CRÔNICA | O extraordinário cotidiano na candidatura coletiva: a partilha da comida, da terra e dos sonhos 

A comida envolve muitas dimensões da vida, ela é conexão com o território e com a natureza, é memória, afeto e partilha, definindo relações econômicas, sociais e políticas

Foto: Zô Guimarães

Às 5h30 aquela mistura de tapioca com ovo e algum recheio, apelidada de crepioca, já está pronta, pois ele aprendeu, desde tenra idade, que cedo se inicia o dia. Coisa herdada da mãe, de quem guarda, também, a lembrança de deliciosa comida. Enquanto toma café da manhã, reflete sobre a agenda da semana, sempre voltada à missão na base e aos afazeres mais simples, inclusive os de casa.

Viver é estar no tempo e espaço e, nesse sentido, o cuidado na cozinha, nos últimos meses, tem sido frequente. Lavar tudo e complementar a refeição com verduras e legumes da agricultura urbana passaram a fazer parte da rotina diária. Afazeres simples de uma casa e de feitura do próprio alimento, desde o plantio até o servir a mesa, vêm sendo oportunidade ímpar de rico aprendizado para quem, até então, cultivava, apenas, o hábito de coar café, cultivar plantas e algumas poucas ilusões.

Algo semelhante se diga da agricultura urbana. O olhar contaminado pelo veneno do agronegócio pensa a produção em larga escala. O cultivo de lotes em cidades do Brasil é tido por algo exótico e muito modesto, mas, justamente aí, está a grandeza. Sua capilaridade prática – expandindo-se pelos bairros e transformando espaços ociosos e sujos em quintais produtivos -, e a proximidade física entre quem produz e quem necessita do alimento fazem dela vetor interessante na construção de centros urbanos autossustentáveis do ponto de vista de alimento de qualidade por preço módico. A agricultura urbana poderá ser debatida nas campanhas eleitorais deste ano com muito proveito – em especial nas candidaturas coletivas – e transformar-se em política pública.

Não se pode medir o valor desse extraordinário cotidiano apenas pelo resultado, principalmente no caso da cozinha. Ele sente que o sabor e a variedade não chegam aos pés de especialistas na cozinha como uma Raquel, em Viçosa (MG), de uma Neuza, em Ponte Nova (MG), de Ieda, em Congonhas (MG), e de tantas mãos divinas.

Ieda cozinhava na Nossa Senhora da Conceição, mas, por sorte dele, ela continua nesse mesmo ofício em casa de colegas, do outro lado do rio, e, quando lhe bate ‘saudade’ do tempero, basta saltar o Rio Maranhão, subir o morro e chegar lá para experimentar o almoço comum com sabor de banquete. É uma experiência indescritível! Tanto ela quanto os amigos o recebem de braços abertos, o que, às vezes, o deixa até meio atrapalhado.  


Constroem-se muitos castelos em torno da missão, no seu sentido amplo, mas parece certo que, nessa escola da vida, ele vem descobrindo que o extraordinário é o cotidiano. Quanto mais leve pisar a terra para não torná-la estéril, tanto melhor. Quanto menos explorar outrem até a superação de todo servilismo, tanto melhor. Que cessem, também, as coisas eventuais – ainda que seguidas umas às outras -, pois o moinho de vento leva tudo embora. Fica o cotidiano (consciente) que beira à eternidade.


*Padre Antônio Claret, ligado à Arquidiocese de Mariana, defende, desde o início do seu sacerdócio, os direitos da parcela mais oprimida da população. É também coordenador do MAB, em Congonhas, onde atua em comunidades atingidas pelas barragens da região a partir da metodologia das comunidades eclesiais de base.

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