecer.

O homem sem rosto tornado mártir como imagem do Cristo e enaltecido pelos militares passou décadas na escuridão. Tal esquecimento motivou Machado de Assis a escrever uma crônica em 25 de abril de 1865 no Diário do Rio de Janeiro: “O dia 21 de abril passa despercebido aos brasileiros. Nem uma pedra, nem um hino, recordam a lutuosa tragédia do Rocio. A última brisa que beijou os cabelos de Xavier levou consigo a lembrança de tamanha imolação…”. Machado faz um apelo ao imperador, “homem ilustrado”, para que resolvesse esta injustiça, afastando os “aduladores” que não querem esta memória.

O Bruxo do Cosme Velho morreu sem ver a homenagem consagrada. Os aduladores tomaram o poder, derrubaram a monarquia, instauraram repúblicas e ditaduras e, exatamente, 100 anos depois, em 21 de abril de 1965, tornaram a memória do militar Joaquim José da Silva Xavier o feriado nacional das viagens familiares.

A crônica não permite tomar tanto tempo do leitor. É estilo rápido, objetivo. E não será possível delongar sobre as outras dezenas de comemorações e memórias deste mês, como o Dia Mundial da Conscientização do Autismo (02), Dia do Jornalista (07), Dia Nacional do Livro Infantil (18) e segue a lista. Mas esta pequena contribuição para os poucos interessados não pode chegar ao ponto final sem uma data que deveria ser feriado nacional, talvez paralisação em todos os fusos horários da Terra.

Desfile da Mangueira no Rio de Janeiro (RJ) em 2019. Foto: Divulgação

Em algum ponto do mundo, no dia 28 de abril, os tambores tocaram, a bateria se reuniu no terreiro, a bandeira foi erguida e o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira celebrou 96 anos de história. A última semana de abril deveria ser aberta com tambores convocando jovens e crianças aos pátios escolares ao toque das composições que deixam olhos brilhando, coração batendo no ritmo da bateria: 100 anos de liberdade: realidade ou ilusão, do carnaval de 1988, ou ainda História para ninar gente grande, de 2019. Tantos outros seriam tocados nas repartições públicas, nos estádios de futebol, nos encontros de família e até nas manifestações do 1º de maio, Dia do Trabalhador e da Trabalhadora, que abre o mês que vem chegando. 

Escola de Samba é terra de memória. É canto e dança pelas vítimas da mentira, das violências imperiais, dos assassinatos de quem luta, dos que entregam medalhas para quem merece. Assim fecha o nosso mês vermelho, verde e rosa.

“Mangueira é nação, é comunidade
Minha festa, teu samba, ninguém vai calar
Sou teu filho fiel, Estação Primeira
Por tua bandeira vou sempre lutar”.             

(O filho fiel, sempre Mangueira – 2011)


* Thiago Alves é jornalista e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Minas Gerais. Atua ativamente no campo das lutas populares e, entre uma tarefa e outra, observa as pessoas e paisagens redor, buscando perceber a beleza do cotidiano, que vira prosa simples, crônicas sem pretensão.

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