Nota do MAB sobre proposta de acordo entre Vale S.A, governo do MG e instituições de Justiça
As propostas até agora conhecidas de reparação que foram propostas pouco apresentam relação com as reais necessidades dos atingidos e atingidas da bacia do Paraopeba, e parecem interessar mais ao governo”, afirma a nota
Publicado 01/12/2020
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), por meio desta nota, reafirma preocupação sobre o acordo que vem sendo construído pela empresa Vale S.A., pelo Governo do Estado de Minas Gerais e pelas Instituições de Justiça sobre o processo de reparação integral decorrente do rompimento da barragem do Córrego do Feijão em Brumadinho.
Assim como os atingidos e atingidas da Bacia do Rio Paraopeba e a sociedade mineira, tivemos conhecimento por meio da mídia de que a audiência de conciliação, que ocorreu no dia 21 de outubro, a princípio agendada para tratar dos pedidos de julgamento antecipado parcial realizado pelos autores no âmbito dos processos judiciais em andamento na 2ª Vara da Fazenda Pública de Belo Horizonte, na verdade tratou de um acordo muito mais amplo do que aquele que estava sendo divulgado aos atingidos e à sociedade civil. O MAB externou suas preocupações sobre a realização de uma tratativa, a par do que aconteceu na Bacia do Rio Doce, sem a participação dos atingidos e sem o mínimo acesso à informação.
É de conhecimento do Movimento e dos atingidos que desde o rompimento o Governo de Minas Gerais estabeleceu o Comitê Gestor Pró-Brumadinho, a fim de coordenar as ações do Estado para a reparação integral. Desde o início, viemos cobrando a participação dos atingidos na elaboração dos termos de quaisquer medidas a serem elaboradas ou requeridas pelo Estado de Minas Gerais. Porém, surpreendemente, a despeito de já se encontrarem implantadas as Assessorias Técnicas Independentes, legalmente constituídas no processo judicial estabelecido na 2ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Belo Horizonte, conduzidas pelo Ilmo. Juiz Elton Pupo Nogueira, não houve nenhuma iniciativa das partes para que os atingidos fossem consultados sobre os termos da proposta extrajudicial de reparação. Ainda, conclui-se que, contrariamente, por uma aceleração das negociações a portas fechadas durante a pandemia, momento em que a participação dos atingidos estava ainda mais limitada, sendo que neste período as ATIs e atingidos estavam orientados e dedicados a elaboração dos critérios para o auxílio emergencial, desconhecendo, pois, qualquer processo de discussão de um possível acordo.
Dos documentos que foram divulgados pela mídia, há indicações que em 19 de março de 2020 foi enviada uma carta pela empresa Vale com as premissas fundamentais para a realização de um acordo. Seguiram-se as negociações com uma proposta de minuta encaminhada pelo Estado de Minas Gerais em 20 de agosto, e uma nova resposta da Vale em 16 de setembro, culminando com as audiências sucessivas de conciliação realizadas no dia 22 de outubro e no dia 17 de novembro.
Após a realização da audiência de 22/10/20, a Vale enviou nova proposta de minuta, adequada aos pontos discutidos durante a audiência e às premissas já suscitadas anteriormente pela empresa. Não obstante a já limitada falta de participação e transparência do processo, o referido procedimento que tramita no Centro Judiciário de Conciliação de 2° grau (CEJUSC 2° Grau) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, passou a tramitar em sigilo. A utilização dos sigilos sob a premissa de interesse público é uma interpretação que não condiz com a necessária proteção e tutela dos direitos humanos e condução do processo judicial sob marcos constitucionais. Causa ainda maior preocupação a mobilização da estrutura do judiciário mineiro, especificamente do CEJUSC 2° Grau e da interveniência do Ilmo. Presidente do Tribunal de Minas Gerais na mediação de um processo que ainda se encontra em primeira instância.
