“O racismo estrutural brasileiro tem incidência em todas as áreas da vida”, afirma Dulce Pereira
Professora e ex-diplomata, fala sobre o racismo no Brasil e comenta o atual momento do país e do mundo diante da onda de protestos antirracistas
Publicado 01/07/2020 - Atualizado 05/08/2024
Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
Após o assassinato de George Floyd, asfixiado até a morte por um policial branco nos Estados Unidos, que provocou uma onda de protestos e reações antirracistas em todo o mundo, o Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB conversou com Dulce Maria Pereira, primeira mulher negra a ocupar um cargo na diplomacia brasileira, e que presidiu órgãos como a Fundação Cultural Palmares e a Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Atualmente Dulce é professora na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Confira a entrevista:
MAB: Após o assassinato de George Floyd, diversas manifestações se iniciaram pelo mundo e em mais de 400 cidades dos EUA, encabeçadas por pautas antirracistas e antifascistas. Junto a isso, tivemos o surgimento de diferentes movimentos protagonizados pela população negra no mundo. Como a senhora avalia esse cenário e, especificamente, os seus desdobramentos no Brasil?
Dulce Maria Pereira: O assassinato do George Floyd e o início da campanha “Eu não posso respirar” (I can’t breathe), reproduziu uma história que já vinha acontecendo, mas a forma que o vídeo foi difundindo e, principalmente, a revolta em relação às desigualdade e a forma como o Trump vem lidando com as questões raciais, fizeram com que os jovens nos Estados Unidos fossem às ruas com uma capacidade de diálogo com o resto do mundo, e isso fez com que as manifestações ocorressem em todas as partes. Isso se deve também porque realmente há uma consciência mais coletiva da juventude em relação às desigualdades e os jovens vivem isso em todos os lugares do planeta. Mais do que isso, é importante perceber que há um trabalho coletivo puxado por eles. Não tem um rosto, uma face, o que existem são grupos que expressam não apenas as reflexões que a juventude vem fazendo, mas também propõe mudanças muito específicas e essas mudanças contra os Estados coercivos, contra a polícia que sempre foi a força e o braço de controle e de opressão dos negros e dos grupos que são discriminados por origem étnica nos vários lugares do mundo. Então esse grito é um grito coletivo porque há uma percepção coletiva, no cotidiano, de violação de direitos em relação a juventude; e uma juventude que cada vez mais se coletiviza em relação aos seus problemas, que se manifesta de forma coletiva em relação às questões da Amazônia, ou que entende que o que acontece com um, pode acontecer com todos. Há uma grande mobilização diversificada, de grupos de todas as origens, que acumulam as lutas e isso é muito interessante. Há um acúmulo das lutas históricas que se manifesta agora na voz dessa juventude. É um movimento que realmente aponta para uma corresponsabilidade em relação a promoção de mudanças.
Veja a questão da retirada das imagens das pessoas que são símbolos da opressão. Quando se pensa, por exemplo, na retirada da imagem de Leopoldo II, que era um símbolo de controle à distância dos grupos e da riqueza coletiva produzida pelas colônias, pelos países que se tornaram colônia após a conferência de Berlim, isso é extraordinário. É recolocar os fatos históricos à luz do conhecimento contemporâneo e dizer: “nós não queremos mais esse tipo de opressão”. É muito rica essa mobilização e, mais ainda, porque ela carrega essa responsabilidade extraordinária da juventude.
A repercussão no Brasil ocorreu justamente quando já havia uma inquietude muito grande com o assassinato do João Pedro, com assassinato dos jovens, principalmente no Rio de Janeiro, mas também em outras partes do Brasil, a partir da mesma violência, da mesma coerção policial. Então isso tudo já estava na garganta também dos jovens que já sabiam que não podem respirar com essa bota de opressão. As manifestações no Brasil se alimentaram do momento histórico e os jovens foram para as ruas mesmo preocupados com a pandemia. Ao mesmo tempo, eu me lembro de ter comentado com alguns jovens há alguns dias e eles me disseram: “nós não temos condições de fazer distanciamento social na nossa favela, na nossa comunidade, porque o espaço físico não permite, dormimos quatro pessoas no mesmo cômodo. Então é melhor ir para rua e lutar, onde nós seremos mais socialmente úteis, do que ficar em casa para morrer simplesmente vítimas da Covid-19”.
