Josivaldo Alves e o povoado inundado pelo rio mais seco do mundo

Quando viu seu sertão “virar mar” no Vale do Jaguaribe, Josivaldo entendeu que seria preciso muita luta para construir um futuro mais digno para as famílias que viviam à margem do rio e do projeto de desenvolvimento do governo federal para o semiárido cearense. Nasceu dessa luta um dos grandes militantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)

Encontro do Movimento Rios Vivos na Colômbia. Foto: Marcelo Agilar / MAB


“O meu horizonte, assim esses princípios me guiam na prática política cotidianamente, né, você quer saber? Eu diria que não há possibilidade de mudar a realidade sem luta, né? Mas a luta de forma organizada, intencional, com plano, com meta, com responsáveis, com tudo isso e coletivamente!”

Josivaldo Alves, 53 anos, coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), aprendeu o conceito de organização popular na prática quando viu a velha Jaguaribara, sua terra natal, desaparecer debaixo d’água em pleno semiárido cearense, com a construção da Represa do Castanhão, em 1995.

“Veja só que é uma contradição, né? A gente vivia ali em meio a longas secas, buscando água na cabeça ou no lombo do jegue, mas, de repente, vimos aquilo tudo inundado. E perdemos a terra onde a gente plantava ali um feijão, um milho, um gergelim para sobreviver”, conta o militante. Quando viu o governo tirando gente, pondo represa e dizendo que tudo ia mudar – como na música de Sá e Guarabyra – Josivaldo percebeu que pra mudar, de verdade para os mais pobres precisaria de luta.

O açude do Castanhão e o modelo de “desenvolvimento” do Vale do Jaguaribe

“Eles construíram a barragem no município de Alto Santo, mas que banhava e cobria e atingia vários municípios, inclusive o de Jaguaribara, no qual a gente morava, na zona rural, na margem esquerda do rio, o maior rico seco do mundo”, relata. O Jaguaribe recebeu esse curioso título porque, apesar da sua enorme extensão (75 669 km²), parte dele simplesmente desaparece durante as secas cíclicas do semiárido – o que faz dele um rio intermitente, tecnicamente falando. Em alguns anos, porém, ele volta a encher, na estação chuvosa, crescendo muito rápido em volume e extensão.

Por isso, o governo federal resolveu construir uma barragem em seu leito para fins de irrigação. O propósito anunciado do Açude do Castanhão – como foi batizado – era desenvolver economicamente a região, atendendo os anseios de grandes proprietários de terra que atuavam com pecuária leiteira no Médio Jaguaribe e na região metropolitana de Fortaleza.

Josivaldo se deu conta, porém, que a comunidade onde ele vivia em uma pequena posse, com outros moradores de origem camponesa, ficaria, literalmente, à margem desse processo de desenvolvimento que o governo propagava.

“Foi ali que entrei na luta pra, coletivamente, junto com vários outros, discutir com o governo qual era o futuro daquelas famílias, cerca de 110 famílias que viviam ali, em suas moradias humildes e simples na beira do rio.  A gente queria discutir o reassentamento, mas nem sabia ainda o que era um reassentamento dos atingidos por barragem nessa época”, lembra.  

Eles queriam nos matar

Josivaldo explica que esse pedaço de sertão não tinha organização popular na época e nem movimentos camponeses como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ou partidos de esquerda. Por isso, a luta dos atingidos pela obra do Castanhão começou espontaneamente. “Muitos que hoje são militantes vão para a academia e, através do conhecimento, adquirem uma postura crítica sobre a realidade e começam a fazer uma militância até junto aos movimentos populares como o MST ou o MAB, por causa desse conhecimento teórico, dessas relações na universidade. No meu caso, eu entrei na militância por causa de uma necessidade, de um confronto local”, relata.

“A gente ainda não tinha consciência de luta, mas tivemos que entender ali quem era a favor de defender a justiça social, quem queria diminuir as desigualdades ali e tivemos que nos juntar, porque queriam nos matar e não nos mataram por muito pouco”.