Ademais, as propostas até agora conhecidas de reparação que foram propostas pouco apresentam relação com as reais necessidades dos atingidos e atingidas da bacia do Paraopeba, e parecem interessar mais ao governo, cujo déficit orçamentário pode chegar a 20 bilhões após a crise do coronavírus – incluindo a construção do Rodoanel e melhoria e aumento do metrô em Belo Horizonte. As estruturas de governança contidas nas propostas de acordo em debate também pouco ofertam aos atingidos possibilidades de participação efetivas na especificação das ações, projetos e programas a serem desenvolvidos.
Na sentença saneadora exarada no dia 09 de julho de 2019, o Ilmo. Juiz Elton Pupo Nogueira acolheu todos os pedidos realizados pelas partes autoras e reconheceu a necessidade da adoção dos princípios da centralidade do sofrimento da vítima e o reconhecimento do dano ao projeto de vida como dano autônomo aos demais danos já adotas pela normativa nacional. O processo de condução de um possível acordo, da forma em que está ocorrendo, vai no sentido contrário a realização desses dois princípios e representa retrocesso nos direitos já conquistados pelas populações atingidas por barragens, o que é vedado na normativa nacional e internacional.
Neste contexto, denunciamos e exigimos que a participação dos atingidos e atingidas seja garantida em todas as fases do referido acordo, incluindo-se na elaboração do mesmo, para que sua eventual celebração não represente retrocesso aos direitos já consagrados e garantidos nos marcos nacionais e internacionais, reiteramos.
Mais recentemente, após algumas manifestações em contrário difundidas na imprensa, e o questionamento de diversos parlamentares estaduais e federais, o acordo foi retirado do segredo de justiça, mas permanece a confidencialidade, conforme decisão de 12 de novembro de 2020.
É ainda de se estranhar, somando-se as demais preocupações sobre o acordo, que na última audiência realizada em 17/11/20, o Presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Desembargador Gilson Soares Lemes definiu que um eventual acordo seria homologado no âmbito do CEJUSC, com natureza de sentença judicial. Tal definição, busca evidentemente silenciar iniciativas e propostas no poder judiciário de, sob quaisquer condições e circunstâncias em que o acordo for assinado, de promover a devida publicidade do acordo e transparência do processo a sociedade civil, por um período mínimo de 5 dias, antes da homologação. Tal publicidade e transparência, visaria sem dúvida, conferir a oportunidade da sociedade civil de avaliar seus termos, podendo contribuir para elaboração de demandas e ajustes previamente que pudessem qualificá-la. Dado o impacto decorrente do crime à sociedade mineira e ao país, nada mais adequado e justo em oportunizar tal manifestação.
Porém, sem prejuízo às manifestações sobre o acordo que serão feitas pelos atingidos em conjunto com as suas assessorias técnicas independentes, o MAB vem apresentar algumas premissas e pontos de preocupação sobre o acordo já narrado acima, tendo como base os documentos divulgados na mídia.
- 1) Os litígios complexos, como os estabelecidos na Bacia do Rio Doce e na Bacia do Rio Paraopeba, pela complexidade de danos gerados, deve ser interpretado de acordo com a leitura e garantia dos direitos humanos. A par da melhor doutrina e jurisprudência que já reconhece que os instrumentos processuais devem refletir as bases do regime democrático, em especial em casos de processo coletivo de graves violações de direitos humanos por empresas. Sobre esses casos, a Resolução n° 5, de 12 de março de 2020 do CNDH que dispõe sobre Diretrizes Nacionais para uma Política Pública sobre Direitos Humanos e Empresas, reconhece a necessidade do acesso à informação adequada e ampla participação no tratamento e prevenção de violações de Direitos Humanos cometidos por empresas, e de que nas negociações para o tratamento de violação de Direitos Humanos deve se orientar pela busca de soluções garantidoras de direitos humanos, observando-se a escuta, interlocução e participação dos trabalhadores, entidades sindicais, pessoas e comunidades atingidas, seus apoiadores e assessorias técnicas na criação de instâncias e procedimentos a serem adotados. Desta maneira, o Movimento dos Atingidos por Barragens sempre se pautou pelo reconhecimento da centralidade da vítima, o qual foi já reconhecido pelo juízo competente na decisão saneadora de 9 de julho de 2019, e pela criação de mecanismos adequados para a participação ampla e informada. Nessa toada, a atuação das assessorias técnicas independentes busca não somente corrigir o desbalanço no acesso à justiça criado pelo rompimento da barragem, mas também garantir os preceitos constitucionais e o próprio funcionamento democrático da justiça. Assim, reafirmamos que há os instrumentos necessários para uma participação ampla, e não por isso burocrática, permitindo que todos os atingidos em sua diversidade territorial e de danos participem de um só processo de reparação, sem que haja falsas representações dentro do processo. Não obstante, reforçamos que a participação nesse caso tão complexo deve levar em conta também a participação da sociedade civil de forma mais ampla, assim como a exemplar atuação da UFMG e a PUC-MG, resguardados seus papéis no caso, mas também dos movimentos sociais e populares, em especial diante dos inúmeros danos difusos e coletivos que foram atingidos. Nesse mesmo sentido, é de especial atenção os direitos dos grupos e populações vulneráveis, como os povos e comunidades tradicionais, aos quais devem ser assegurados as proteções já existentes no ordenamento jurídico brasileiro, como é o caso do disposto na Convenção 169 da OIT.
