MAB: trinta anos de lutas — compartilhando memórias

O antropólogo e pesquisador Aurélio Vianna resgata a sua história de colaboração e ativismo no MAB (na época CRAB) através do envolvimento com os efervescentes debates ambientais no final dos anos 80

Minha rápida resposta ao honroso convite do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) ao aceitar escrever um artigo levou me a uma demorada — e ainda não finalizada — reflexão sobre mais de três décadas. Refleti sobre o quanto aprendi ao interagir com as lideranças do Movimento e com os camponeses das comunidades atingidas, fosse em minhas atividades como pesquisador, fosse como ativista. 

Foto: Matheus Alves

Minha relação com o movimento dos atingidos começou há mais de 30 anos, quando, então aluno e orientando da professora Lygia Sigaud no Programa de pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS-UFRJ), acompanhava – mas não participava como pesquisador – as discussões da equipe[1] do Projeto Efeitos Sociais da Geração de Energia Hidrelétrica. À época, eu cursava o mestrado no PPGAS, mas pesquisava ocupações de terras. Nesse mesmo período, participei de uma equipe que elaborou o Relatório de Impacto Ambiental para uma barragem que não foi construída. Com a não construção da barragem e meu envolvimento em denúncias contra o empreendimento, resolvi aprofundar meus estudos sobre a utilização da legislação ambiental (licenciamentos) como parte de estratégias de lutas contra a construção de barragens. 

Pouco tempo depois, ao concluir minha dissertação de mestrado, fui contratado pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi) para trabalhar no Programa Movimento Camponês/Igrejas (PC/I)[2]. Naquele mesmo ano o Cedi, por meio do Programa Povos Indígenas do Brasil (PIB), contribuía para a realização do 1º Encontro dos Povos Indígenas contra a construção das hidrelétricas no Rio Xingu[3]. Houve então a oportunidade de compartilhar experiências com o movimento camponês de atingidos por barragens. 

 A partir do início de 1989[4], comecei a viajar constantemente ao Rio Grande do Sul, principalmente a Erechim, onde comecei a trabalhar com a Comissão Regional de Atingidos por Barragens (CRAB), que era coordenada por Ivar Pavan, Luís Dalla Costa, Ricardo Montagner, Hélio Mecca, entre outros. Quase ao mesmo tempo, fui aceito como aluno do doutorado, também orientado pela professora Lygia, mas então fazendo parte de seu grupo de pesquisa sobre impactos sociais da construção de hidrelétricas. 

Além de aprender com o movimento, de pesquisar sobre as barragens de Machadinho e Garabi, vi que o tema que havia identificado como uma possibilidade de ação política – a utilização da legislação ambiental na luta por direitos territoriais – era também um desafio para a CRAB, que já havia atuado em parceria com a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), pioneira do ambientalismo gaúcho. Construímos, assim, uma agenda política comum entre as duas organizações. 

A CRAB, que se pensava como um movimento camponês, apreendera a mensagem de Chico Mendes e buscava ampliar suas ações. Como parte da aliança entre o Cedi e a CRAB, publiquei, em 1989, o livreto “Hidrelétricas e Meio Ambiente: informações básicas sobre o ambientalismo oficial e o setor elétrico no Brasil”[5], que passou a ser utilizado em cursos de formação de lideranças. 

Umas das frentes do CRAB nessa época era a organização de cursos de formação e seminários de discussão tratando da Constituição de 1988, das possibilidades da utilização da legislação ambiental em defesa dos atingidos e, principalmente, da relação com o movimento ecológico (era assim designado o movimento ambientalista no final da década de 1980). Nesse período, o movimento se identificava como um “grande movimento ecológico em defesa dos ecossistemas dos rios”. Ainda naquele ano e no contexto da participação popular na elaboração das leis orgânicas municipais, buscou-se discutir como aprovar normativas municipais[6] de licenciamento de hidrelétricas.