“Eu não aguento mais, eu não posso respirar, mas eu quero respirar, eu tenho direito a respirar, eu tenho direito à vida”! Essas manifestações são e têm esse significado. O racismo se manifesta de forma brutal, eliminando jovens. Esse grito dita um ritmo e agora a gente, mais do que nunca, convive com esse grito de forma universal.
Qual o papel da pesquisa e da universidade nessa luta?
A academia, apesar do ingresso de pessoas de vários grupos sociais, ainda não se debruça a entender as complexidades da sociedade, e menos ainda a entender aquilo que o Florestan Fernandes dizia: a realidade dos de baixo e a partir da realidade desses, entender as complexidades da pirâmide social desigual, que foi desenhada a partir da compreensão do escravo como trabalhador e do negro a partir da libertação da escravidão como o inconveniente para o próprio desenvolvimento. E em uma sociedade onde não se fez a reforma agrária, pior ainda, porque há um interesse que eu chamo de “branco cêntrico” na produção acadêmica, que revela esse universo etnocentrado, e que não é de fato um universo que considere as diversidades, a pluralidade e principalmente as especificidades de forma honesta e da forma que a ciência pode e deve fazer. Eu falo da população negra, indígena, da população japonesa, da população de origem judaica. Então essa percepção das complexidades e o aprofundamento de como essas inter-relações acontecem não é organizado, aprofundado, sistematizado pelas várias áreas, seja das ciências sociais, seja das ciências em geral.
A academia estuda muito pouco o jovem, se debruça muito pouco sobre as possibilidades da juventude, sobre as complexidades, as necessidades e sobre o retrato histórico específico do impacto da desigualdade sob a nação. O que existe é o seguinte: é o problema do negro, o problema do índio, e com problemas específicos, os outros grupos humanos diferenciados, que ingressam de forma mais privilegiada na pirâmide social pois fazem parte dos grupos que foram estimulados a participar do processo de produção de riqueza e de gerenciamento da riqueza, como árabes, japoneses, como judeus no Brasil e em várias partes do mundo, não são de fato sujeitos de estudo como deveriam ser, até para se entender essas complexidades, até para se entender onde e como se manifestam as desigualdades, e a partir daí, como as desigualdades podem e devem ser trabalhadas.
A academia trabalha muito mal a violência policial, trabalha a violência policial sobretudo nas áreas de assistência social e do direito, quando essa é uma realidade que está colocada com outras complexidades, outras realidades, inclusive em estudos sobre a própria formação psicológica da pessoa humana que se desumaniza ao ingressar na polícia e a ter que dar bons resultados.
Essas questões precisam ser realmente abordadas pela academia de forma mais responsável e consequente. Eu diria que a academia ainda é uma observadora, eventualmente se associa como parceira de luta, mas ainda não como produtora de conhecimento que pode ser relevante na estruturação de uma sociedade de fato participativa, justa, democrática, ecológica e socialmente responsável.
A senhora já foi presidenta da Fundação Cultural Palmares, e o atual presidente, Sérgio Camargo, classificou os movimentos negros como “escória maldita”. O que dizer dessa fala?
Primeiro vou te dizer que eu sofro com essa história por várias razões, até porque o pai desse rapaz que serve o governo Bolsonaro nas suas intenções, metodologias e práticas, é um grande, grande e histórico poeta, escritor, militante negro e não merecia, como nenhum de nós merecia – poderia ser um filho meu – esse tipo de intervenção por parte de um dos biologicamente nossos. Mas eu também faço a seguinte separação: eu fui presidenta da Palmares no governo Fernando Henrique, em um processo conduzido por Vicentinho, Benedita da Silva, Hélio Santos, em uma negociação política com o governo. Naquela época, havia a necessidade de alguém que pudesse conduzir uma série de questões que estavam ainda paradas, e eu não posso esquecer Carlos Mora que foi fundador e estava na CNBB, e que foi um dos responsáveis para que eu deixasse meu projeto de vida para ser presidente da Palmares. O objetivo era de fato consolidar, mesmo não sendo do partido ou do grupo político do então presidente, uma série de conquistas que foram assegurados pela Constituição e outras leis para fazer com que elas fossem cumpridas, inclusive a titulação e reconhecimento dos quilombos. Não foi fácil, foi um processo difícil garantir esse cumprimento, de assegurar os caminhos possíveis para a sustentabilidade dessas comunidades.