- 2) Ainda quanto a participação vinculante, ampla e informada, ressaltamos que a atuação da assessoria técnica independente é fundamental não somente na fase de diagnóstico e elaboração de parâmetros, diretrizes, programas e ações de reparação integral, mas também na própria execução de tais medidas, a fim de contribuir na fiscalização da execução e garantia da reparação. Assim, ainda que seja acordado parcialmente a execução desde já de ações para a reparação, como proposto pelo Governo de Minas Gerais, ressaltamos a necessidade da participação qualificada, apoiada pelas assessorias técnicas, com paridade e poder deliberativo dos atingidos nas Câmaras Técnicas, com atuação do Estado e das instituições de justiça de forma subsidiária e vinculado as decisões dos atingidos; neste ponto, também não parece haver razoabilidade da Vale ter qualquer tipo de assento na governança para discussão dos assuntos em que os danos representarem extinção das causas de pedir. Ademais, as assessorias técnicas devem ter garantida a continuidade dos planos de trabalho já elaborados no tempo previsto, e atuação como assistente técnico se os atingidos assim quiserem, sem que seja reduzida a um papel de mero acesso à informação.
- 3) Dentre as ações já previstas nos planos de trabalho das assessorias técnicas, está a elaboração pelos atingidos em conjunto com as assessorias técnicas da matriz de reparação dos danos individuais e coletivos. Desta feita, a repactuação do Termo de Compromisso realizado entre a Defensoria Pública e a Vale deve continuar sendo utilizada de forma residual, resguardando-se o direito dos atingidos de construírem suas próprias propostas, ainda que venham a ser objeto de negociação posterior, inclusive resguardando-se o já estipulado pelo TC no que tange a não quitação de todos os direitos individuais.
- 4) Ressaltamos ainda, enquanto premissa a qualquer acordo, que seja garantido o cumprimento das necessidades emergenciais já elencadas pelos atingidos: até o momento, diversas ações emergenciais não foram cumpridas, e os atingidos sofrem sem saber o parâmetro do novo emergencial, sem acesso a água e com controle da Vale sobre os territórios. Assim como a assessoria técnica é condição para a participação ampla e informada, a adoção e cumprimento de medias emergenciais de mitigação constroem as bases necessárias para que os atingidos participem do processo em condições materiais também, sem que as circunstâncias os levem a negociar seus direitos em patamares rebaixados. Para que os atingidos continuem tendo condições de participar do processo de reparação integral, e para que a função punitiva da responsabilidade civil seja efetiva, qualquer acordo deverá definir antes as obrigações emergenciais a serem realizadas pela Vale, com a consolidação dos critérios do auxílio emergencial elaborados pelos atingidos com as assessorias técnicas, as demandas por água e criação do Programa Direito de Renda para garantir que os atingidos em situação de vulnerabilidade não vejam sua situação piorada. Assim, destacamos a necessidade de garantia de continuidade do auxílio emergencial, por sua natureza alimentar nos casos de perda de renda, da matriz emergencial, e da criação de um Programa Direito à Renda de natureza socioassistencial, como já exposto na Nota Técnica 42 da CTOS do CIF/Rio Doce sobre as necessidades socioassistenciais sui generis decorrentes dos desastres.