Ao mesmo tempo, a CRAB unia-se à Central Única dos Trabalhadores (CUT) para construir uma articulação nacional de atingidos, para a qual também fui convidado, como representante do Cedi. Nesse contexto, aproximei-me dos professores Carlos Vainer e Frederico Araújo, que também prestavam assessoria à CRAB em temas relacionados ao planejamento energético e ao desenvolvimento regional. Tornamo-nos amigos e companheiros de jornada junto aos atingidos por barragens, particularmente na assessoria à constituição e ao funcionamento da Comissão Nacional Provisória dos Trabalhadores Atingidos por Barragens[7]. A comissão era composta por Avelino Ganzer[8], coordenador do Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais (DNTR)[9] da CUT; Luís Dalla Costa, da CRAB, representando a região Sul; Benedito do Prado[10], do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Altamira (PA), representando a região Norte, e Januário Moreira da Silva Neto, do Polo Sindical do Submédio São Francisco (PE/BA), representando as regiões Nordeste e Sudeste. Frederico e eu redigimos o relatório “Terra Sim, Barragens Não”, do I Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens, publicado pela CUT e pela CRAB ainda em 1989[11].

Depois da constituição da Comissão Nacional Provisória, o trabalho foi direcionado à realização do I Congresso dos Atingidos e, para o Cedi e para mim, foi o momento de aprofundar a relação com o movimento, de possibilitar a realização e a publicação de estudos e pesquisas e de abrir um diálogo mais profícuo, dando início ao trabalho com o Polo Sindical do Submédio São Francisco. 

Em 1990, o Cedi publicou um inovador estudo de Carlos Vainer e de Frederico Araújo sobre barragens e desenvolvimento regional[12], assim como uma coletânea de artigos sobre barragens, ecologia e desenvolvimento, em que apresentava, dentre outros temas, uma discussão sobre as diversas correntes do movimento ecológico[13]. No mesmo ano, convidado pela Fase, coeditei, com Jean Pierre Le Roy e Ricardo Tavares, um número da Revista Proposta sobre os movimentos de atingidos por barragens, incluindo a discussão sobre meio ambiente e desenvolvimento, assim como sobre os pressupostos e as estratégias do novo movimento social[14].

Em 1991, a Comissão Provisória cumpre seu mandato com a realização do I Congresso dos Atingidos por Barragens, oficialmente fundando o MAB. A preparação e a realização do evento alegrava a todos que estiveram colaborando em sua organização, mas, além disso, para mim tratava-se também de um desafio pessoal[15], pois havia conseguido junto ao Cedi uma equipe para filmar todo o evento. Em 1991, filmar um evento era algo complexo, que demandava equipamentos e meios. O resultado foi a realização do documentário “Terra Sim, Barragens Não”, com depoimentos e imagens do Congresso. O documentário foi um trabalho coletivo, que contou com a participação de Eleni Stempkoski e Alvenir Almeida, ambos assessores da CRAB. 

Ao mesmo tempo que o MAB era fundado, o Brasil preparava-se para a realização da Conferência Mundial da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que ficou conhecida como Rio-92, e da Conferência da Sociedade Civil, organizada com a colaboração do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento – FBOMS. O Cedi participou diretamente da organização do Fórum Global e internamente criou um Programa Especial de Meio Ambiente, do qual também fiz parte, junto com Laís Menezes e Tony Gross, todos baseados no Rio de Janeiro. 

O MAB, por meio de Alvenir Almeida, da CRAB, participou da coordenação do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento – FBOMS. A Rio-92 apresentou, de certo modo, a luta dos atingidos de todo o Brasil para o mundo, colocando o MAB como um movimento de relevância global para as discussões sobre meio ambiente e desenvolvimento. Ainda nesse contexto, e como resultado da aliança com a CRAB, o Cedi publicou o primeiro livro sobre Educação Ambiental sob o ponto de vista de um movimento social (a CRAB), que posteriormente foi adotado como livro didático pelo Ministério da Educação (MEC)[16]. Também foi lançado um livreto sobre as lutas dos atingidos de Carlos Gomes e Lajeado Pepino[17] — naquele momento, ainda um resultado preliminar do que posteriormente se transformaria em minha tese de doutoramento.

