Luz do Povo avança como política compensatória, mas ainda penaliza o trabalhador
A tarifa social de energia enfrenta obstáculos na aplicação e no modelo de subsídio; abatimento integral alivia milhares de famílias de baixa renda
Publicado 10/09/2025

A tarifa social de energia elétrica, ou Luz do Povo, como apelidado recentemente pelo governo federal, que concede abatimento integral para famílias do CadÚnico e descontos progressivos por faixas de consumo na conta de luz, tem potencial de compensar milhares de famílias de baixa renda pelos elevados custos do consumo de energia, mas ainda esbarra na aplicação da política pública na ponta, nas disputas do setor elétrico, tanto pelo empresariado quanto no Congresso Nacional, e por um modelo de subsídio que penaliza consumidores com faixas salariais distintas de forma injusta.
Em grandes números, quase 40 milhões de famílias de baixa renda podem ser beneficiadas pela Medida Provisória nº 1.300/2025, sancionada em julho deste ano, e agora sob o slogan de Luz do Povo. A maior parte, cerca de 27 milhões, o que corresponde a 70 milhões de pessoas, deixará de pagar R$ 5,3 bilhões ao ano dentro da gratuidade para a faixa de consumo de até 80 kWh.
A ideia macroeconômica do governo é que esse grande volume de recursos que deixará de ser pago nas contas de luz migre para as economias locais. O maior impacto ocorrerá nos estados do Nordeste, onde os consumidores irão economizar quase R$ 2,4 bilhões por ano com energia elétrica, seguido pelo Sudeste, com R$ 1,6 bilhão. Na região Norte, a economia chegará a R$ 636 milhões, enquanto no Centro-Oeste serão R$ 341 milhões e no Sul, R$ 266 milhões.
Outros 11,8 milhões são elegíveis ao Desconto Social até 120 kWh e tendem a economizar R$ 1,5 bilhão. Somando as duas modalidades, a estimativa é que serão cerca de R$ 6,8 bilhões a menos de custo de energia para os mais pobres.

Quem vai pagar os benefícios para os mais pobres será o consumidor que não tem direito a nenhum desconto, dentro da chamada Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), que agrega todos os subsídios do setor. O rateio da CDE nas contas de luz do país, no entanto, tem peso diferente por região. Assim, as disparidades regionais também distorcem a cobrança de quem paga por esse subsídio. Essa repartição desigual está em processo de correção, mas o rateio, neste momento, ainda faz com que ricos e pessoas de classe média que moram no Norte e no Nordeste ainda paguem menos que seus pares de outras áreas.
O orçamento total da CDE neste ano para bancar subsídios tende a subir para R$ 51,4 bilhões, um aumento de 38,5% em relação ao orçamento de 2024. O valor também fica acima da projeção feita pela Aneel para essa conta, de R$ 49 bilhões, que já era um recorde. Importante detalhar que a alta é acompanhada por uma redução na base de rateio da CDE, uma vez que haverá a exclusão dos consumidores beneficiados com o desconto social.
A engenheira elétrica e integrante do Coletivo Nacional dos Eletricitários, Fabíola Latino Antezana, vê com preocupação o atual modelo enérgico, com distribuição desigual dos subsídios. Segundo a eletricitária, no atual modelo, os subsídios para empresários e outros grandes setores, que são históricos, continuam, e quem vai pagar a conta do abatimento integral da tarifa para as famílias mais pobres é o consumidor cativo. Ou seja, o consumidor comum, uma parcela enorme da população, que tem renda baixa e já encontra dificuldade de pagar uma conta de energia cada dia mais cara.
“Uma família rica, endinheirada, um empresário, e um trabalhador que ganha um salário mínimo por mês vão participar do rateio da mesma forma. Isso é uma bomba que vai estourar às vésperas das eleições de 2026, que é quando essa divisão vai ficar mais evidente na vida das pessoas, e o governo parece não se dar conta”, afirma.
