Água, Exclusão, Mercado e Cobrança: Um debate necessário
RESUMO — O modelo de exploração econômica no Brasil foi responsável por um progressivoestranhamento entre sociedade e meio ambiente, ao mesmo tempo que consolidou uma situaçãode grave injustiça social. Crescentes […]
Publicado 16/10/2006
RESUMO — O modelo de exploração econômica no Brasil foi responsável por um progressivoestranhamento entre sociedade e meio ambiente, ao mesmo tempo que consolidou uma situaçãode grave injustiça social. Crescentes níveis de escassez hídrica e desiguais oportunidades deacesso à água são sintomas dessa dupla contradição do desenvolvimento. A industrialização daeconomia ao longo do ultimo século permitiu a exploração dos recursos hídricos como ferramentaauxiliar de acumulação de capital e dominação política. As reformas econômicas em andamentoaprofundam a mercantilização da água através da privatização de serviços públicos. Mudançasinstitucionais vêm concomitantemente promovendo uma nova epistemologia de gestão eenfatizando o espaço hidrológico como contexto de representação e intervenção. A principalnovidade é a cobrança pelo uso de água bruta, a qual, o atribuir valor monetário à água, apenasreproduz a mesma lógica anterior de mercantilização dos recursos naturais. Cobrança,regulamentação e privatização atendem basicamente aos interesses de uma aliança estratégicaformada entre forças de mercado e ambientalistas conservadores que se beneficiam das distorçõessócio-ambientais do desenvolvimento econômico. Passado e presente demostram que osproblemas da água no Brasil têm origem na contradição básica entre relações e condições deprodução.
ABSTRACT — (Water, Exclusion, Market and Charges: A Crucial Debate) The model ofeconomic activity in Brazil has been responsible for an increasing disconnection between societyand environment, at the same time that consolidated a deeply unjust social structure. Growinglevels of water scarcity and uneven access to water resources are symptoms of that twofoldcontradiction of development. The industrialisation of the economy in the last century allowed forthe exploitation of water resources as a subsidiary instrument for capital accumulation andpolitical control. The ongoing economic reforms expand the commodification of water throughthe privatisation of public utilities. Concomitantly, institutional reforms have promoted a newepistemology of environmental management that emphasises the hydrological space as thecontext of representation and intervention. The main innovation is the adoption of water usecharges, which assigns monetary value to water and, in consequence, merely reproduces theprevious rationale of natural resources commodification. Charges, regulation and privatisationessentially satisfy the demands of a strategic alliance established between market forces andconservative environmental activists, who benefit from the socio-environmental distortions ofeconomic development. Past and present demonstrate that water resource problems in Braziloriginate from the basic contradiction between the capitalist relations and conditions ofproduction.
Palavras-chave: cobrança pelo uso da água, justiça ambiental, Paraíba do Sul.
1 Engenheiro agrônomo (UFRGS), mestre (Oxford) e doutor (Aberdeen) em gestão ambiental, Senior Policy Officer, Scottish EnvironmentProtection Agency (SEPA), Erskine Court, Castle Business Park, Stirling, FK9 4TR, Escócia, Reino Unido. Fone: 0044 1786 452594 Fax: 00441786 446885, [email protected], www.sepa.org.uk
I Simpósio de Recursos Hídricos do Sul-Sudeste (2006)
INTRODUÇÃO
Esse texto discute algumas questões básicas da ecologia política dos recursos hídricos à luz deum enfoque histórico-geográfico e convida para uma análise crítica sobre passado, presente e futurodo setor no Brasil. É inegável que existe uma crescente tomada de consciência a respeito deimpactos ambientais e recorrentes situações de escassez hídrica, poluição e enchentes em diferentespartes do país. Porém, o debate, na maioria das vezes, tem se restringido a processos hidrológicos ouinstitucionais, sem estabelecer uma relação clara entre exploração econômica do meio ambiente eexploração político-econômica da sociedade. Deixa-se, assim, de reconhecer que a degradaçãoambiental causada pelas exigências do desenvolvimento nada mais é do que a outra face dadegradação social causada pela exploração da maioria da população. Ignora-se que o modeloeconômico dominante tem levado a um progressivo estranhamento entre sociedade e meio ambiente,ao mesmo tempo que tem provocado um distanciamento entre grupos sociais. Historicamente, essadupla exploração (i.e. exploração dos recursos hídricos e da exclusão social) sempre serviu aosinteresses agro-industriais como instrumentos para acumulação de capital e poder político.
Os problemas dos recursos hídricos se caracterizem profunda e indissociavelmente comoquestões sócio-ambientais, tendo origem na contradição básica entre as relações de produçãocapitalista e as condições ambientais de produção (OConnor, 1998). O avanço da produçãocapitalista requer o tratamento dos recursos naturais como mercadoria passível de apropriaçãoprivada, ou seja, com a expansão da influência do capital a natureza passa a ser tratada comomercadoria [c o m m o d i t y] (Castree, 1995). A comodificação da natureza é determinada porcircunstâncias locais e não ocorre automaticamente, mas através de lutas políticas e conflitos emdiferentes níveis e escalas espaciais (Robertson, 2002). Invariavelmente, a comodificação resulta, por um lado, em acumulação de riqueza nas mãos de poucos, e, por outro lado, em degradaçãoambiental e injustiça social. A degradação ambiental ocorre tanto em períodos de crescimentoeconômico, quanto em fases de crise, porque quando a economia cresce, mais recursos naturais sãonecessários, mas quando a economia se arrefece, há uma pressão extra para facilitar o acesso aosrecursos como forma de fomentar um novo ciclo de crescimento (Kovel, 2002).
