Fundação Renova e a violação aos direitos das mulheres
É preciso perguntar como a Fundação Renova consegue fazer uma (não) reparação dessa forma. E para responder a essa pergunta é também preciso lembrar que, na verdade, estamos lidando com empresas: Vale, Samarco, BHP Billiton e a própria Renova
Publicado 07/05/2020 - Atualizado 05/06/2020
5 de maio 4 anos e 6 meses de impunidade e luta por direitos no Rio Doce!
Nessa semana, completou-se quatro anos e seis meses do crime da Vale, Samarco e BHP Billiton na bacia do rio Doce. Durante os próximos dias vamos divulgar diversos materiais com o objetivo de não deixar esse crime continuado cair no esquecimento. Entre os materiais, estão textos que vão trazer um balanço em série desse período apresentando informações que confrontam a poderosa publicidade das mineradoras e reafirmando pautas fundamentais para os atingidos bem como conquistas alcançadas pela luta popular. Esse é o segundo texto da série e vai abordar o tema dos direitos das mulheres atingidas.
As mulheres atingidas não estão sendo reconhecidas para efeitos de políticas de indenização da Fundação Renova. Essa violação começa no processo de cadastramento: em geral não são realizados atendimentos individuais dos membros da família, dada a situação de desigualdade de gênero imposta pela presença do patriarcado na sociedade, e em muitos casos o preenchimento das informações foram realizados pelos homens.
Assim obtiveram os seguintes dados de cadastro: o universo de cadastrados é em média 50% homens e 50% mulheres. Sendo que apenas 30% das mulheres recebem algum tipo de benefício, em geral na condição de dependente do marido, apesar da Deliberação nº 119 do Comitê Inter Federativo (CIF) estabelecer que no processo de indenização não deve haver discriminação de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outra forma.
A maior presença da informalidade no trabalho das mulheres também é um fator para o não reconhecimento, uma vez que elas têm maior dificuldade de comprovar renda. Assim, trabalhos de mulheres associados à cadeia de pesca, como a limpeza dos peixes, a preparação das redes e a pesca para alimentação, são vistos como auxiliares, não passando a integrar os auxílios e indenizações. Além desses, atividades como comerciantes/barraqueiras; vendedoras de produtos, salgados, água, chup-chup para turistas no rio; e salão de beleza, não são reconhecidos como afetados pelo empreendimento. Apesar disso, as mulheres também são a linha de frente de todas as lutas, as coordenadoras de Grupo de Base, as mais presentes nas Comissões Locais e em todas as negociações.
A política de indenização está diretamente ligada a realização do cadastro e distribuição de auxílio emergencial. Se as mulheres não são reconhecidas como atingidas, ou mesmo seu trabalho, elas não acessam programas como o Programa de Indenização Mediada (PIM) e o Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), e também não têm direito aos danos morais.
De acordo com estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de dezembro de 2019, que estudou os registros da ouvidoria da Fundação Renova de 2016 a 2019, em que apareciam o termo mulheres, as principais questões reivindicadas por elas são relacionadas ao cadastro como atingidas (39,85%), sobrecarga doméstica (33,92%) e pagamento de auxílio financeiro emergencial (30,90%). Questões relacionadas às atividades econômicas (24,27%), pagamento de indenização (23,74%), questões relacionadas à saúde (21,99%) e conflitos familiares (3,39%) também aparecem como temas de reclamações das mulheres à ouvidoria da Renova.
Dentro da situação de sobrecarga doméstica o que mais aparece são as dificuldades de arcar com os custos do lar e o cuidado com filhos e netos. Esse tema têm aumento em suas reclamações ao longo dos anos, o que mostra o aumento da sobrecarga e da vulnerabilidade dessas mulheres com o passar dos anos de um crime sem reparação e sem ações específicas para elas. O tema da saúde é outro em que há aumento das reclamações ao longo dos anos, principalmente em relação à saúde mental (1,2% em 2016 para 12,8% em 2019) e ao acesso à saúde (1,7% em 2016 e 18,6% em 2019). Em relação ás atividades econômicas, as que mais são temas de reclamação das mulheres são as relacionadas à pesca ou à cadeia da pesca (15,9%), mostrando mais uma vez o não reconhecimento do trabalho das mulheres nessa categoria.
Sobre o cadastro, o AFE e o PIM, os programas da Fundação Renova que as mulheres reclamaram na ouvidoria, as principais questões colocadas por elas são de informações sobre a situação do cadastro, atrasos, demoras e erros no pagamento dos auxílios e das indenizações. Em um processo em que as mulheres não são reconhecidas e não recebem seus direitos de forma independente é de se esperar um aumento da vulnerabilidade, dificuldade de arcar com os custos do lar, sobrecarga doméstica e na saúde mental, assim como aumento dos conflitos familiares.
Os problemas no abastecimento de água, que implicaram a busca da água em caminhões pipa ou a compra de água mineral, devido a divisão sexual do trabalho desigual, impõe uma sobrecarga de trabalho às mulheres também não compensada na política indenizatória ou em programas de desenvolvimento equitativo. Os aumentos nos problemas de saúde física e mental também geram sobrecarga de trabalho para as mulheres, que em geral são as responsáveis pelos cuidados da família.
Levantamos também o aumento dos casos de violência contra a mulher. Estão sendo registrados diversos casos de assédio por parte de trabalhadores envolvidos nas obras de reconstrução bem como a mudança nas relações sociais trabalhistas, que modificam as relações privadas em setores como a pesca que, via de regra, o homem fica muito ausente do lar. Com o sedentarismo provocado pelo cartão emergencial, a desestruturação familiar também vem sido provocada. Sem trabalho, aumenta a depressão, o uso de drogas e alcoolismo, geradores da violência doméstica.
Durante a pandemia do coronavírus, toda essa situação de vulnerabilidade, dificuldade de acesso a água, sobrecarga doméstica, sobrecarga na saúde mental e violência doméstica se agravam.
Assim, o que se pode afirmar é que ainda que alguns programas estejam sendo criados especificamente para as mulheres, como eixos do associativismo e cooperativismo, a observação da necessidade de respeito e promoção à equidade de gênero não é tomada como um eixo transversal na política reparatória da Fundação Renova, tampouco são considerados impactos dessa política que ocasiona o aumento das disparidades de gênero.
Fonte: FGV. A Situação das Mulheres Atingidas pelo Desastre do Rio Doce a partir dos dados da Ouvidoria da Fundação Renova. Rio de Janeiro- São Paulo: 2019.