O milagre

Essa transmutação milagrosa, reveladora da dialética e do acirramento das contradições, que vêm à tona quando os golpes e a energia popular se encontram, traz a possibilidade do novo, mas […]

Essa transmutação milagrosa, reveladora da dialética e do acirramento das contradições, que vêm à tona quando os golpes e a energia popular se encontram, traz a possibilidade do novo, mas cria também, nesse percurso, certos monstrengos. Isso é normal das transições!

Por Antônio Claret Fernandes, militante do MAB em Minas Gerais e padre da Arquidiocese de Mariana

O arame farpado, novinho, tinindo de esticado, rompe-se num átimo, sem explicação. Os manifestantes entram, com suas bandeiras. As plantas, a maioria ridícula, amarelas de fraqueza, cujas sementes, 14 variedades, foram jogadas ali pela Samarco com a finalidade de esconder o rejeito de minério, vão arrendando e mostram, a seu modo, a farsa da empresa: o verde aparente sede lugar ao cinza da concentração de ferro no chão, deixado pela lama.

Um amontoado de madeira, ainda escura do dia do crime, 5 de novembro de 2015, ajeita-se e se transforma, repentinamente, numa mesa; não aquela de governos nem de golpistas, com taças cheias até à borda, do sangue  e suor da classe trabalhadora, mas dos movimentos populares de diversas partes do Brasil em diálogo com o Papa Francisco, nos dias 2 a 4 de junho, em Mariana.

Francisco! Latinoamericano, faz tremer o lado podre do poder religioso, enraivece os capitalistas travestidos de cristãos, e ganha, de uma vez por todas, a simpatia dos movimentos populares pela afinidade ideológica a partir de sua história de luta em Buenos Aires. Um dos mais expressivos líderes do MST confessa que ‘tivemos que esperar um Jesuíta pra fazer uma leitura marxista da crise ambiental’, referindo-se à Laudato Si.

Ao que parece, ele, o Papa, tem encontrado mais acolhida entre os movimentos populares do que entre alguns membros influentes de dentro da própria igreja católica, numa oposição clara ou camuflada; até lhe repetem o discurso, mas sem deixar-se influenciar por sua postura clara de combate à violência do capital. A esses, pode aplicar-se a frase de Jesus de Nazaré: ‘Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim’ (Mateus, 15,8).

Ali, naquela Mesa, à margem do Gualaxo, há espaço para testemunho e poesia. Poyesis, termo grego que dá origem a ‘poesia’, significa ação, criação. O sol está quase se pondo. Tantos pressentem, próxima, a escuridão da noite. Quem luta, porém, já nota no pôr do sol o prenúncio da madrugada e do dia claro.

A pequena cachoeira no Gualaxo do Norte, apelidado agora de Gualaxo da morte, a jusante de Paracatu de Baixo, em ruínas, canta a esperança, sem ilusão. Terá aprendido de Lênin, para quem é permitido sonhar com os pés no chão? Pode ser!

 O rio, que ainda carrega o odor fétido daquele caldo vermelho-escuro a vazar de Fundão, despenca pedra abaixo, buscando reoxigenar-se. Ele sabe que a regeneração será obra sua ou não ocorrerá nunca. Pra isso necessita contar com a organização e força do seu povo, ao longo de toda a Bacia do Doce.

O MAB vem fazendo esse esforço, mas é desafiante. É que há oportunistas de plantão dentro dos governos – alguns com miopia eleitoral, que lhes impede enxergar a luta de classe cada vez mais acirrada -; dentro das empresas e de várias ONGs e, quando muito querem aplicar anestésicos no rio e na sua gente, angariando mundos e fundos com fotos e projetos. O Acordão assinado pelos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, pelo Governo Federal e pelas empresas Vale/BHP/Samarco é um exemplo capital, que faz um milagre às avessas, transformando um crime em oportunidade de novos negócios.

A voz da cachoeira teimosa, apesar da água pouca e barrenta, vermelha de tanto ‘levar ferro’, é estridente, e vem encontrando eco em tantas organizações, no Brasil e no Mundo. Sua expressão se parece à de Duda, cor índia e militante no Acampamento em Brasil Novo (Pará), falecida no dia 8 de junho deste ano. A fragilidade poderosa, dela em Belo Monte, obra surrupiada em 150 milhões de reais, e da cachoeira em Mariana, soa canto de profecia e conclama à unidade. Sindicatos e movimentos populares, nascidos em contextos diversos, cada qual com seu (quase) dialeto, agora se unem e falam a mesma língua de classe. À semelhança de fontes que borbulham rumo aos córregos, rios, até o oceano, as organizações se mobilizam, contra os crimes da Samarco e do Golpe, ambos gerados na exploração, essa máquina feroz de moer gente e de fuçar a natureza pra acumulação de capital.

As ruas do Brasil, antes na mesmice dos carros, correndo e roncando os motores, agora lotam cada vez mais num colorido novo. BH fica especialmente linda no dia 10 de junho, na luta unificada em todo o país.  A bem da verdade, ela fica irreconhecível, pois antes, ninho dos tucanos, com voos rasantes  e frequentes dessas aves figuradas de rapina, agora se enfeita de vermelho, cheia de balões, num mar de gente, a sumir de vista.

Em todas as manifestações, a matemática da Globo, da PM e das mulheres e homens  lutadores não fecha. Mas isso não importa, pois a questão não é matemática, é política. E fica sempre mais perceptível esse milagre do crescimento da força do povo. Nos botecos, nas rodinhas de conversa, já se discute o Brasil. Há um incipiente processo de politização.

Essa transmutação milagrosa, reveladora da dialética e do acirramento das contradições, que vêm à tona quando os golpes e a energia popular se encontram, traz a possibilidade do novo, mas cria também, nesse percurso, certos monstrengos. Isso é normal das transições! Muitas figuras históricas ainda discursam aos berros, gesticulando muito, fixadas num mundo morto. Outras carregam a ilusão de que tudo se resolverá em 2018. Sua miopia não lhes permite ver luta de classe nos sinais crescentes e manifestos em intolerância e ódio.

Muitos desses, por má fé ou alienação, vão migrar para a classe opressora. Se é que já não estão lá. É como lembra a anedota do morto que, em cima do muro do desenvolvimentismo, à espera do seu destino eterno, repara que o céu, do lado esquerdo, implora sua decisão, sem medir esforços, enquanto o inferno, à ultradireita, permanece completamente indiferente. Tomado de curiosidade, procura, com aqueles olhos de defunto, o capeta mais velho, que parece ser o chefe, e lhe pergunta por que tanta tranquilidade frente a uma alma em disputa. O capeta-chefe, que joga o xadrez do mundo, sem ao menos levantar o rosto, diz-lhe, secamente, com aquela voz própria do Encardido: ‘o muro é meu!’. E continua seu jogo de cartas marcadas (e macabras, no retrocesso de direitos), definindo o impeachment, sei lá de quem.

Algumas dessas figuras, porém, embora já defendessem o povo, em geral, agora vão percebendo uma disputa mais profunda, num verdadeiro milagre ideológico. No Encontro Nacional de Blogueiros, em Belo Horizonte, nos dias 20 a 22 de maio, um Ministro da Presidenta afastada, Dilma Rousseff, chega a confessar que, de formação cristã, alimentou muito preconceito pelo marxismo, mas, diante da violência do golpe, vê que Marx tem razão. E que não há contradição fundante entre Evangelho e marxismo. Ambos, com suas ferramentas próprias, ajudam numa leitura adequada da realidade e anseiam por uma intervenção na sua estrutura. Os dois põem fé na organização do povo como o sujeito da nova ordem social.

Se é que se pode fazer uma classificação de milagres, o senso comum certamente colocaria o que anestesia, curando a dor de cabeça sem combater-lhe a causa, em primeiro lugar, mas quem reflete e luta vê que a clareza ideológica tem a primazia. Sem ela, a classe trabalhadora se perde no labirinto do sistema, que a engole.

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