As próximas páginas irão argumentar que o ponto de partida para se entender a problemáticada água no Brasil é precisamente a análise da produção e reprodução econômica implantadas emuma situação de capitalismo industrial periférico. O controle dos recursos hídricos foi e continuasendo um dos pilares da industrialização e da urbanização no Brasil na medida em que responde a monumentais demandas por água e energia elétrica. Sob o imperativo do desenvolvimento,financiamentos externos tiveram um papel importante para tornar o setor de recursos hídricos emcomponente essencial da infra-estrutura e, assim, detentor de alto valor de mercado. A históriaregistra o esforço épico empregado na construção de grandes barragens e redes de distribuição, oqual envolveu um exército de cientistas, engenheiros e operários. Esta transformação da geografiada água ocorreu na escala local das bacias hidrográficas, mas refletiu influências diretas detecnologias, equipamentos e racionalidades importadas dos países capitalistas centrais. O textoconcluirá que os efeitos colaterais da comodificação dos recursos hídricos, tanto no passado, quantono presente, têm sido uma grossa negligência com impactos ambientais (e.g. destruição de habitats,modificação do regime sazonal de vazões e interrupção de processos ecológicos), produção deconflitos, desagregação social e desigual atendimento da população.
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E RECURSOS HÍDRICOS NO BRASIL
Existe uma permanente e dialética interação entre a atividade humana e o meio ambiente, aqual inclui, como um de seus componentes básicos, a relação de interdependência entre sociedade erecursos hídricos. A água é essencial a incontáveis processos naturais e, ao mesmo tempo, é parteintegral das relações sociais, não sendo possível dissociar a circulação das águas da interferênciahumana, nem ignorar as circunstâncias hidrológicas de comunidades e civilizações. Conforme Swyngedouw (2004), a circulação de água descreve um ciclo que, ao invés de ser puramentehidrológico, é fundamentalmente hidrossocial. Natureza e sociedade se transformam em uma novacategoria sócio-natural [soc ionatur e] que é o resultado de transformações em configuraçõespreexistentes que são em si mesmas naturais e sociais. A própria paisagem demonstra esse caráterdialético entre o social e o natural, uma vez que o espaço hidrográfico [water landscape ouwaterscape] é produto do uso e manipulação de água pela sócio-natureza. O mundo descreve, assim,um processo de metabolismo perpétuo no qual processos sociais e naturais se combinam naprodução de sócio-natureza, metabolismo esse que nunca termina, mas é altamente politizado,contestado e contestável.
A intervenção e transformação do ciclo hidrossocial para a satisfação de demandas humanase expressão de valores culturais pode ser descrito como desenvolvimento hídrico. Sob pressão daeconomia capitalista, o desenvolvimento hídrico gradualmente incorpora elementos hidrossociaiscom o propósito de facilitar a acumulação de capital. Em outras palavras, o processo de desenvolvimento econômico quando determinado pela necessidade de produção e circulação decapital resulta em uma crescente comodificação da água, seja através de capitais investidos em infraestrutura, seja por meio da provisão de água e energia elétrica às atividades produtivas. A transformação da geografia da água para atender aos imperativos do crescimento econômico acabapor modificar não somente as características físicas, químicas e biológicas dos recursos hídricos, mas produz uma estratificação de oportunidades sociais que é típica do capitalismo. Ou seja, osbenefícios do expansão hídrica são apropriados pelas parcelas mais avantajadas da sociedade, mas asconseqüências negativas do desenvolvimento afetam especialmente as populações mais pobres (e.g.comunidades expulsas dos locais destinados à construção de barragens).
Esse padrão internacional de expansão do capitalismo foi claramente reproduzido no Brasil, especialmente ao longo do Século 20, com a industrialização e a modificação dos padrões deprodução e consumo da sociedade. A expansão do mercado nacional foi responsável por umaprogressiva comodificação dos recursos hídricos e geração de conflitos sociais e ambientaiscrescentes. Isso sugere que os problemas sociais e ambientais do desenvolvimento e gestão de águassão, na verdade, problemas do próprio desenvolvimento brasileiro. Fazendo uma breveretrospectiva histórica, nas primeiras décadas do século (1900-1930) a economia brasileira contavacom uma base fundamentalmente agrícola e dependente de café, borracha e cacau como principaisprodutos de exportação. A abolição da escravidão e, especialmente, a chegada de imigrantesitalianos, japoneses e alemães, entre outros povos, passaram a contribuir para a emergência de ummercado interno e progressiva urbanização. Nesse período, a população chegou a 17,5 milhões depessoas, com 80% ainda vivendo na zona rural. O serviço público de abastecimento de água eracircunscrito às áreas mais aquinhoadas dos maiores centros urbanos. Grande parte do abastecimentoera controlado por empresas particulares, muitas delas estrangeiras. Havia apenas algumas poucasempresas de geração e distribuição de energia, com destaque para Light no Rio de Janeiro e AMFORP em São Paulo (Kelman et al. 1999). A irrigação agrícola se restringia à produçãomeridional de arroz, a primeira cultura a ser produzida de modo industrial. A região Nordeste eracastigada por crônica insegurança hídrica em razão da inadequada organização sócio-econômicafrente ao ambiente semi-árido.
Com a revolução populista de 1930, a oligarquia agrária passa a dar lugar uma emergenteburguesia comercial e industrial (mantendo, todavia, o estilo político autoritário). Em razão dadecrescente lucratividade da produção cafeeira, o capital acumulado pela exportação agrícola passoua ser investido na nascente indústria nacional (Furtado, 1997). A liderança do Estado foi fundamental para garantir altas taxas de crescimento da economia, chegando a 7% ao ano entre1945-1980 (OECD, 2001). Parte importante do processo de industrialização, a expansão da infraestrutura hídrica incluiu uma reconfiguração da estrutura legal e administrativa que conduzissem ainvestimentos contínuos. O Código de Águas, sancionado em 1934, estabeleceu as bases legais paraa construção e operação de novas obras de infra-estrutura hídrica. Quase toda a geração privada dehidreletricidade foi nacionalizada na década de 1950 e o setor elétrico se valeu de diversas formas deincentivo para expandir a potência instalada de 615 MW em 1930 para aproximadamente 60.000MW em 1999 (Santos e Freitas, 2000). Atualmente, existem 573 grandes unidades hidrelétricasinstaladas no país, mas grande parte da expansão se volta para os rios amazônicos, onde novosempreendimentos apresentam um potencial incalculável de degradação sócio-ambiental.
