De forma geral, a construção de uma barragem afeta o modo de vida de toda uma comunidade, mas prejudica especialmente a vida das mulheres
Publicado 28/07/2022 - Atualizado 29/07/2022
“Eu sempre fui de luta! Então, eu sempre vou ser incentivada e ser incentivadora”. É assim que a professora Daiane Lima, 33 anos, explica sua motivação na batalha que travou por direito à água potável e livre de contaminação na comunidade onde vive, Aurizona, um distrito do município de Godofredo Viana (MA), que fica no oeste do estado, onde atua uma das maiores mineradoras de ouro do mundo.
Após a localidade ser atingida pelo rompimento de uma barragem de rejeitos da multinacional canadense Equinox Gold, os lençóis freáticos da região foram poluídos por metais com potencial tóxico que podem causar coceiras, doenças de pele e problemas neurológicos e respiratórios. A história de Daiane se mistura aos relatos de tantas outras lideranças femininas que se destacam na resistência às violações de direitos praticadas no território amazônico por empreendimentos ligados à mineração, ao setor energético e ao agronegócio, entre outros. São rostos como o dela que podem ser vistos no II Encontro dos Atingidos e Atingidas da Amazônia, que acontece desde ontem, 27, na Universidade Federal do Pará, na capital Belém, e se encerra hoje.
De forma geral, a construção de uma barragem afeta o modo de vida de toda uma comunidade, mas prejudica especialmente a vida das mulheres, porque elas são responsáveis pela economia doméstica e pelo cuidado da família. Nesse contexto, as obras de grandes empresas, como a Mineradora Aurizona (subsidiária da Equinox), transformam profundamente a vida das mulheres desde o início das construções, porque, assim como outros grupos em situação de vulnerabilidade (como crianças e adolescentes), elas não são incluídas nos processos decisórios de implementação dos projetos, como aponta a doutora em Direito pela UFPA e pesquisadora sênior na Plataforma Cipo, Flávia Amaral. “Elas não participam das grandes reuniões. Não existe um direcionamento dentro do licenciamento ambiental de políticas públicas que beneficie mulheres, crianças e adolescentes na construção desses empreendimentos”, pontua a pesquisadora.
Flávia pesquisa temas ligados à barragem e aos direitos humanos no contexto nacional e internacional, com foco na questão ambiental, indígena e de outros povos tradicionais. Segundo ela, é importante conceber o território e o corpo como uma coisa única. Ou seja, reconhecer que o que impacta no território em que uma mulher vive vai impactar também na sua saúde psíquica, física e emocional. “Há relatos de dores no corpo por conta do peso que se carrega pela pressão, pelas mudanças e pelo medo do que virá. No contexto de uma barragem, há sempre o receio de uma ruptura e a preocupação com a sua família. Há também o aumento da violência doméstica e sexual, porque, no momento da construção de uma barragem, existe essa chegada de um grande número de homens que vai impactar o modo de vida local”, explica.
A avaliação apresentada pela pesquisadora é confirmada por Daiane em sua experiência no Maranhão. “A prostituição lá é muito grande (…). Quando a empresa chegou lá, não tinha aquele horror de homem que tem hoje. Aí eles iludem, botam no carro, vão passear, pagam alguma coisinha pra cá, pagam outra coisinha pra acolá e pronto. Abandonam tudo grávida”, conta.
Judite da Rocha, coordenadora do MAB no Tocantins e mestra em saúde pública pela Fiocruz, mora em Porto Nacional (TO) e também é afetada pela construção de projetos com grandes impactos para o estado. Ela acompanhou quatro construções de barragens no Tocantins e foi afetada por uma barragem no estado do Paraná, onde acampou por dois meses nos canteiros de obras exigindo o seu reconhecimento como atingida e a garantia dos seus direitos. Segundo Judite, que participa pela segunda vez do encontro, o espaço é fundamental para a construção de um debate entre os atingidos. “São diferentes vozes da Amazônia ecoando para o mundo. As companheiras Nicinha, de Rondônia, e Dilma, do Pará, foram mortas nessa luta, porque desafiaram interesses poderosos”, defende. Todas as mulheres atingidas por barragens citadas nesta matéria estão participando do II Encontro de Atingidos e Atingidas da Amazônia. Os rostos femininos, por sinal, são maioria no auditório do evento. Isso é um reflexo da própria dinâmica da luta nos territórios.
Apesar de todas as vulnerabilidades e desafios que enfrentam, as mulheres são, muitas vezes, líderes no processo de resistência e enfrentamento de grandes empresas e governos para defender suas famílias e comunidades e lutar contra o deslocamento forçado, os danos ambientais, a perda de renda e a transformação do modo de vida de suas localidades. Temos, como exemplo, o projeto das Arpilleras, em que as mulheres do MAB criam painéis bordados em oficinas coletivas para trocarem experiências, elaborarem seus traumas e denunciarem as violações que sofrem. Em Altamira (PA), as mulheres foram líderes históricas na luta contra Belo Monte, desde Tuíra Kayapó, que ficou conhecida no final dos anos 80 por confrontar o presidente da Eletronorte na época, até o momento atual, onde tantas atingidas seguem lutando pela reparação dos seus direitos e o acesso à justiça.