Eu fui muito além disso porque nós conseguimos trabalhar os conceitos de território cultural negro, delimitar e identificar vários dos sítios de Candomblé, mas também as igrejas católicas, também os espaços de atuação evangélica articulados em vários lugares. Não havia uma segregação do ponto de vista religioso ou ideológico ou mesmo do tipo de manifestação, era um reconhecimento científico, antropológico, com mapeamento, com dados, com estudos, com levantamentos para a identificação desses territórios historicamente construídos pelos afrodescendentes no Brasil, pelos africanos no Brasil e ainda compreendendo esses territórios como grandes celeiros culturais, grandes espaços de riqueza, organização de formas de viver, que fazem parte do nosso cotidiano, mas que são aglutinadas nesses territórios. Veja bem: porque estou te falando isso? Eu não tenho nenhuma glória, porque eu não fiz isso sozinha, eu fiz com o movimento social negro, com as entidades, com uma equipe muito capaz, não foi mérito da presidenta, foi mérito do coletivo. Acontece que um dos problemas maiores é que a gente ainda espera algum tipo de comprometimento deste governo.
Esse governo nunca vai se comprometer com a comunidade negra, com os negros, com os pobres, com os índios, com as mulheres, não. Esse governo nos vê como escória. Então, o que aquele rapaz verbalizou é exatamente o que ele ouve no cotidiano do governo e é exatamente para isso que ele está lá.
Eu nem acho que a gente não pode tentar entender porque já está entendido, é um fato dado, não há diferença entre ele [o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo] e o ministro do meio ambiente [Ricardo Salles], que diz que durante a pandemia deve-se passar a boiada, e a boiada está sendo passada também nas áreas de população negra com o ingresso da Covid-19 nos quilombos, com a fragilização da saúde desses grupos humanos que não vivem aglutinados como vivem as pessoas nas favelas, nas comunidades urbanas, e mesmo em algumas comunidades atingidas que acabaram tendo que viver aglutinados em suas palafitas, porque foram conduzidos a isso pelos grandes empreendimentos e barragens. Nas comunidades quilombolas as casas são mais distantes, como é o caso das populações indígenas também. Portanto, não havia razão para ter Covid-19 nesses lugares, mas estão passando a boiada, eliminando essas pessoas principalmente a partir da presença de técnicos de empresas, até de funcionários do governo que, de fora para dentro, são vetores da Covid-19. Eu acho que se alguém tem dúvida, basta pensar no que aconteceu em Fernando de Noronha, que não é uma comunidade como essa mas é um exemplo. Um avião leva um conjunto de funcionários para trabalhar em Noronha, e para isso, esses funcionários são testados. Como houve ali uma ação forte do governo estadual do Ceará, eles foram impedidos de circular e de dispersar a Covid-19 na comunidade, e é isso que tinha que ter acontecido nos quilombos. Mas esse jovem – ou esse senhor – está na Palmares justamente para permitir que a boiada seja passada nos territórios quilombolas, nos territórios culturais, com a desqualificação e mesmo a ação física de depredação dos espaços religiosos da população negra. Então não há novidade, não há que se ter uma expectativa diferente, o que nós devemos ter e exigir é uma ação diferente do Estado.
Se qualquer presidente tivesse feito algo muito semelhante já teria sido impedido, como é que não é agora? Não esperem que essa seja uma ação do movimento negro, porque esse é um problema do Estado brasileiro. O movimento negro tem realmente que demandar e exigir que o Estado se coloque. Enquanto ele [governo Bolsonaro] está fazendo toda essa pirotecnia na base de Alcântara, que está sendo mais e mais encaminhada para uma sessão aos militares americanos, sob a tutela dos Estados Unidos, e é uma comunidade histórica fundamental a comunidade de Alcântara.