A partir de 1950, diversas política públicas estimularam o crescimento da área de irrigação auma taxa de 30% por década (Rodriguez, 2000). A irrigação foi um dos pilares da Revolução Verde,que fez do Brasil um dos principais exportadores do agronegócio mundial. Por outro lado, aprodução irrigada é responsável por severos impactos ambientais e crescentes conflitos pelo uso deágua. As distorções produzidas pela irrigação são mais evidentes no semi-árido nordestino onde,apesar de diversos projetos e da criação de DNOCS (1919), CODEVASF (1948) e SUDENE (1959), a escassez de água continuou e continua a afetar numerosos contingentes da população regional. Naverdade, o problema da seca decorre da estrutura agrária nordestina, onde terra e águahistoricamente se concentraram nas mãos de uma oligarquia política (Hall, 1978). Ainda hoje osreservatórios de água se concentram em terras de grandes proprietários, deixando ao redor de 92% das famílias de agricultores sem acesso à irrigação (IBGE, 1996, citado em Lemos e Oliveira, 2005). Um relatório confidencial chega a afirmar que apenas 4% da iniciativa de combate à seca chega àsmãos das pessoas atingidas (mencionado em Calvert e Reader, 1998). Apesar de notóriosdesmandos, políticos e empresários preferem lançar novos e mais dispendiosos programas deirrigação, ao invés de apurar responsabilidades e punir culpados (Ioris, 2001).
Semelhantes distorções sócio-naturais foram produzidas no setor de abastecimento público deágua durante a fase de urbanização e industrialização. A partir de 1934, o governo federal passou ainterferir cada vez mais nos sistemas municipais de abastecimento através do financiamento dascompanhias públicas locais (por meio do DNOS, criado em 1940). O grande salto no setor ocorreuem 1971 com o lançamento do plano nacional de saneamento (PLANASA), o qual centralizou maisainda o sistema de financiamento por meio de transferências de verbas do governo federal paracompanhias estaduais. Os municípios foram induzidos a ceder a operação às companhias estaduais por meio de contratos com 30 anos de vigência, muitos dos quais estão expirando na presentedécada (ver abaixo sobre as conseqüências do término dos contratos nos próximos anos). Entre 1970e 1990, a taxa de abastecimento de água expandiu de 60,5% para 86,3% dos domicílios e a taxa deesgotamento aumentou de 22,2% para 47,9% (IPEA, 2004). Conduto, devido a sérios problemaspara manter tarifas ajustadas à inflação, receber pagamento de investimentos contratados e manter acapacidade de expansão de serviços, o nível de investimento no setor foi progressivamente decaindo(i.e. 0,34% do PIB nos anos 1970s para 0,28% nos anos 1980s e apenas 0,13% nos anos 1990s). O PLANASA foi formalmente extinto em 1992 e, desde então, o setor passou a mover em direção auma maior flexibilização dos serviços e ser mais influenciado por regras de mercado.
Os serviços de água e esgoto constituem, atualmente, um dos setores públicos com maiordemanda por investimentos, uma vez que quase a metade da população não é ainda atendida porsistemas de esgotos e um quarto ainda carece de serviços de distribuição de água potável. Comoquase 60% dos esgotos de todo o país são lançados, sem tratamento, diretamente nos mananciaishídricos, doenças relacionadas à falta de saneamento são responsáveis por grande parcela dasinternações hospitalares no país (Camargo et al. 2002). Para tornar a situação ainda mais séria,existe uma nítida estratificação social na prestação de serviços de água e esgoto, já que grupos demaior renda são mais bem servidos, em especial em termos de coleta e tratamento de efluentes.Enquanto 61,2% da população com renda acima de cinco salários mínimos tem serviços de coleta deesgoto, apenas 24,2% da população com renda abaixo de dois salários mínimos é atendida (Serôa daMotta e Rezende, 1999). Para reverter esse quadro, criado por anos de negligência e máadministração, estima-se que seriam necessários investimentos de 0,45% do PIB ou R$ 6 bilhões porano por duas décadas (IPEA, 2004).
O modelo de desenvolvimento hídrico descrito acima começou a ser questionado a partir de1990, quando o governo passou a ser, cada vez mais, constrangido por um descontrole do déficitpúbico, escalada inflacionária, desorganização da produção e crise de hegemonia política. Como emmuitos outros países, a resposta a tais questões foi uma redefinição do papel do Estado, traduzidapor flexibilização fiscal e macroeconômica. Fazendo eco a exigências de organismos internacionais,criaram-se a partir de então condições mais favoráveis para atrair investidores estrangeiros, emparticular para a privatização de bancos e empresas públicas. O setor de abastecimento esaneamento, assim como irrigação e energia elétrica, passou a ser pressionado por políticas públicasliberalizantes e pela busca de novas alternativas para acumulação de capital. Tais mudanças têmrepresentado apenas modestos resultados em termos de crescimento da produto nacional às expensas de instabilidade, deterioração das condições de trabalho e perpetuação de injustiças (CEPAL, 2000),uma vez que não alteram a lógica fundamental de exploração sócio-natural. Pelo contrário, as novasestratégias de apoio às forças de mercado têm servido para aprofundar a comodificação da natureza,o que leva, invariavelmente, à multiplicação de resultados injustos e insustentáveis.
A PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL
Nas últimas duas décadas, a comodificação dos recursos hídricos tem sido influenciada pelosprincípios neo-clássicos (neo-liberais) de eficiência de mercado e empreendedorismo. O neoliberalismo vem forçando a uma gradativa transformação de um modelo de desenvolvimentocapitaneado pelo Estado, típico do período pós-guerra, para um novo modo de regulação quepromova desnacionalização, inovação técnica, subordinação das iniciativas sociais a prioridadeseconômicas, assim como novas formas de organização e participação política. Sob inspiração neoliberal, tem sido propalada a idéia de que investimentos privados são indispensáveis para melhorar oacesso e o nível de serviços. Segundo Bakker (2002), esse processo teve início não no mercado, masfoi proposto pelo Estado através de um processo de re-regulação ao invés de de-regulação, o qualnão modifica as bases históricas de exploração de recursos e exclusão social, mas gera novasoportunidades econômicas embutidas na premissa de que o mercado é mais eficiente que osgovernos no provimento de serviços básicos relacionados à água. A perspectiva de escassez deágua, falta de recursos públicos e a tese da falência do Estado emergiram na última década doSéculo 20 como poderosas justificativas para a expansão da esfera dos mercados como umainstituição social para a alocação de recursos hídricos (Bakker 2002: 772).
A crise fiscal do Estado brasileiro tem levado à adoção de diversas estratégias liberalizantes,tais como o chamado project finance, o qual prevê a entrada agressiva de empresas privadas emáreas de infra-estrutura e serviços básicos. No setor elétrico, empresas privadas foram incentivadas,financeira e institucionalmente, a construir, operar e vender energia a compradores predeterminadosou até mesmo em um mercado livre. Não por acaso, existe uma forte pressão de empresários,jornalistas e políticos sobre os órgão ambientais com vistas a acelerar a instalação de novosempreendimentos. Em muitos casos (e.g. UHE Cana Brava em Goiás) bancos nacionais einternacionais financiaram os investimentos em hidreletricidade e se tornaram sócios dos contratosde fornecimento. Ou seja, a fase neo-liberal da economia brasileira tem levado a uma renovadamercantilização do valor comercializável dos recursos hídricos por meio de transações de mercadobaseadas no controle da água.
A venda de empresas públicas do setor hidroelétrico é outro elemento fundamental dacomodificação da água. A privatização foi inicialmente estimulada pela redução de investimentosgovernamentais nos anos que precederam as licitações. Do mesmo modo, o governo passou aoferecer financiamentos por meio de banco públicos (US$ 15 bilhões entre 1995-2001) e estima-seque ao redor de 48% do pagamento feito pelos compradores privados venha dos próprio governo,especialmente via BNDES. O governo passou também a aceitar clausulas cláusulas contratuais queprotegem as empresas privatizadas contra oscilações de câmbio, além de permitir o reajuste detarifas de eletricidade acima da inflação e tolerar a eliminação de subsídio a famílias de baixíssimarenda (Bello, 2005). A legislação foi devidamente ajustada para eliminar a diferença entreinvestidores nacionais e estrangeiros, permitindo assim que os interessados pudessem participar delicitações por conta própria ou em consórcios. Com tantos favores oferecidos pelo governo, não deve ser difícil de se compreender como algumas das empresas privatizadas conseguiram umaumento circunstancial de produtividade e aumento de receita.
Contudo, a melhoria dos indicadores comerciais das empresas privatizadas não esconde aredução na taxa de investimentos e no pagamento de impostos pelos novos donos (Anuatti-Neto etal. 2003). A privatização resultou, na maioria dos casos, em tarifas mais elevadas aos consumidores,suspeitas de corrupção, instabilidade no fornecimento e desemprego de trabalhadores (i.e. 53.230postos de trabalho foram perdidos entre 1995 e 1999, segundo dados do Ministério do Trabalho,citado por Anuatti-Neto et al. 2003). Após mais de uma década, a conclusão a que se chega é que aprivatização do setor de hidreletricidade tem sido tecnocrática, impopular e pouco transparente. Aracionalidade do mercado tem também inibido a capacidade do governo de responder às demandasde longo prazo da sociedade. Importante ressaltar que o serviço elétrico ainda deixa de atender a12% da população e o consumo médio de eletricidade é de apenas 200 kwh/ano (80º no mundo).Existem dificuldades de se avançar em programas de conservação de energia, entre outras razões,porque interessa às empresas de fornecimento aumentar a venda de energia ao invés de reforçar astaxas de eficiência. A racionalidade do lucro determina que apenas seja considerado o horizonte decurto prazo, o que contribui pra manter uma situação de ineficiência pela falta de programasestratégicos (i.e. estima-se em 15% as perdas de energia no sistema). Além disso, a privatização e oenfraquecimento do papel do governo aumentam os riscos de falha no sistema, como ocorreudurante o apagão em 2001, quando um evento hidrológico mal administrado se transformou emconflito político e drama social.
Também o setor de abastecimento de água e saneamento básico desperta o interesse deempresas atraídas para sua privatização (algumas das principais multinacionais já se instalaram nopaís, como Lyonnaise des Eaux, Générale des Eaux e Thames Water). Contudo, os serviços de águae esgoto têm enfrentado maiores dificuldades do que o setor hidrelétrico para incorporar empresasprivadas em razão de impedimentos legais e institucionais (Vargas e Lima, 2004). O problemafundamental é que a Constituição de 1988 manteve uma disputa entre estados e municípios emrelação à propriedade dos serviços, conflito esse que é mais aguçado em áreas metropolitanas ondeas redes têm maior interconexão (Conforto, 2000). Até o momento, a privatização tem basicamentese restringido a contratos de operação terceirizada, ao invés da venda definitiva de empresas, comono setor elétrico. Contudo, ainda que em menor escala que na hidreletricidade, a privatização dosserviços de água e esgoto tem produzido distorções similares. Avaliações empíricas detectam que aentrada de operadores privados não tem aumentado o volume de investimentos, nem contribuídopara atender àquelas faixas da população que foram esquecidas no passado. Pelo contrário, adesigualdade entre ricos e pobres aumenta com a privatização, uma vez que as empresas preferemoperar nos bairros com consumidores de maior renda. Mesmo relativamente modesto, o processo deprivatização tem criado instabilidade, aumentos de tarifas, alegações de corrupção e complexasdisputas jurídicas (Castro, 2004; Mello, 2001; Vargas, 2005).
