Organizações lançam Observatório e cobram CNJ e STF direito à participação nos acordos sobre o crime da Bacia do Rio Doce

Passados quase 6 anos desde o rompimento da Barragem do Fundão em Mariana (MG), movimentos sociais, iniciativas acadêmicas e associações de juristas fazem pressão para que a Vale cumpra acordos para reparação integral dos danos causados em um dos maiores crimes socioambientais do país.

Após quase 6 anos do crime de Mariana, Vale tenta fazer acordo de repactuação
Escombros em Mariana após rompimento da barragem de mineração da Vale, Foto: Isis Medeiros

“Eu quero saber se o Ministro Fux recebeu as pessoas atingidas, porque eu sei que ele recebeu os advogados da Vale. Eu quero saber se a mais alta direção do Conselho Nacional de Justiça recebeu os dados das nossas pesquisas que são negadas e se recebem as pessoas atingidas e os coletivos que organizam as pessoas atingidas”, afirmou Dulce Maria Pereira, da UFOP. 

Com o objetivo de consolidar um campo de luta na sociedade civil para pressionar empresas de mineração responsáveis por crimes socioambientais, foi lançado, na última quinta-feira (10), o Observatório Rio Doce. Passados quase 6 anos desde o rompimento da Barragem do Fundão em Mariana, grupos acadêmicos e movimentos sociais continuam lutando em busca da devida reparação dos danos em um dos maiores crimes socioambientais do país. 

A live de lançamento foi realizada a partir das redes sociais do Homa – Centro de Direitos Humanos e Empresas, tendo sido mediada por João Paulo, atingido no Espírito Santo e Joceli Andriolli, integrante da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Na ocasião, eles apresentaram informações e denúncias de como o processo judicial relacionado ao crime está evoluindo. “Nós estamos muito preocupados, porque vimos o exemplo da história desses 5 anos e 7 meses que nos mostra que vários acordos feitos não foram cumpridos. Grande parte desses acordos foram feitos em gabinetes. Inclusive, há acordos que a própria Vale editou, como o primeiro Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) feito com os governos e todas as instituições, menos o Ministério Público Federal, que não aceitou o acordo e recorreu com uma nova ação”, afirmou Joceli.

A nova ação do MPF ao não aceitar um acordo gerou um Termo de Ajuste Preliminar (TAP) também discutido sem a participação da sociedade civil. O documento tratava-se de um pedido de assessoria técnica indicado pela própria Vale. O MAB e outras organizações sociais conseguiram intervir e conquistaram um aditivo ao TAP para incluir a participação dos atingidos em um processo qualificado. O pedido foi engavetado e o juiz do caso não pediu para que a Vale cumprisse o aditivo. Além disso, o juiz responsável pelo processo, Drº Mário de Paula de Franco Junior, atualmente está com um pedido de suspeição por interferir de maneira parcial no caso.

No geral, o que se tem percebido é a falta de comprometimento da Justiça Federal em pressionar a Vale a cumprir os acordos firmados. Atualmente, há um movimento de “repactuação” para se negociar um novo acordo intermediado pelo Observatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no qual o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, se comprometeu a dar uma solução definitiva ao caso.

Comparando a situação dos crimes em Mariana e Brumadinho, Joceli reafirma a preocupação do MAB. “O acordo em Brumadinho foi feito sem a participação efetiva das populações atingidas. Um acordo que interessa muito mais à lógica do interesse eleitoral do Governo de Minas Gerais, e, por isso, a gente vê os governos muito afoitos para fazer uma repactuação na Bacia do Rio Doce. (…) O que está em jogo, na nossa avaliação, é um crime que vai ficar impune. O que está em jogo é um crime e várias empresas associadas, a Vale, a BHP e a Samarco tentando se safar desse crime. A Vale claramente com uma postura de construir a partir desse caso um marco internacional de como tratar os crimes da mineração. E isso é preocupante e interessa a toda sociedade a nível internacional. O que está em jogo é a empresa não resolver os problemas da reparação integral dos atingidos e também da questão ambiental, [..] muito mais ampla e profunda do que a própria contaminação na bacia do rio Paraopeba,” completou.