Na avaliação do Coletivo Nacional dos Eletricitários, o novo modelo de tarifa social, com faixa de abatimento integral automático, é eficiente como uma reserva de mercado e garantia de consumo contratual para as empresas geradoras e distribuidoras, mas ainda é uma política pública compensatória incompleta.
Uma luz no fim do túnel

Das 41.920.523 famílias que possuem o direito à Tarifa Social, no último ano, apenas 16.848.197 famílias (40,19%) receberam os descontos de acordo com o relatório da ANEEL referente a julho de 2024, em levantamento feito pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Permaneciam, portanto, 25.072.326 famílias (59,81%) sem acesso ao direito à tarifa social, mesmo se enquadrando nos critérios. Na época, o desconto não era automático. Era exigido das famílias do CadÚnico um cadastro à parte junto das operadoras.
“Esse era um gargalo que sempre víamos: famílias que não sabia como se cadastrar, e falta de informações dos Centros de Assistência Social. Muitas vezes não havia nenhum folder sobre a tarifa, e mesmo falta de capacitação dos próprios funcionários dos CRAS”, conta o advogado popular e membro do MAB, Rodrigo Timm.
Em quatros anos e meio de campanha do MAB, o número total de famílias acessando à Tarifa Social subiu de 9.404.427, em janeiro de 2020, para 17.144.522, em janeiro de 2024. Ou seja, uma conquista estendida para 7.740.095 famílias, conferindo diretamente um alívio na renda para mais de 30 milhões de brasileiros e brasileiras.
Nos cinco primeiros meses de 2024, R$ 2,6 bilhões deixaram de sair das contas das famílias brasileiras mais pobres, e são utilizados na compra dos itens de primeira necessidade (alimentos, medicamentos, gás, vestuário e etc).
Nos casos em que a família deveria estar recebendo a tarifa social desde janeiro/2022 e não recebeu, ela tem direito de ser ressarcida em dobro e com a correção monetária sobre o valor pago indevidamente.
Na casa de Valdenice Melo da Cruz, morada de Cametá, no interior do Pará, o direito à Tarifa Social está flagrantemente expresso nas condições sociais da família formado por ela, o esposo e a filha. Valdenice está há quase dois anos desempregada, e o marido é trabalhador informal da colheita de açaí. Se estivessem inscritos no CadÚnico, agora, com o modelo automático adotado pelo Luz do Povo, já estariam isentos da conta de energia. Mas não estão.
“Não estamos no CadÚnico. Não sabia que tínhamos direito. Procurei a assistência social uma vez, mas eles também não souberam me dizer. A conta de energia aqui aumentou muito nos últimos meses, e o serviço também piorou bastante. Quando chove, ficamos dias, às vezes semanas sem energia”, afirma.
Em Cametá, a distribuidora de energia é a Equatorial Pará. No começo deste ano, a conta de energia na casa de Valdenice girava em torno de R$ 110. Nos últimos meses, ela conta, disparou para R$ 190. Em 2024, esse valor não passava de R$ 70.
“A gente tem dificuldade para pagar. Está cada dia mais difícil. Sem contar que a energia aqui é ruim. Muitos eletrodomésticos elétricos não funcionam, porque é uma energia fraca.”
Com o abatimento integral da fatura para o consumo de até 80kw, as faixas de desconto do Luz do Povo diminuíram. Isso significa que, antes, na antiga tarifa social, as famílias do CadÚnico tinham descontos escalonados para até 220kw de consumo. Agora, o abatimento é total para até 80kw, e escalonado para até 120kw.
“Também vemos esse modelo como problemático. O consumo das famílias, especialmente em função da crise climática, mas também de como é a vida moderna, só aumenta. Os trabalhadores precisam usar ventilador, ar condicionado, equipamentos eletrônicos variados. Muita gente não vai se enquadrar”, afirma Fabíola.