Existem 318 empresas estaduais e municipais de abastecimento e saneamento no país, masapenas 3% foram totalmente privatizadas (vendidas) até o momento (segundo Serôa da Motta,2004). Para deslanchar a privatização, além de mudanças na Constituição, falta a aprovação de umalegislação específica, o que ainda deve se demorar por muitos anos no Congresso Nacional (o maisrecente Projeto de Lei foi submetido pelo executivo em 2005, mas não há ainda perspectivas deentrada na pauta de votações). Porém, é importante ressaltar que a confusão regulatória no setor desaneamento, ao invés de afastar o interesse de operadores privados, tem sido vista como umaoportunidade heterodoxa para o avanço da privatização.1 Enquanto os legisladores deixam delegislar, os investidos privados aproveitam para firmar contratos com prefeituras que, após o términodos contratos com as empresas estaduais (estabelecidos ainda sob a égide do PLANASA), passarama receber de volta a responsabilidade de operar os serviços municipais. Ou seja, os prefeitos vêmsendo tentados a tomar para si a responsabilidade direta dos serviços e, como tem ocorrido em diversas cidades, firmar acordos com a iniciativa privada. Em outras palavras, o vácuo legal propiciaque se estabeleçam concessões dos municípios a empresas nacionais e internacionais de saneamento. Pode-se chamar a esse processo de verdadeira privatização pela porta dos fundos.
Em resumo, os setores de geração hidrelétrica e os serviços de água e esgoto passaram de umasituação de controle municipal e operação privada, no começo do Século 20, para um crescentecontrole pelo governo federal e operação estatal após a Revolução de 1930. Tal situação começou ase reverter na década de 1990, quando ambos os setores descreveram um movimento circular devolta à descentralização e operação privada (Baer e McDonald, 1997). Todas as três fases dedesenvolvimento hídrico no país (i.e. privatização, nacionalização, re-privatização) foramimpulsionadas pela conversão da água em uma mercadoria comercializável e sua incorporação àlógica de acumulação de capital. Durante a fase de substituição de importações (1930s-1980s),sucessivos governos autoritários garantiram as condições necessárias para a expansão da infraestrutura e dominação política. Os usuários dos serviços e a população em geral foram mantidasafastados do projeto nacional de desenvolvimento hídrico, apenas contribuindo como mão de obranos canteiros de obras ou como clientes das empresas de água e eletricidade. Com a reforma neoliberal dos anos 1990s, a mercantilização da natureza se deslocou do raio de açãopredominantemente estatal para novas oportunidades de utilização da água como fonte de lucro (emespecial, pela aquisição facilitada de empresa públicas). Simultaneamente, uma nova linguagem degestão ambiental tem levado a novas formas de alienação do público e negação das contradiçõessócio-ambientais do desenvolvimento econômico. O clímax da comodificação ocorre quando acaptação da água de mananciais passa a ser licenciada e cobrada volumetricamente, podendo ser,assim, transformada em mercadoria par e x e l l enc e, passível de ser rotulada, medida ecomercializada, o que é analisado a seguir.
REGULAÇÃO AMBIENTAL E A NOVA DIMENSÃO ECONÔMICA DA ÁGUA
Conforme resumidamente descrito acima, o controle e a manipulação dos recursos hídricosforam elementos fundamentais para a industrialização e urbanização no Brasil. Um esforço nacionalcomandado pelo Estado foi responsável pela construção de grandes barragens, regularização de riose controle do regime hidrológico com o propósito de fornecer energia elétrica, água potável e meiospara irrigação. Seguindo o padrão excludente do desenvolvimento brasileiro, o controle da águaserviu como instrumento auxiliar de expansão econômica, ainda que a riqueza gerada ficasse acumulada nas mãos de poucos. Em razão de impactos ambientais e falta de compromisso com orestante da população, o desenvolvimento hídrico gradualmente transformou uma condição derelativa abundância em relativa escassez. Com recursos progressivamente mais escassos e oagravamento da degradação ambiental em todas as regiões brasileiras, os custos de produçãopassaram a crescer proporcionalmente. As contradições do progresso passaram a requerer novosinvestimentos em infra-estrutura e na recuperação de rios e aqüíferos. Houve também uma crescentepressão das classes médias da sociedade, as quais começaram a sentir diretamente o efeito dosimpactos ambientais que antes afetavam principalmente as parcelas mais pobres da população. Paralelamente, empreendedores privados passaram a buscar novas alternativas de acumulação queaprofundassem a manipulação dos recursos hídricos segundo mecanismos de mercado.
Esse contexto de demandas e contradições serviu como catalisador de uma reconfiguraçãoinstitucional e modernização dos procedimentos de gestão de recursos hídricos na década de 1990. Uma estrutura de regulação específica foi introduzida em 1997 com a aprovação da Lei da Política Nacional dos Recursos Hídricos (9433/1997), a qual institui o Sistema Nacional de Gerenciamentode Recursos Hídricos (SINGREH). Enquanto no passado a ênfase recaía sobre a expansão da infraestrutura, os novos métodos de intervenção passam a exigir uma radical flexibilização da atuação doEstado por meio de instrumentos supostamente inovadores. A nova lei também determinou, entreoutras medidas, que a água tem valor econômico e que a cobrança pela água bruta (i.e. uso da águade mananciais) serve para indicar aos usuários o seu valor real. Em 2005, depois de um longoprocesso de discussão, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos aprovou duas Resoluçõesdefinem os detalhes operacionais da cobrança a ser aplicada em todos os rios de domínio federal(Resolução No. 48, que estabelece critérios gerais para a cobrança pelo uso dos recursos hídricos, eResolução No. 49, que estabelece as prioridades para aplicação dos recursos provenientes da cobrança).