Sobre esse tema, como não me lembrar da enorme generosidade de toda a família de Carlos Cervinski, de Henrique Stempkoski, de Isidoro Hoinosky, que me receberam por tanto tempo e com tanta paciência em suas casas, compartilhando comigo não somente suas experiências como ensinando-me, pacientemente, a cultura tradicional dos colonos poloneses. Como esquecer do café da manhã preparado por Dona Elisabetha, que também contribuía com ensinamentos sobre o papel das mulheres nas ações mais ousadas do movimento?

Ao tempo que o MAB se fortalecia, o trabalho do Cedi junto ao Polo Sindical do Submédio São Francisco era desenvolvido. Por alguns anos, prestei assessoria direta ao Polo, particularmente em todo o processo que levou à apresentação de um requerimento ao Painel de Inspeção do Banco Mundial com vistas a realizar uma investigação do Projeto de Reassentamento de Itaparica, financiado pelo Banco. Comecei esse trabalho ainda no Cedi[18], mas segui quando assumi a função de primeiro Secretário Executivo da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais. 

Ainda no meu trabalho no Cedi, publiquei um livro, escrito em parceria com Laís Menezes, sobre o Polo Sindical e sua luta no Vale do Rio São Francisco[19]. Já na Rede Brasil, publiquei outro, que trata da experiência de atuação multiescalar do Polo, ao acionar um instrumento do Banco Mundial com vistas a garantir os direitos dos atingidos pela barragem de Itaparica[20]. Agradeço o que aprendi com Eraldo José de Souza, Januário Moreira da Silva Neto e tantas outras lideranças, que ousaram acionar o Banco Mundial utilizando-se de suas próprias normas operacionais e políticas de salvaguarda, combinando uma luta local com a global[21], assim como agradeço pelos ensinamentos de Fulgêncio Manoel da Silva, militante e poeta, membro da primeira coordenação do MAB, assassinado depois dessa ação internacional que também contou com sua decisiva contribuição. Seu Fulgêncio ensinou-me, com conhecimento e arte, como os camponeses do São Francisco “produziam” a terra que plantavam na beira do rio.

Iniciei este pequeno texto afirmando que concordei muito rapidamente em escrever algo para celebrar os 30 anos de lutas do MAB, mas não sabia que essa tarefa levaria ao prazeroso exercício de rememorar momentos e pessoas que fazem parte dessa história. Encerro este artigo ainda nos primeiros anos do MAB, mas adianto: minha relação com o movimento continuou no século XXI, ainda que exercendo outras funções em outras instituições – mas isso seria tema para outro artigo! 

Longa vida ao MAB, mais necessário que nunca na defesa dos direitos dos atingidos por barragens!