O atual coordenador do MAB explica que, nessa época, os moradores dessa localidade chamada Alagamar reivindicavam um reassentamento acima da área de inundação da barragem em uma área com solo agricultável e produtivo de posses particulares – o que era uma pauta muito ousada pra época. “Como era no semiárido, a gente defendia que tivesse irrigação coletiva para beneficiar todas as famílias. E se a obra era pra desenvolver a região, a gente também queria ter moradia decente, luz elétrica e água encanada, tudo que a gente não tinha lá embaixo”, explica Josivaldo. “Mas os proprietários da região queriam tudo, menos que o governo adquirisse aquelas terras pra distribuir pros mais pobres. Os donos das grandes propriedades, os prefeitos, os políticos locais – todos estavam contra a gente e, nessa época, a pistolagem e a violência eram muito comum ali”.

O encontro com o MAB e a luta coletiva

Josivaldo no Congresso da Central Única dos Trabalhadores (CUT) no Ceará em 2019. Foto: arquivo MAB

Foi só depois de começar a luta na prática que Josivaldo diz ter adquirido consciência política sobre o que aquele confronto significava. Em 98, ele foi convidado pela igreja local para participar de uma reunião da coordenação do MAB nacional em São Paulo. “Quando cheguei lá e conheci a companheirada do MAB, de Itaparica, do Polo sindical, tinha gente de Irapé, de Minas Gerais, tinha gente do Rio Grande do Sul, tinha gente de vários estados do Brasil, a gente se identificou. E aí a gente percebeu que aquela nossa luta que era pequenininha, ela era correta e justa. E deveria ser uma luta a ser ampliada no Ceará, especialmente naquela barragem (que atingiu mais de 20 mil pessoas diretamente). Aí a gente começou de fato fazer um processo de organização e formação política a nível local que expandiu, porque a área atingida pela barragem do Castanhão era muito grande”.

Sem recursos para organizar a articulação local, Josivaldo pegava uma bicicleta e cortava grandes extensões de terra, areia e lama para mobilizar moradores de outros povoados. “Quando você tem uma experiência de  militante, você só tem certeza de uma coisa, que você está tentando encontrar os injustiçados e conscientizá-los pra que eles assumam, pela sua vontade, a luta para enfrentar o seu opositor e conquistar seus direitos”, afirma Josivaldo.

A luta no Vale do Jaguaribe foi um marco no Ceará e no Nordeste e culminou na criação do Reassentamento Alagamar com lotes individuais de 3 hectares, sistema de irrigação com bombeamento na área produtiva e luz elétrica. Depois dessa conquista, porém, o sertão do Ceará ficou pequeno para a luta de Josivaldo.

Quando entrou pra militância do MAB, ele passou apoiar a organização do movimento em diferentes partes do Brasil, da Amazônia ao sul do país. Uma das experiências mais marcantes, segundo ele, foi em Rondônia, onde houve muitas injustiças no processo de construção da hidrelétrica de Samuel nos anos 80 e muitos atingidos seguiam sem reparação. “Em 2004, a gente fez uma ocupação com 800 pessoas durante semanas e nós, praticamente, paramos a geração. Chegavam centenas de pessoas que fazia cinco anos, dez anos  que não se viam, porque a água espatifou a população. E ali elas se reencontraram. E nós avançamos em muitas conquistas”, lembra.

Para Josivaldo cada, luta é única e cada mobilização tem uma história importante porque envolve os direitos e o futuro de pessoas com histórias únicas, mas o confronto é sempre mesmo. “Porque, veja, é sempre a luta contra uma lógica capitalista e ela é sempre muito dura em qualquer lugar do mundo, né?”, avalia.  Por isso, Josivaldo acredita que além das lutas locais, a grande importância do Movimento dos Atingidos por Barragens é criar uma coesão política nacional e até internacional contra essa lógica. “Precisa trabalhar sempre pensando numa ‘justeza’ imediata, mas principalmente num projeto de transformação, pensar  na sociedade que a classe trabalhadora merece, na igualdade social. E que não pode abrir mão da luta imediata, né?,  Mas imaginando sempre a luta de grau superior. Acho que é isso, fico feliz de fazer parte dessa história de 30 anos do MAB”.

* Esse artigo faz parte de uma série de perfis de coordenadores do MAB produzidos em celebração aos 30 anos do Movimento.

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