Segundo a legislação, a captação de água e o lançamento de efluentes estão agora sujeitos àoutorga prévia junto ao órgão regulador (federal ou estadual) e devem pagar uma taxa anualproporcional aos custos sociais criados pelas externalidades econômicas (Tolmasquim, 2001).Formalmente, a cobrança tenta remover ineficiências relacionadas ao antigo paradigma de gestão,o qual conduzia ao desperdício, uma vez que a água estava disponível gratuitamente aos usuários (Kelman, 2000). Tal justificativa se baseia no princípio econômico neo-clássico de que incentivos demercado promovem uma eficiente alocação e uso de recursos (Winpenny, 1994), de modo que,dependendo do preço pago pelos usuários, se estabelece um nível racional e sustentável de utilização(Garrido, 2005). A cobrança é também defendida como alternava mais eficiente do que a tradicionalarrecadação de impostos para financiar ações de regulação e recuperação ambiental (Campos eStudart, 2000).
A adoção de instrumentos de mercado (ou simuladores de mercado) para o controle dosrecursos hídricos no Brasil, como no caso da cobrança pelo uso da água de mananciais, foi mais umamedida importada dos países capitalistas centrais e trazida ao país como panacéia para os problemasde gestão ambiental. Na prática, porém, apesar de uma nova estrutura institucional envolvendodezenas de agências e milhares de técnicos, tem sido possível verificar apenas mudanças superficiaisno tratamento das questões de recursos hídricos. Como no passado, concentram-se esforços nocontrole tecnocrático do uso da água, ao invés de se questionar os problemas sociais e ambientaiscriados pelo próprio desenvolvimento econômico. A despeito de canais aparentemente democráticosde representação (notadamente os comitês de bacia), a nova estrutura de gestão é dominada por uma aliança estratégica entre grupos ambientalistas conservadores e empresas privadas beneficiárias deverbas públicas (particularmente empreiteiros e consultores). Essa aliança tem conseguido preservare ampliar os privilégios sócio-econômicos historicamente estabelecidos no setor hídrico pelanegação sistemática da vinculação entre melhorias na gestão de águas e mudanças políticoeconômicas amplas e profundas. Em outras palavras, o antigo paradigma de desenvolvimento hídrico foi transferido para os atuais procedimentos de gestão de forma instrumentalizada e semavaliação crítica.
A tentativa de dissociar a agenda de recursos hídricos das relações estruturais de poderdemonstra que a reforma em curso não tenta responder aos graves problemas sociais e ambientaisrelacionados à água, mas, pelo contrário, busca minimizar conflitos e manter a acumulação decapital (como demonstrado por Velencio e Martins, 2004). Nesse sentido, a insistência no valoreconômico da água constitui uma das grandes falácias da política ambiental no Brasil, porque, aoapresentar demagogicamente a cobrança pelo uso da água como benéfica a toda a sociedade, fazuma defesa abstrata do meio ambiente, deixando de indicar quem no passado foi responsável porsua degradação e quem ganha agora com as novas ferramentas de gestão. Para convencer apopulação de que a cobrança é um instrumento vantajoso a toda a sociedade, uma sofisticadapolítica de mistificação vem promovendo a idéia que todos são igualmente culpados pela degradação do meio ambiente, mas encobrindo o fato de que os benefícios do desenvolvimentohídrico foram e são desigualmente apropriados pelos diferentes grupos sociais. Ou seja, essamistificação omite que, em uma sociedade com seríssimas desigualdades sócio-econômicas, umacobrança universal cria um canal de perpetuação de injustiças, uma vez que os recursos arrecadadas pela cobrança atendem principalmente aos interesses de setores econômicos hegemônicos.
Localizado no Sudeste, a bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul representa uma das maisnítidas provas desta relação entre cobrança e renovada comodificação da água. Historicamente, aágua sempre foi objeto de profunda comodificação no Paraíba do Sul por meio da intensaindustrialização e crescimento urbano, particularmente para abastecer a cidade do Rio de Janeiro(envolvendo a transferência de 2/3 da vazão em seu leito médio) e para manter a geração de 1.500MW de hidreletricidade (existem projetos para 2.300 MW adicionais). As contradições dodesenvolvimento deixaram uma séria herança de degradação ambiental na bacia do Paraíba do Sul, aqual tem sistematicamente levado a conflitos entre comunidades locais, autoridades e empresas (IPPUR, 2004). Uma vez que as autoridades foram e são incapazes de resolver os problemas sócioambientais da bacia, o Paraíba do Sul foi visto como área prioritária para a implementação dacobrança pelo uso da água. A metodologia de cálculo adotada pelo Comitê da Bacia (CEIVAP) em 2003 incluiu três variáveis: volume captado, percentagem efetivamente consumida e volumerequerido para diluição de efluentes, o que resulta em valores médios de R$ 0,08/m3 para captação eR$ 0,02/m3 para consumo (Braga et al. 2005).
Conforme valores publicados pela Agência Nacional de Águas (ANA), o total de recursosarrecadados em 2004 foi de R$ 4,48 milhões (excluindo a arrecadação pelo uso da água parageração de energia hidrelétrica).3 Como 67,45% da arrecadação provém das companhias deabastecimento de água (somente 32,43% é pago pelo do setor industrial), fica claro que a cobrançaimplantada no Paraíba do Sul é um instrumento que divide a conta da recuperação ambiental comtoda a população. Haja vista que os usuários de serviços públicos arcam com a maior parcela decontribuição, o ônus da (futura) recuperação ambiental é distribuído com toda a sociedade, ao invésde ser cobrada àqueles que foram diretamente responsáveis pela degradação do ambiente aquático(indústria e agricultura, em particular). Pesquisa recente conduzida por Féres et al. (2005) demostraque os grandes grupos econômicos locais percebem que a cobrança pelo uso da água, além de não ameaçar a rentabilidade econômica, pode ser altamente instrumental aos seus interesses, já que permite a recuperação do passivo ambiental, permite melhorar a imagem externa das empresas e criaoportunidades inéditas de negócio (i.e. acumulação de capital). Por outro lado, pequenosempresários e usuários individuais têm uma percepção muito menos favorável e mais céptica dacobrança. Isto confirma a tese de que a cobrança pelo uso da água foi proposta pelas estruturas depoder político-econômico como mais um mecanismo que permite a manutenção de uma realidadeexcludente e injusta.