Ao mesmo lado na trincheira

A Professora Tatiana Ribeiro de Souza, da Rede de Pesquisa do Rio Doce, destacou o trabalho de grupos acadêmicos no auxílio dos atingidos. Segundo ela, “a academia sempre é engajada. Não existe academia neutra, não existe ciência neutra. A ciência neutra faz parte de um discurso que é engajado, o discurso hegemônico. Então, toda ciência que se diz neutra está a serviço de um determinado modelo de sociedade, de um modelo de economia e de um modelo de justiça, que é o hegemônico. Entendendo que a ciência está sempre a serviço de algum valor, algum princípio, algum lado da trincheira, nós temos muito claro que a Rede de Pesquisa Rio Doce está do lado da trincheira da defesa das pessoas atingidas, dos seus direitos, da justiça.”

Em sua fala, ela defendeu o papel da academia em defesa das populações atingidas, sempre em conjunto com outros tipos de organizações sociais: “As entidades de defesa de Direitos Humanos são também importantíssimas. Nós temos uma diversidade muito grande de atores que trabalham na defesa do poder popular, da reparação integral e esse Observatório está sendo criado exatamente para poder consolidar esse lado da trincheira. Porque a todo momento nós estamos sendo alertados que estamos em guerra. A todo momento nós recebemos os sinais de que estamos em guerra, uma guerra de narrativas, uma guerra pela verdade, uma guerra contra os saberes. Se nós estamos em guerra, esse lado da trincheira está aqui pra dar um recado de que não haverá trégua. Seguiremos lutando pelo poder popular, pelos valores democráticos, pelo pluralismo e, sobretudo, pela justiça na Bacia do Rio Doce.”

“O Rio é doce, a Vale, amarga”

Córrego do Feijão em Mariana (MG) destruído pela lama da Vale. Foto: Bruno Ferrari

“Para gente só faz sentido seguir em luta, porque existem movimentos sociais, porque tem povo se organizando, porque tem povo resistindo”, diz Fernanda Lage, da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), em seu pronunciamento.

Em sua fala, Fernanda chamou a atenção para a falta de isonomia entre empresas e atingidos dentro do sistema judiciário e a importância da implementação de assessorias técnicas: “Existe uma gigantesca e evidente desigualdade entre as empresas e as vítimas, sob o ponto de vista técnico, político e econômico. A capacidade processual das vítimas fica seriamente fragilizada. O que minimizaria essa contradição seria a implementação das assessorias técnicas”. Assim como Joceli, Fernanda também abordou o caso do juiz Drº Mário de Paula, que possui um pedido de suspeição: “foi apresentado um pedido de suspeição e substituição do juiz pelo MPF e o MAB, em parceria com a ABJD, mobilizou uma série de juristas de renome que manifestam total repúdio a esse tipo de atitude que não podemos, de forma alguma, naturalizar e permitir que se siga assim, embora sejam reiteradas. […] Todos nós queríamos a resolução desse conflito, mas que se dê de forma justa.” Por fim, ela ressaltou que os atingidos e atingidas devem ser ouvidos e respeitados durante todo o processo, para que ocorra a devida reparação.

Pelo direito às assessorias técnicas independentes

Lethicia Reis, da Rede Nacional de Advogados Populares (RENAP) reafirma no debate a importância das assessorias técnicas independentes, ou seja, assessorias que atuam fora do campo empresarial, tentando equilibrar o sistema jurídico. “Infelizmente, vivemos em um estado mineiro dependente, a ponto disso [situação do Rio Doce] ser mantido, da gente ter um judiciário conivente com isso. Eu estou aqui pela RENAP, e entendemos que na assessoria jurídica popular existem duas formas de nós, operadores do direito, tratarmos desses conflitos: existe a forma nas frentes das massas e existe a forma atrás das massas […] Neste caso, temos visto […] a atuação de advogados que, à frente dos interesses dos povos atingidos, das comunidades atingidas, dos movimentos sociais, e de toda essa rede que tem se articulado em torno do desastre do rio Doce, colocam os seus interesses [particulares].”