O Brasil está passando por um processo de perda de soberania. Não se perde apenas o território quilombola, mas a perda do território quilombola e a sessão da base de Alcântara significam perda de soberania. E onde está o Congresso? E as comissões de relações exteriores?
Isso tem que ser votado de forma coerente, inclusive com a história. Como é que se pode entregar uma área dessas? E para isso, a boiada está sendo passada sobre os quilombolas de Alcântara. Então a questão é: esse é um problema da nação brasileira. As demandas já estão presentes dentro do movimento negro, mas não tentem fazer uma luta entre negros, porque essa luta não é entre negros, não tentem nos dividir nas nossas ações conjuntas.
Uma das violações de direitos constatadas pelo estado brasileiro na construção de barragens no Brasil é o tratamento desigual aos atingidos, seja por critérios raciais ou econômicos. Isso também acontece no tratamento que as mineradoras dão aos atingidos nos crimes da bacia dos rios Doce e Paraopeba. Como a senhora analisa o racismo estrutural também das empresas com as populações ameaçadas e atingidas por esses empreendimentos? Como é possível enfrentar essa realidade?
O racismo estrutural brasileiro tem incidência em todas as áreas da vida, e uma delas é nos processos conduzidos pelas mineradoras que são uma dessas manifestações do racismo estrutural. Ela se manifesta na saúde. Esse conceito que todos são iguais mas alguns são mais iguais é presente, e é preciso observar que essa organização das mineradoras e das empresas, dos grandes empreendimentos nos territórios, é definida como “territórios de sacrifício”. Vamos exemplificar com os quilombos na Amazônia. Eu cheguei a ouvir várias vezes de altos dirigentes e mesmo de grupos econômicos a seguinte pergunta: por que esse povo tinha que ir justamente para o lugar onde tem a maior concentração de água, maior concentração de minério? O projeto se desenha onde há um grande empreendimento, e há ali a clara implicação de deslocamento dessa população, e preferencialmente de um deslocamento a baixo custo. Nesse sentido, a população negra foi obrigada a sair do centro onde eram escravizados, é importante entender isso. A população negra era trabalhadora na escravidão, quando saiu dali no pós escravidão, apodreceu nas ruas, porque havia a tentativa de excluir essa população do universo do trabalho com a imigração de europeus, com a cessão de terra que não foi feita aos negros, mas para os europeus que vieram para o Brasil e se incorporaram à nação brasileira. E o que acontece hoje é a continuidade dessa história, de certa forma, porque o que está colocado é o deslocamento em massa. Eu tive muita clareza disso quando estava na presidência da Palmares, discutindo as áreas de quilombos. Eu me lembro que uma vez, trabalhando no Amapá com o então governador Capiberibe, que fez um processo muito importante de garantir um território quilombola, o que diziam era isso: “aquelas terras são terras nobres”.
A tendência de tentar retirar os negros e os quilombolas dos seus territórios também se vê na própria escolha de barragens, como é o caso de Fundão, construída logo acima de uma comunidade negra. Se ali onde é Bento Rodrigues fosse Alphaville, a negociação seria outra. Mas ali obviamente é uma comunidade negra, então ficam mais vulneráveis.
O uso das referências estruturantes do racismo que são a origem étnica e o gênero – olha como as mulheres são tratadas nesses processos de impacto dos grandes empreendimentos, o horror como as mulheres são vitimadas e são desqualificados e principalmente fragilizadas nas suas forças fundamentais, como as pessoas idosas são tratadas. O uso desses fatores que são estruturantes da desigualdade, estruturantes na justiça social, estrutura da justiça ambiental pelas mineradoras, é dramático. E eu diria que a principal forma de enfrentamento disso é identificando a prática do racismo, coletivo inclusive, e tornando visível tanto para o Estado quanto para os órgãos internacionais. Essa é uma forma de se combater essa desigualdade. Hoje ela é visível, ela precisa ser sistematizada, é preciso construir ferramentas que mostrem isso porque lamentavelmente pegou essa ideia do nexo causal, mas eu vou dizer que a visualização do racismo é muito importante nos processos de reparação.