Talvez a faceta mais perversa da cobrança seja que, ao deixar explícito o valor monetário dos recursos hídricos, criam-se incentivos indiretos a agentes privados para se envolverem em negóciosrelacionados ao uso da água. Tais incentivos são mais evidentes no setor de abastecimento esaneamento público, o qual, como mencionado acima, apresenta uma imensa necessidade de novosinvestimento em razão do envelhecimento da rede de distribuição e crescente expansão urbana.Como investimentos nesse setor são normalmente pouco atraentes para investidores capitalistas, emrazão da necessidade de imobilização de vastas somas de capitais, o governo vem acenando com oaporte das receitas da cobrança para expansão e operação da infra-estrutura hídrica (ver, porexemplo, Frondizi, 2004). Assim, a cobrança pelo uso da água pode ser revertida em investimentonas empresas locais de água e esgoto, tornando-as mais atraentes aos agentes privados que, dessemodo, precisam mobilizar menos capital na recuperação do sistema de abastecimento e saneamento.Esse mecanismo é claramente defendido no Plano Nacional de Recursos Hídricos, lançado em 2006 (especialmente em seu segundo volume), assim como foi proposto pelo Projeto de Lei 5296/2005 que os recursos da cobrança poderão ser utilizados como fonte ou garantia em operações de créditopara financiamento de investimentos.
Nesse sentido, o financiamento dos sistemas de abastecimento de água e saneamento básicocom recursos da cobrança constitui um dos mais sofisticados mecanismos de vinculação entreinstrumentos econômicos de gestão ambiental e circulação de capital. O exemplo mais concreto éatualmente dado pelo Programa de Despoluição de Bacias Hidrográficas (PRODES). Esse programa foi lançado em 2001 pela ANA e garante o pagamento pelo tratamento de esgoto, dando condiçõesfinanceiras para que o provedor dos serviços (público ou privado) realize a expansão da infraestrutura local. As normas da ANA requerem que, para se tornar elegível aos recursos do PRODES,em primeiro lugar a bacia deve implementar um sistema de cobrança. No caso da bacia do Paraíbado Sul, o contrato estabelece que a cobrança pelo uso da água responde por 25% e o PRODEScontribui com 75% dos investimentos em tratamento de esgoto (Pereira, 2003). Desse modo, o programa abre novas oportunidades para o envolvimento do setor privado ao oferecer condiçõesmais vantajosas para a privatização de empresa públicas. Seguindo a racionalidade neo-liberal danova legislação ambiental brasileira, não causa a menor surpresa que o planejamento pago pelaANA para apoiar a implementação da cobrança no Paraíba do Sul estabeleça uma relação diretaentre os benefícios da cobrança e a privatização dos serviços municipais de saneamento (como podeser visto em Fundação Coppetec, 2002: p. IV-2).
Fazendo uso da cobrança, o poder público tem, assim, mais um instrumento de arrecadação,além dos impostos ordinários, para dividir a conta da reestruturação dos serviços públicos erecuperação ambiental com toda a população, mesmo com aqueles que no passado nunca tiveramacesso a serviços de água e esgoto. Com o apoio explícito do governo através de programas comoPRODES, a operação dos serviços públicos se torna mais atraente e menos arriscada a investidoresprivados. Contudo, a questão crucial é que, tal qual as iniciativas do passado, os atuais investimentosem saneamento deixam sempre de atender à maioria da população brasileira (Budds e McGranahan,2003). As novas políticas públicas mantêm inalterada a mesma lógica de exclusão social quefavorece os interesses daqueles que controlam as relações e os meios de produção. Por todas essasrazões, a cobrança pelo uso da água é um solução mistificadora que responde a um falso problema,ou seja, a geração de recursos para manter um modelo autoritário e excludente de desenvolvimentohídrico. A cobrança pela captação de água e lançamento de efluentes termina reforçando acomodificação da natureza e aprofunda a inserção do ambiente aquático na circulação de capital.Mais uma vez, o ciclo hidrossocial se torna objeto de modelos importados dos países docapitalismo pós-industrial, trazidos ao Brasil de forma mecânica e com o propósito de abrir novoscanais de comodificação e acumulação de capital. Tais processos estão diretamente associados apoderosos mecanismos de controle político que historicamente dominaram o desenvolvimentosócio-econômico no Brasil.
REAÇÕES POLÍTICAS E JUSTIÇA AMBIENTAL
Como descrito acima, o sistema oficial de gestão ambiental tem produzido respostas incapazesde atender à complexidade sócio-natural das questões da água em função de uma subordinaçãoexplícita a prioridades econômicas e exigências tecnocráticas. Isso sugere que a racionalidadesubjacente do século passado vem sendo agora reproduzida na experiência presente, não obstante atentativa de articular um modelo de gestão supostamente inovador. Há, assim, uma velada dissimulação daquilo que é aparentemente novo, mas genuinamente velho na gestão brasileira daságuas. Alternativas efetivas para a superação de tais problemas requerem mudanças estruturais nospadrões econômicos de produção e consumo, as quais precisam estar alinhadas com uma profundareconfiguração do sistema político representativo, do papel do Estado e da divisão internacional dotrabalho. Nesse sentido, a busca de alternativas ao modelo dominante de gestão de águas advogauma transformação no uso do ambiente que é parte de mudanças mais gerais nas relações de poder.Defende que, ao invés de subordinar o acesso à água a transações de mercado, serviços públicosdeveriam ser geridos por programas que valorizassem a participação ativa e consciente dos atoreslocais (Sen, 1999).