A gravidade da falta de devida reparação para grupos mais vulneráveis também foi comentada por Lethicia: “As mulheres, quando perdem o acesso à água, quando perdem as suas terras e perdem as suas casas, mulheres que têm as suas atividades ligadas ao trabalho doméstico, elas têm a sua independência econômica, a sua soberania alimentar e uma série de outros direitos violados. Se não existe uma organização junto aos atingidos, o MAB faz esse papel brilhantemente, uma assessoria técnica constituída, alguém que está acompanhando de perto, essas violações passam despercebidas. O trabalho doméstico, como se sabe, não é remunerado na maior parte das vezes, então não existe uma perda econômica reconhecida para essas mulheres. Outros casos também são os de comunidades tradicionais, comunidades quilombolas, povos indígenas, que têm essa relação tradicional com a terra onde estão, tem a ligação com o território como uma ligação de vida, e tem perdido o território,” afirmou.

Convocação para o engajamento

A professora Dulce Maria Pereira apresentou relatos sobre sua pesquisa feita através de análise de sedimentos coletados ao longo da Bacia do Rio Doce. “Nós entendemos que esse processo não estava acontecendo somente naquele lugar porque, afinal de contas, 55 milhões de metros cúbicos de lama tinham sido lançados na bacia do Rio Doce, mas que isso chegaria até o Espírito Santo.” Suas análises revelaram alto grau de contaminação do solo e da água, o que levaria ao adoecimento da população que entrasse em contato com esses sedimentos.

Ela critica a atuação do juiz Drº Mário de Paula: “O juiz […] cria mecanismos para que a população faça reuniões durante a pandemia, tempo de isolamento social. […] Então a saúde física está em risco e a saúde emocional das pessoas, basta contarmos o número extraordinário de mortes por tristeza e depressão.”, diz Dulce, “Por isso é que as pessoas que têm compromisso ético, que tem compromisso com algo que é fundamental: respeitar o princípio da precaução, prevenir o risco, e da prevenção, evitar que o risco aconteça, essa é a obrigação de quem trabalha com a vida humana.” 

Dulce também critica o Ministro da Justiça Luiz Fux: “Eu quero saber se o Ministro Fux recebeu as pessoas atingidas, porque eu sei que ele recebeu os advogados da Vale. Eu quero saber se a mais alta direção do Conselho Nacional de Justiça recebeu os dados das nossas pesquisas que são negadas e se recebem as pessoas atingidas e os coletivos que organizam as pessoas atingidas, […] ou se, pelo menos, os relatórios do Ministério Público Federal foram lidos. Porque, se foram, eles jamais terão coragem de negar os direitos aos atingidos.”

Encerrando sua fala, Dulce faz um apelo: “Eu gostaria de chamar o maior número de pesquisadoras e pesquisadores, o maior número de instituições, o maior número de pessoas que entendam que essa subordinação imposta por corporações é uma subordinação imposta à todas e todos nós.  [Pessoas] que entendam que é preciso mobilizar não só os setores acadêmicos como o conjunto social. […] É preciso pôr a mão na massa e se engajar na construção da justiça do ponto de vista essencial do que é a justiça.”

Joceli Andrioli também reforçou a pedido de engajamento das organizações: “contamos com muitas organizações nesse Observatório, vai ser uma ferramenta fundamental para empoderar a luta dos atingidos e para garantir a busca pela justiça nesse crime monstruoso que a Vale, a BHP e a Samarco cometeram e que continua impune na Bacia do Rio Doce e no Litoral Capixaba”, afirmou.

E para Tatiana Ribeiro “o que a gente está fazendo neste Observatório é defender esses princípios fundamentais [da Constituição Brasileira], que são princípios do pluralismo, do bem-viver, dos Direitos Humanos e, sobretudo, do poder popular. Quando falamos sobre esse poder popular, estamos em defesa do próprio Estado de Direito. […] Se estamos aqui, é porque as coisas não estão funcionando. Nós tivemos que nos reunir neste Observatório porque nós nos encontramos em torno desses mesmos princípios, em torno desses valores éticos, e sabemos que cada grupo que está aqui representado desempenha um papel específico e diferente nessa luta por esses valores e por esses princípios.”

O Observatório Rio Doce é uma iniciativa do Rede de Pesquisa Rio Doce, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Amigos da Terra, Justiça Global, Terra de Direitos, Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), Rede de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), FIAN BRASIL – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas e o Laboratório de Educação Ambiental e PesquisaAUEPAS\Universidade Federal de Ouro preto (UFOP). 

Leia nosso manifesto de fundação e faça sua adesão pelo contato observatrio-rio-doce@googlegroups.com

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