Barato pra fazer, caro de consumir
A energia elétrica é um insumo fundamental de todas as cadeias produtivas, mas sobretudo é um direito fundamental do povo. O Brasil possui uma base natural de elevada produtividade, por meio da geração hidrelétrica (62% da matriz energética do país provém desta fonte). Porém, o baixo custo de produção não é utilizado para garantir energia a preços acessíveis ao povo, muito pelo contrário.
O professor de engenharia elétrica da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Dorival Gonçalves Júnior, explica que a lógica que domina o mercado está muito longe da concepção da energia como um direito, e a realidade demonstra que a indústria elétrica no país é um grande negócio que reverte lucros extraordinários para grandes grupos econômicos internacionais e acionistas.
O resultado é um excessivo peso do gasto com energia elétrica sobre o orçamento dos mais pobres. Segundo levantamento do MAB, o custo médio da tarifa residencial, nos primeiros seis meses de 2025, ficou em R$ 150. Considerando que grande parte da população tem renda igual ou inferior ao salário mínimo, o impacto da tarifa de luz no bolso das famílias ainda é muito grande.
“Nossas matrizes estão prontas, pagas, são produzidas a partir de recursos naturais, como água e vento, muito baratas para gerar. Não há nada que justifique preços tão altos de tarifas que não seja a indexação dos valores de referência no mercado internacional”, afirma Dorival.

Para o professor, as injustiças nos sistemas de subsídios, e o desequilíbrio de acesso energético atual articulado com a necessária tarifa social como política compensatória, expõem, cada vez mais, as contradições do sistema energético, o que deve ser usado pela população e movimentos organizados como forma força de mobilização.
Como funciona a tarifa social
Famílias inscritas no CadÚnico, com renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa, e que consomem até 80 kWh/mês terão a conta de luz zerada. O benefício é concedido automaticamente. Caso o consumo exceda os 80 kWh, será pago apenas o proporcional.
Atualmente, a Tarifa Social é concedida automaticamente para as famílias que estão inscritas no CadÚnico. Caso a família atenda ao requisito de possuir renda per capta familiar de meio salário mínimo e ainda não esteja no CadÚnico, é importante fazer o requerimento do benefício e pedir mais informações nos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) de todo o Brasil.
Já o desconto social concede a isenção do pagamento da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) a famílias inscritas no CadÚnico que tenham renda mensal entre meio e um salário mínimo por pessoa, com consumo mensal de até 120 kWh
Quem tem direito ao benefício: Famílias atendidas pelo CadÚnico com renda mensal de até meio salário mínimo; Pessoas com deficiência (PCDs) ou idosos com mais de 65 anos com Benefício de Prestação Continuada; Famílias indígenas e quilombolas do CadÚnico; Famílias do CadÚnico atendidas em sistemas isolados por módulo de geração.
Ajuste na Medida Provisória
Ao portal G1, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, afirmou no fim de agosto que conversa com parlamentares com objetivo de sensibilizá-los sobre a aprovação da Medida Provisória que altera regras do setor elétrico e amplia a tarifa social de energia elétrica. A MP corre o risco de perder a validade no Congresso Nacional, já que ainda não entrou na pauta. O prazo final para que os parlamentares deliberem sobre a matéria é 17 de setembro.
Em maio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou a medida provisória em cerimônia no Palácio do Planalto. Segundo dados do governo, na ocasião, cerca de 55 milhões de brasileiros serão beneficiados com o desconto e 60 milhões com a isenção na conta de luz.
Interlocutores do Planalto relataram, ainda ao G1, que a única parte pacificada na medida provisória se refere à tarifa social. Os demais tópicos da MP, que tratam, por exemplo, da abertura do mercado livre de energia, não têm consenso.
Procuramos o Ministério de Minas e Energia para saber se haverá alterações no texto da MP, e se há possibilidades de votação ainda em setembro, mas o MNE não respondeu.