A reação contra a nova estrutura neo-liberal de gestão de águas vem tímida, maspersistentemente, ocupando espaços de resistência política no Brasil. Contestando a idéia de que aágua possa ser tratada como uma mercadoria econômica, grupos de protesto defendem os direitos decomunidades locais e populações tradicionais. Setores da sociedade brasileira vêm enfrentando opoder de agências financeiras internacionais por meio de uma articulação coordenada de gruposorganizados por localidade ou atividade (Hall et al. 2005). Nesse sentido, o Movimento dosAtingidos por Barragens (MAB) congrega uma campanha de resistência contra 63 barragens queoferece um ataque frontal ao modelo de desenvolvimento econômico dominante (Vainer, 2004). Étambém relevante mencionar a ampla reação contra a mega-transposição de águas do Rio SãoFrancisco, projeto este que dissimula o problema agrário do semi-árido e que serve principalmente ainteresses de construtores e oligarquias tradicionais. Outro exemplo é a Frente Nacional doSaneamento Básico, constituída por 17 organizações da sociedade civil, como profissionais liberais,sindicalistas, ambientalistas e líderes comunitários.
A resistência contra o modelo estabelecido de desenvolvimento hídrico se baseia na busca dejustiça ambiental ao defender que a interação entre natureza e sociedade deve produziroportunidades iguais de acesso à água para todos os grupos sociais, bem como garantir aconservação do equilíbrio sócio-ambiental. Contudo, apesar de importantes demonstrações demobilização popular, até o momento essa reação contra a comodificação da água no Brasil vemobtendo resultados modestos e parciais. Por um lado, tem forçado os bancos de desenvolvimento arever suas políticas de financiamento de modo a incorporar exigências sociais básicas (cf. WorldBank, 2003). Por outro lado, as pressões do mercado têm compelido quase todos os partidospolíticos a adotarem o estandarte neo-liberal. O caso mais grave de recuo programático é oferecidopela presente administração federal a qual, quando na oposição lutou contra a privatização, mas desde que assumiu o poder vem implementando uma agenda semelhante à administraçõesanteriores. Além de evitar a condenação das privatizações, o atual governo trabalhou para aprovar alegislação das Parcerias Público Privadas (PPPs), que nada mais são do que a nova face daprivatização na América Latina (Isto É, 2006).
CONCLUSÃO
Ao invés de buscar o consenso (como defendido pelos gestores públicos tradicionais), essetexto procurou denunciar uma das mais sérias injustiças historicamente cometidas no país: aapropriação da água para acumulação privada e excludente de capital. Tentou-se demonstrar que osproblemas relacionados ao uso e conservação da água no Brasil são conseqüência direta de ummodelo de produção industrial elitista e implantado por um Estado autoritário. A incorporação dageografia da água ao processo de produção capitalista, largamente incentivada por organismosinternacionais ao longo do Século 20, foi responsável por uma progressiva comodificação doambiente aquático. A comodificação da água resultou em complexas contradições sociais eambientais, particularmente em uma assimetria entre benefícios econômicos e impactos decorrentesda degradação do meio ambiente. Com uma expansão urbano-industrial irrefreada, os níveis dedegradação ambiental passaram a restringir a própria expansão econômica e forçaram respostasinstitucionais diversas, culminando com a promulgação da legislação de águas em 1997 e institucionalização de um sistema nacional de gestão. O ponto central da nova lei é a definição dovalor monetário da água de mananciais e a determinação de que seu uso deve ser cobrado.
O novo modelo de gestão vem sendo promovido no contexto das bacias hidrográficas, o quetem alterado a percepção social das questões hídricas e vem consolidando uma diferenciadaepistemologia de gestão. Mas a implementação desse novo tratamento dos recursos hídricos édominada por uma aliança estratégica entre agentes econômicos e grupos ambientalistasconservadores. Encoberta pelo véu de uma sofisticada mistificação, a reforma do setor de recursoshídricos, em particular a introdução da cobrança, não apenas cria condições para um maiorexploração dos recursos sócio-naturais, mas também divide a conta da recuperação ambiental com asociedade como um todo, ao invés de responsabilizar diretamente os causadores da degradação.Portanto, a cobrança pelo uso da água representa uma solução restrita e temporária para a questãoambiental, deixando sem resposta as contradições entre interesses econômicos e justiça ambientalque sempre caracterizaram o sistema produtivo no país. Apesar do discurso oficial de sustentabilidade, a cobrança pela captação de água e lançamento de efluentes termina por reproduziras mesmas contradições do período anterior e nada mais faz do que criar novas oportunidades decomodificação, haja vista que a racionalidade econômica continua garantido o avanço de forças demercado sobre os recursos sócio-naturais.
A conclusão fundamental é que os problemas hídricos no Brasil são resultados de processosdiscriminatórios na relação entre sociedade e natureza decorrentes da contradição entre relações econdições de produção. A abordagem proposta pelo novo modelo de gestão apenas reforça oprocesso de comodificação da natureza que beneficiou e continua a beneficiar uma pequena elitepolítico-econômica. Injustiça ambiental e práticas autoritárias continuam a ser as característicasmarcantes da ação do poder público e dos agentes econômicos dominantes. Segundo umaperspectiva histórico-geográfica, respostas efetivas aos graves problemas da água no país dependemdo reconhecimento das responsabilidades pelos impactos sócio-naturais que se projetaram dopassado para o presente. As questões da água se configuram, assim, como elementos importantes dademocratização do Estado e da revisão de padrões de produção e consumo. Mas somente com umagestão ambiental independente das forças de mercado será possível começar a estabelecer novasbases para a construção de uma relação mais justa e menos contraditória entre sociedade e o resto danatureza.
AGRADECIMENTOS
O autor agradece o suporte bibliográfico da Universidade de Glasgow, da Fundação Getúlio Vargas (Rio de Janeiro) e da Agência Nacional de Águas (Brasília).
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