O uso da água na geração de energia: privatização e catástrofes “naturais”

A gestão privada do setor elétrico no Brasil ignora o interesse púbico na produção de energia e impõe diversos riscos à população a partir de uma gestão irresponsável dos reservatórios de hidrelétricas que resulta ora em risco de apagão, ora em inundação de bairros inteiros

TRES LAGOAS, MS. UHE DE Jupia em Três Lagos – MS. (Foto: Henrique Manreza)

De acordo com a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, existem 217 grandes hidrelétricas em operação no Brasil, além das chamadas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), usinas de menor porte. Não por menos, o país é conhecido mundialmente pelo seu enorme potencial de produção de energia hidrelétrica, que envolve o represamento e o controle do curso de centenas de rios no país, impactando o acesso e o curso da água. Isso porque é no interior das usinas hidrelétricas que se dá a conversão da energia potencial da água armazenada nos reservatórios em energia cinética e, por fim, em energia que move indústrias, ilumina cidades e abastece lares em todo o país.

Embora esse tipo de energia seja chamado de energia limpa – além de “barata’, o barramento dos rios para a produção da energia gera enormes impactos de natureza ambiental e social, especialmente para as populações que vivem nos territórios onde as hidrelétricas são instaladas – mas não só para elas.

Durante o processo de construção, as barragens mudam o curso dos rios e alagam áreas gigantescas. “O alagamento mata florestas, prejudica a biodiversidade local e provoca a decomposição da vegetação, liberando uma enorme quantidade de metano (CH₄), gás 25 vezes mais agressivo que o CO₂ para o efeito estufa”, explica o cientista Philipe Fearnside, que é doutor em Ecologia e há 20 anos se dedica aos estudo sobre os impactos das hidrelétricas no Brasil.

Para além da emissão de gases poluentes, o pesquisador lembra que a inundação causada pelas usinas pode deixar cidades inteiras e seu patrimônio cultural debaixo d’água e expulsar indígenas e outros povos tradicionais que têm um modo de vida intimamente ligado à terra onde vivem.

Os lagos construídos para o represamento dos rios também podem colocar em risco o múltiplo uso da água, que envolve o abastecimento humano, a irrigação, a utilização na indústria, a pesca, a navegação e outros.

Medições nos rios a jusante de três represas tropicais úmidas ( Balbina e Samuel na Amazônia brasileira) mostraram altas emissões de metano (CH4) no rio a jusante das barragens

Nesse contexto, o coordenador do MAB, Robson Formica, que é especialista em Energia e Sociedade, explica que a prioridade da água é sempre o abastecimento humano. “Isso está definido pela Política Nacional de Recursos Hídricos. Então, no licenciamento das barragens está determinada a vazão mínima que precisa ser respeitada para que o rio siga seu curso sem que se afete a fauna, a flora e o consumo humano e animal. Mas, em geral, isso não é fiscalizado, porque os próprios órgãos ambientais têm priorizado garantir licenciamentos de hidrelétricas a qualquer custo, ao invés fiscalizar o cumprimento da legislação”.  

Robson acrescenta que, após o processo de construção das barragens, a operação das mesmas segue gerando impactos definitivos, não só para as comunidades ribeirinhas, mas para toda a população do país.

A gestão dos reservatórios das hidrelétricas e as inundações de janeiro

Inundação em Jequié (BA), que fica abaixo da Usina de Pedra. Em dezembro de 2021, a hidrelétrica dobrou a vazão de água, potencializando as inundações dos munícipios a jusante. Foto: Gabrielle Sodré

Entre dezembro de 2021 e janeiro 2022, o Brasil inteiro testemunhou as consequências catastróficas dos alagamentos que atingiram diversas regiões do país, como o sudoeste da Bahia, o sudeste do Pará e diferentes bacias hidrográficas em Minas Gerais. Embora as mudanças nos ciclos hidrológicos e os extremos climáticos sejam causados por uma diversidade de fatores ligados ao uso da terra, em algumas regiões brasileiras, os efeitos das fortes chuvas foram potencializados pela operação de hidrelétricas que abriram suas comportas repentinamente, sem aviso prévio às comunidades abaixo de seus lagos.

O volume extra de água liberado intensificou o impacto de enchentes que causaram mortes e danos materiais e deixaram milhares de pessoas desabrigadas e cidades inteiras em estado de alarme.

Na Bahia, por exemplo, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) abriu seis das sete comportas do reservatório da Usina da Pedra, em Jequié, para dar vazão à água acumulada por causa das chuvas. De acordo com a própria companhia, na última semana de dezembro, foi necessário elevar a vazão da água (que desemboca no Rio das Contas) de 363 para 800 metros cúbicos por segundo.

Para especialistas, dobrar o volume de água liberado repentinamente revela uma falha de gestão do reservatório, pois as empresas de energia têm acesso aos índices meteorológicos e previsões hidrológicas compatíveis com as mudanças climáticas para planejar o nível seguro dos reservatórios durante as cheias e secas.

Inundação na cidade de Ibicuí (BA). Divulgação / Prefeitura de Ibicuí

Ou seja, sendo possível prever antecipadamente o volume de água que vai entrar na hidrelétrica, o procedimento esperado era que que a companhia abrisse as comportas gradativamente para evitar inundações nas cidades a jusante (rio abaixo).

A questão, segundo Robson, é que as empresas preferem manter o volume dos reservatórios no limite para maximizar a geração da energia, mesmo sabendo do risco de transbordamento no ciclo das chuvas.  Isso acontece porque quem coordena a gestão dos reservatórios é uma entidade privada chamada Operador Nacional do Sistema (ONS). “É ele quem diz quem deve gerar energia, quem deve segurar a água, quem deve liberar. Esse órgão foi criado nos anos 90 na esteira do processo de privatizações do governo FHC. Foi lá que se inventou essa estrutura que coloca o setor elétrico a serviço do mercado, subordinado a uma lógica mercantil e não a uma lógica de serviço público”, afirma o especialista.

De acordo com Robson, esse modelo energético representa um risco duplo para a população, porque é o setor privado que define as estratégias de gerenciamento dos reservatórios com base nas possibilidades de maximização do lucro, seja em situações de cheias, ou de secas. Com isso, as empresas interferem fortemente no custo da energia e ainda colocam as populações do entorno das hidrelétricas em risco, por conta das possíveis inundações quando decidem liberar a água.

“Essa dinâmica beira a irracionalidade. Você tem precipitação de chuva anunciada, tem índices meteorológicos indicando isso, a previsão de cheia a montante, e sabe que a barragem vai encher. E você poderia evitar a abertura repentina das comportas e diminuir o impacto das inundações nas comunidades, mas isso não acontece porque o que está sendo priorizado é o aumento da geração de energia de do lucro e não na segurança da população ou a prestação de um serviço de qualidade”, complementa o coordenador.

“Crise hídrica” e explosão de tarifas

Além do risco de inundações, outra consequência do mau gerenciamento dos reservatórios das hidrelétricas é a crise no abastecimento e a explosão de tarifas devido ao esvaziamento dos lagos, como aconteceu no inverno do último ano.

Ato realizado em frente à sede da Enel em São Miguel Paulista em protesto contra os sucessivos aumentos na tarifa de energia em 2021

Segundo o Gilberto Cervinski, também coordenador do MAB, em 2021, o discurso sobre a seca na região sudeste do país serviu para justificar aumentos na conta de luz, permitindo que empresas concessionárias do setor elétrico lucrassem alto na pandemia.

O MAB denunciou, na época, que embora o sudeste vivesse de fato um período de estiagem, o seca nos lagos das hidrelétricas aconteceu, na verdade, devido a um esvaziamento proposital dos reservatórios das usinas, principalmente durante 2020, quando ocorreu uma queda média de 10% no consumo nacional de eletricidade por conta da crise do Covid-19. Com isso, a falta de água e o risco de apagão justificaram a ativação da bandeira vermelha e depois a criação de uma nova bandeira tarifária na conta e energia. A “bandeira de escassez hídrica” foi lançada pelo governo em agosto de 2021 com o valor de R$ 14,20 para cada 100 kWh (quilowatts-hora). Ela é cerca de 50% mais cara que a bandeira vermelha patamar 2, a mais alta existente até então. Para Cervinski, a nova bandeira foi criada para garantir a manutenção dos lucros dos acionistas do setor elétrico, mesmo diante da redução do consumo.

Nesse contexto, o ex-diretor-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Vicente Andreu, também defendeu a tese de que a chamada crise hídrica resultou de uma “ação irresponsável” do Operador Nacional do Sistema Elétrico. Para ele, se a previsão era de estiagem, o operador deveria ter acionado as termelétricas mais cedo, a fim de reduzir os impactos da falta de chuva nos reservatórios das hidrelétricas e o risco de apagão.

Outra especialista no tema, Amanda Schutze, que é professora na PUC-Rio e coordenadora de avaliação de políticas públicas com foco em energia do Climate Policy, também afirma que a má gestão do setor elétrico foi determinante para a crise energética que assolou o país.

“Na escolha da matriz elétrica, muitos pontos são considerados, como as questões ambientais, custo de geração e transporte e a segurança de suprimento. O mix escolhido deve ser tal que, mesmo com condições climáticas adversas, o suprimento de energia elétrica não seja comprometido e os reservatórios esvaziados”, defende.

Amanda explica que, diante da falta de planejamento e com justificativa da crise hídrica, o governo editou ainda a Medida Provisória (MP) n° 1.055 de 28 de junho de 2021, que centralizou a questão da crise no Ministério de Minas e Energia (MME) a partir de um comitê de gestão de crise que excluiu a participação de órgãos como a Agência Nacional de Águas (ANA) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) nas decisões sobre a gestão dos recursos hídricos. A medida ainda abriu a possibilidade do governo contratar energia com caráter emergencial e sem leilão, o que representa a possibilidade de se comprar energia mais cara das usinas por conta da “crise”.

Para Robson, na verdade, tais problemas na operação das hidrelétricas e precificação da energia refletem a dinâmica de um setor elétrico pautado pelos interesses do capital. “A lógica da privatização subordinou tudo o que era vinculado à garantia do serviço público acessível, de qualidade e com certa fiscalização e controle a uma lógica de acumulação de capital e lucro a todo custo. Por isso, hoje a operação ocorre desta forma, sem compromisso com a população.”

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