- 5) Em que pese a complexidade do sistema de governança que foi estabelecido na Bacia do Rio Doce, apontamos também a necessidade de se ter cautela quanto a adoção a priori do chamado “glossário” para a estipulação de parametros e entendimentos na execução do acordo. Desde já, apontamos como inadequada a adoção dos indicadores socioambientais construídos pela Vale por meio da sua terceirizada Arcadis. Como já vimos no casos Rio Doce, não deve haver a parametrização com políticas públicas ou normativas génericas ou não adequadas ao caso, nem com parametros construídos unilateralmente pela Vale ou pelo Estado – nesse caso há necessidade de um glossário e definição de indicadores mínimos, mas deve haver a construção junto aos atingidos e sociedade civil dos níveis otimos ou possíveis; ressaltamos que é necessário também que haja ampliação para que a sociedade civil e outros órgãos técnicos participem das discussões sobre pontos controvertidos que venham a aparecer no decorrer do processo, para além da continuidade dos trabalhos da UFMG, especialmente nas avaliações de risco ao meio ambiente e risco à saúde humana. Quanto a este último ponto, o MAB já se manifestou quanto a inadequação da metodologia PISMA, adotada em TAC realizado entre Minsitério Público Estadual e Vale. A escolha de tal metodologia contraria a legislação brasileira e os parâmetros estabelecidos pelo Ministério da Saúde, e não trazem segurança para os atingidos sobre a real situação de contaminação do meio ambiente e da saúde dos atingidos, além do fato de as empresas contratadas pelo Estado para realizar os estudos são prestadoras de serviços para a Vale S/A, o que traz desconfiança sobre qualquer resultado futuro. Apontamos que tal acordo não somente não deva ser repactuado, mas como deva ser revisado. Outros pontos trazidos pela Vale na proposta de minuta são a utilização do status quo ante como parâmetro para reparação socioeconômica e socioambiental, o qual é insuficiente para a tratativa de violações de Direitos Humanos, devendo-se garantir a dignidade humana e o restabelecimento dos projetos de vida, entendido o dano ao projeto de vida enquando dano autonômo, enquanto objetivo da reparação integral.
- 6) Por fim, quanto a abrangência do acordo, apontamos que não devem ser objeto do acordo os pedidos que não foram apontados pelas partes autoras na petição de julgamento antecipado, especialmente as indenizações individuais e coletivas devidas às pessoas atingidas pelo rompimento, nem as ações emergenciais (item 7.2. da propostad a Vale – “As obrigações e projetos contemplados neste acordo servem à reparação integral dos danos e prejuízos sofridos pelo Estado de Minas Gerais e seus municípios, bem como por todos os danos socioeconômicos coletivos e difusos decorrentes do rompimento, incluindo danos morais coletivos.”). Além disso, as medidas indicadas pelo Estado devem apresentar real correlação entre os projetos e as necessidades dos territórios atingidos para a reparação integral. Apontamos a necessidade de constituição de um Fundo Social da Bacia do Paraopeba, com recursos para aplicação em programas sócio-econômicos e de demandas imediatas, resguardadas os posteriores danos a serem conhecidos e condenados.
- 7) Respeito, mediação e diálogo permanente das Instituições de Justiça junto aos atingidos e as atingidas da Bacia do Paraopeba, garantindo-se o direito a assessoria técnica independente já judicialmente estabelecida, primando pela interlocução e protagonismo dos titulares de direito e a organicidade já estabelecida das comissões de atingidos/as na Bacia do Paraopeba em conjunto com as ATIs.
Diante das preocupações e ressalvas não exaustivas trazidas acima, apontamos desde já que qualquer acordo que venha a ser firmado o seja feito somente após participação ampla e informada dos atingidos e atingidos, e que eventual acordo deva ser homologado pelo Mm. Juiz que até então vem acompanhado o caso, resguardando-se sempre o interesse dos atingidos e a defesa dos Direitos Humanos.
Belo Horizonte, 30 de novembro de 2020
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB