João Zinclar, fotógrafo das lutas brasileiras

Exposição revela acervo do operário e hippie cujas imagens resgataram duas décadas decisivas para resistência popular e história do país Por Sonia Fardin*, do Outras Palavras Imagens: João Zinclar “Sem futuro, […]

Exposição revela acervo do operário e hippie cujas imagens resgataram duas décadas decisivas para resistência popular e história do país

Por Sonia Fardin*, do Outras Palavras

Imagens: João Zinclar

“Sem futuro, o presente não serve para nada,
é como se não existisse.
Pode ser que a humanidade venha a conseguir viver sem olhos,
mas então deixará de ser humanidade”

José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira

O fotógrafo João Zinclar estava em plena atividade quando faleceu, em 19 de janeiro deste ano, num acidente rodoviário. Sua ausência abrupta, aos 54 anos, deixou um vazio no restrito grupo de produtores de imagens que se dedicam a documentar as lutas sociais no Brasil. Deixou também preocupação com o destino do acervo produzido por ele nos últimos vinte anos.

Três meses após a morte de João, fui designada para realizar o trabalho de pesquisa em seu acervo pessoal, e também participar da edição de uma entrevista registrada em vídeo pelo Museu da Imagem e do Som (MIS) de Campinas em 2009 e ainda inédita. Ela deu origem ao documentário João Zinclar, a imagem militante.

Estas tarefas me colocaram em contato com três horas de gravação, nas quais João narra sua história, com milhares de imagens e dezenas de livros, revistas e jornais onde parte de sua obra foi publicada. Este trabalho também me aproximou de Vitória, filha do fotógrafo, herdeira deste legado, pessoa central para a realização do trabalho. Mas eu mesma conhecia João pessoalmente, das atividades militantes e dos eventos do MIS. Nestes encontros trocávamos ideias a respeito de projetos de trabalho e filhos, como quem sente uma urgência.

Este texto, portanto, não é um relatório de pesquisa strictu senso, está entre o relato da historiadora e um diálogo, já iniciado, sobre os mesmos temas, que hoje têm outra perspectiva e outras urgências.

No trabalho com acervos, em geral, a primeira etapa tem como objetivo mapear tudo o que envolve o histórico de produção da coleção e o processo de trabalho do fotógrafo que as produziu. O agente produtor em questão foi o próprio fotógrafo, João Zinclar (1956 – 2013), nascido em Rio Grande (RS), onde começou a trabalhar cedo como comerciário e depois operário da construção civil. Aos dezoito anos era encanador industrial. Decidiu sair de casa, foi trabalhar em Cubatão, Campinas, Rio de Janeiro e Salvador. A vivência na construção civil colocou-o em contato com a rotina árdua de alojamentos e o caldeirão de culturas dos trabalhadores urbanos, imersos nas contradições do modelo de desenvolvimento da ditadura militar, que fazia crescer não apenas alto-fornos, aeroportos, indústrias e refinarias, mas também ampliava desigualdades, injustiças, mentiras e medo.

Em meados da década de 1970, João trabalhava em Salvador, ganhava salário de trabalhador qualificado. Encantou-se com uma artesã, Carolina, que o convidou para ver o Brasil. Deixou o trabalho formal, foi viver fora das marcas do sistema, tornou-se artesão. Percorreu o Brasil com o movimento hippie de 1976 a 1980. O moço que já conhecia o mar foi conhecer a floresta amazônica, os sertões e os cerrados, vivendo em acampamentos em beira de estradas e bordas das grandes cidades.

No final dos anos 1970, a luta pela anistia, as greves dos canavieiros em Pernambuco e Alagoas e as dos movimentos operários em São Paulo fizeram-no pensar: “tem coisa nova surgindo no Brasil, tá na hora de ver isso mais de perto”. Decidiu voltar para casa. Em 1981, de novo em Rio Grande, retornou à vida operária. Passou a ler muito, em especial os jornais e revistas dos movimentos políticos de esquerda, com os quais também começou a interagir. Numa dessas interações, foi recrutado para a militância do PCdoB, ainda na clandestinidade. Recordava: “quem me recrutou foi uma menina, ainda menor de idade, chamada Maria do Rosário, hoje filiada ao PT”. Neste mesmo período, adquiriu uma câmera fotográfica e frequentou cursos do Foto-Cine Clube Gaúcho.

Como membro ativo do PCdoB, recebeu a missão de ir construir a luta dos trabalhadores em Campinas, interior de São Paulo, onde trabalhou como metalúrgico e dirigente sindical entre 1985 e 1990. De 1990 a 1996, foi diretor de imprensa do sindicato dos metalúrgicos de Campinas. Lá conheceu e foi companheiro de Silvia e tornou-se pai de Victória.

Em 1996, decidiu sair dos quadros partidários e sindicais, mas não da luta política. Passou a dedicar-se integralmente à fotografia e atuou, desde então, como repórter fotográfico. Sua atuação principal foi a documentação das lutas de diversas entidades e movimentos sociais de esquerda. Por esta opção e pelo valor de seu trabalho obteve prêmios e reconhecimento como fotógrafo de lutas sociais.

Colaborou em publicações de movimentos populares no Brasil, na Inglaterra, na Alemanha e no México, além de boletins sindicais, blogs, sites, calendários e outros veículos da imprensa alternativa e popular. Em 2005 iniciou a documentação do Rio São Francisco, que resultou num livro publicado em 2010, O Rio São Francisco e as Águas do Sertão, sua obra autoral mais conhecida.

Sua vida material foi sempre muito simples. Além do equipamento fotográfico, possuía um computador portátil, um caderno de anotações, uma pequena biblioteca, um armário com seu arquivo de imagens. Está organizado por temas e em ordem cronológica, estimado em cerca de 25 mil negativos flexíveis e mais de 200 mil registros em meio digital.

Sobre sua atuação como fotógrafo, afirmava: “sou um comunista que se orienta pelos valores e pela teoria marxista de como interpretar e procurar transformar esse mundo (…) o que me motiva a fotografar é a luta de classes (…) antes de ser fotógrafo, sou um militante. A máquina nada mais é que um instrumento a serviço das mudanças sociais”.

As imagens do Acervo João Zinclar são, portanto, parte da ação de um trabalhador inserido nas lutas sociais, que soube identificar as transformações na cultura visual e no cenário político brasileiro nas décadas de 1980 e 1990, e perceber a necessidade de produzir registros das lutas populares sob a ótica de quem vive o movimento por dentro. No início do século 21 foi do analógico ao digital, sem receio de enfrentar os embates entre técnica e estética. Em 2010 começou a pensar em criar sites.

João era organizado. Em seu o computador há registros de estudos políticos e planos de trabalhos. Em 2012, criou uma pasta com o título Minha Exposição, onde armazenou seleções de imagens para uma mostra futura. No caderno rascunhava sobre sua trajetória, a necessidade de avançar no uso da fotografia como ferramenta política e seu respeito pelo trabalho de outros fotógrafos que se dedicavam à mesma temática: João Ripper, Douglas Mansur, Jesus Carlos, Sebastião Salgado e Dorothea Lange, entre outros.

Sobre seu próprio trabalho, declarava: “faço fotografia, faço denúncia (…), se não fosse a luta de classes talvez eu estivesse fotografando a obviedade do mundo (…) e o jornalismo diário convencional”.

Óbvio e convencional é algo que João não foi, mas é preciso dizer que se equivocou ao afirmar: “não sou artista, sou jornalista (…) não faço arte”. Embora tivesse suas razões para afirmar que “o sistema convencionou rotular de arte aquilo que é meio elitizado, a que ninguém tem acesso”, estava errado ao concluir que, por fazer da fotografia um instrumento de luta, precisava negar a dimensão artística de parte significativa de suas fotos, como forma de evitar os rótulos que traduzem arte como sinônimo de mercadoria.

Este é um equívoco (ou uma defesa) que alguns fotógrafos ativistas políticos cometem. Agem movidos pelo temor de que, ao fazer concessões ao conceito de arte, a fotografia de denúncia venha a ser dominada pela lógica mercantil e destituída de sua potência política.

O trabalho de João extrapola classificações convencionais, principalmente as imagens que retratam olhares. O olhar é relação, é no olhar do outro que reconhecemos e constituímos a própria existência como condição humana – que só se completa no outro. Os olhares captados pelas lentes de João são imagens que fazem pulsar a humanidade, são criações artísticas que fissuram o real. Isso as fortalece ainda mais como imagens de denúncia.

Mas, se no campo da criação artística João esquivou-se, no campo político sempre esteve passos à frente. Sua compreensão da memória como ação de resistência é um grande exemplo. Foi preciso, ao afirmar: “registro o instantâneo, amplio e coloco à disposição”. Esta declaração é a de quem percebeu que, além de fotografar, era necessário também ser um arquivista zeloso.

Neste aspecto, não poupou críticas às organizações de esquerda e movimentos sociais: “os movimentos pecam muito, são imediatistas, querem a foto só para o seu jornal daquela semana, daquele dia, existe um certo relaxo de parte de quem não deveria ser relaxado”. Tinha clareza do conceito de memória como projeto político: “A memória, o arquivo, a conservação deste arquivo, desta memória, fazem parte de uma história que tem incidência no presente e no futuro”.

Esta declarada compreensão está materializada em seu trabalho e acervo. Não apenas nas fotos, mas em cada anotação feita para identificar e dar acesso as imagens. Seu desejo pessoal de memória foi explicitado ao dizer: “gostaria que isso [meu trabalho] fosse visto por muita gente”.

O acervo produzido por João Zinclar é composto de alguns autorretratos e milhares de imagens de greves, debates, ocupações, mobilizações, passeatas, movimentos estudantis, festas, celebrações e marchas. Desde o início dos anos 1990 até o início de 2013 – no Brasil, Bolívia e Venezuela. Isso tudo registrado pela ótica de quem cresceu vendo o mar e aprendeu a respeitar o sertão; recusou-se a ser mera extensão de máquinas, tanto na fábrica como na mídia, e escolheu não se acomodar na camada confortável da obviedade – da vida, da política e da produção fotográfica.

São imagens que esgarçam as fronteiras entre criação e documentação jornalística, que registram inquietações sobre sonhos, frustrações, vitórias, projetos, desejos, contradições e as impermanências com as quais a vida, a luta, a militância e a memória se fazem.

Acervos não são guardiões apenas de objetos, também abrigam perguntas à espera de quem as enfrente. O acervo João Zinclar guarda indagações políticas e estéticas sobre inquietações que vêm se adensando nas últimas décadas, e hoje tomam as ruas sob formas ainda pouco decifradas.

Não é exagero observar que o Acervo João Zinclar é um dos mais importantes da história brasileira recente. Não apenas pela quantidade de imagens, nem pelo período histórico, mas principalmente por ter como agente produtor um olhar forjado ao longo de anos em estudos e leituras, no peso da rotina operária, nos improvisos da vida de andarilho, na autonomia do trabalho artesanal, nos embates da luta sindical, na formação foto-cineclubista, na luta política de esquerda e na troca de olhares vivida em metrópoles e vilarejos.

SERVIÇO

Exposição: João Zinclair, a Imagem Militante

De 15 de outubro a 17 de novembro de 2013

Vídeo: João Zinclair, a Imagem Militante

Lançamento: 18 de outubro de 2013 – 19 h.MIS Campinas

Rua Regente Feijó, 859, Palácio dos Azulejos, (19) 3733.8800

Curadoria: Sônia Fardin e Augusto Buonicure

Produção e expografia: Cleber de Moura Fé

Vídeo: edição de entrevista inédita registrada em 2009 pela equipe do MIS, realização de Sônia Fardin, Augusto Buonicore, Orestes Toledo, Manoel Silva, Chico Rossi, Adriana Maciel e Liane Richter.

 

*Sônia Fardin é historiadora, pesquisadora do Museu da Imagem e do Som de Campinas e doutoranda em Artes Visuais na Unicamp.

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