[1] A equipe era composta por Ana Luiza Borralho Martins Costa, Ana Daou, Sônia Magalhães, Sandra Failacce e Mirian Nutti.
[2] O Programa era coordenado por Neide Esterci e tive como colegas Cecília Iorio, Luciano Padrão e Mariana Pantoja. O PC/I também contava com a colaboração de Regina Novaes, Beto Novaes e Leonilde Sérvolo de Medeiros.
[3] “Realizado o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em fevereiro [de 1989], em Altamira (PA). Patrocinado pelos Kaiapó, conta com a participação da equipe do Cedi desde o início dos preparativos até a implantação, realização e avaliação do encontro. Seu objetivo é protestar contra as decisões tomadas na Amazônia sem a participação dos índios e contra a construção do Complexo Hidrelétrico do Xingu.” https://xinguvivo.org.br/2010/10/14/historico/
[4] Devemos lembrar do final da década de 1980 como o período da redemocratização, da afirmação dos novos movimentos sociais, da formulação de instrumentos da política ambiental, assim como da promulgação da Constituição, mas também do assassinato de Chico Mendes no final de 1988. Ele, a liderança que havia feito a mais bem acabada ponte entre as agendas de defesa de direitos à terra e a ambiental. Foi responsável por formular tanto o conceito do que seria uma reforma agrária não redistributiva, por meio da criação de Projetos de Assentamento Extrativista, quanto do que seria uma conservação “com gente”, com Reservas Extrativistas.
[5]Rio de Janeiro: Cedi, 1989. v. 1. 18p. Beto Ricardo, então coordenador do PIB/CEDI, muito incentivou a publicação do livreto.
[6] Vianna, Aurélio. O movimento dos atingidos e a questão ambiental. Revista Proposta, Rio de Janeiro, RJ, 02 mar. 1990. “A partir de 1989, em várias regiões do país, mais particularmente na área de atuação da Comissão Regional de Atingidos por Barragens (Crab), entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, os atingidos começaram a discutir em seminários a questão ambiental e a utilização da legislação ambiental pelo movimento de atingidos”.
[7] As antropólogas Lúcia Andrade e Leinad dos Santos, da Comissão Pró-Índio de São Paulo, também assessoravam a articulação nacional e haviam publicado em 1988 “As Hidreléticas do Xingu e os Povos Indígenas”, coletânea que se tornou referência no tema. https://cpisp.org.br/wp-content/uploads/2019/02/As_Hidreletricas_do_xingu.pdf
[8] Em virtude do trabalho do Cedi com o DNTR-CUT, Regina Novaes apresentou-me a Avelino Ganzer, então vice-presidente da CUT Nacional e liderança camponesa do Estado do Pará.
[9] Pouco tempo depois, também como parte de meu trabalho no Cedi, prestei assessoria à então recém-criada Secretaria da Agricultura Familiar do DNTR. 
[10] Benedito foi um dos fundadores da Fundação Viver, Preservar e Produzir (FVPP), da qual aproximei-me na primeira década do século XXI.
[11]Vianna, Aurélio; Araújo, Frederico. “Terra Sim, Barragens Não: I Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens”. Rio de Janeiro, RJ: Estúdio de Arte e Vídeo, 1989. v. 1. 40p. 
[12] Vainer, C. B., & Araújo, F. G. B. (1992). Grandes projetos hidrelétricos e desenvolvimento regional. Rio de Janeiro: Centro Ecumênico de Documentação e Informação.
[13] Vianna, Aurélio. Hidrelétricas, ecologia e progresso: contribuições para um debate. Rio de Janeiro, RJ: Cedi, 1990. v. 1. 64p. 
[14] Vianna, Aurélio; Jean Pierre Le Roy. Lutas de resistência ou lutas por um novo modelo de sociedade? Revista Proposta, Rio de Janeiro, RJ, 02 mar. 1990. 
[15] Com o incentivo de Betse de Paula e Beto Novaes.
[16] Vianna, Aurélio; Vera Mazagão; Laís Menezes; Maria Cecília Iorio. Educação ambiental: uma abordagem pedagógica dos temas da atualidade. Rio de Janeiro, RJ: CEDI, 1992. v. 1. 88p. 
[17] Vianna, Aurélio. Etnia e Território: os poloneses de Carlos Gomes e a luta contra as barragens. Rio de Janeiro: Cedi, 1992. v. 1. 42p.
[18] O amigo Atílio Iulianelli deu continuidade, renovou e ampliou o trabalho iniciado no Cedi, já em Koinonia, até sua prematura morte em 2017. 
[19]Vianna, Aurélio; Laís Menezes. O Polo Sindical e a luta dos atingidos pela barragem de Itaparica. Rio de Janeiro, RJ: CEDI/Koinonia, 1994. v. 1. 48p. 
[20] Vianna, Aurélio. O processo de solicitação de Painel de Inspeção do Banco Mundial para o Projeto de Itaparica. Subsídio INESC, Brasília, DF, 02 nov. 1997. 
[21] https://www.inspectionpanel.org/sites/www.inspectionpanel.org/files/ip/PanelCases/9-Solicita%C3%A7%C3%A3o%20de%20Inspe%C3%A7%C3%A3o%20%28Portugu%C3%AAs%29.pdf
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