“Se alguém está abrindo as portas da Amazônia para o capital internacional é este governo que está aí”, diz arcebispo de Rondônia
Dom Roque Paloschi fala sobre a construção do Sínodo, desmatamento ilegal, agronegócio, populações vulneráveis e soberania nacional
Publicado 13/09/2019 - Atualizado 05/08/2024
Vivendo há 14 anos na região Amazônica, Dom Roque Paloschi, que atualmente é arcebispo de Rondônia e presidente Conselho Indigenista Missionário, desde 2015, acompanha os conflitos sociais da região.
O religioso conversou com o Movimento dos Atingidos por Barragens sobre o crescente avanço do desmatamento da floresta e a organização do Sínodo, que é uma assembleia onde os bispos da igreja católica no mundo todo debatem por determinado período a mesma temática definida pelo Papa para a construção de documentos que orientem a prática da igreja.
Em outubro, será realizado o encontro final desta edição intitulada “Novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral, que tem como foco o tema da floresta amazônica. Recentemente, com a região em destaque na imprensa internacional, o governo brasileiro trouxe críticas e atacou a iniciativa religiosa.
Confira a entrevista
MAB – Vivemos em uma sociedade onde, cada vez mais, o diálogo se mostra como algo dificultoso. Qual a importância do Sínodo neste contexto?
Dom Roque Paloschi – Quando nós olhamos a trajetória do Papa Francisco, ele tem insistido, oportunamente, para nós adentrarmos na cultura do encontro. A Amazônia é uma região plural, quando nós olhamos a existência de mais de 340 povos, mais de 280 línguas faladas, sem contar os povos de isolamento voluntário, é uma contextualização desse pluralismo. Por isso que o Sínodo se torna importante na medida em que nós vamos aprendendo uns com os outros, onde possamos construir relações de respeito, cooperação, comunhão, solidariedade e de co-responsabilidade, no desejo de construir uma vida digna para todos. Então, o Sínodo se torna importante na medida que nos ajuda a escutar, dialogar e encontrar no outro – que é diferente de mim – um irmão ou uma irmã, e não um adversário com quem devo criar atritos, mas, sim, construir caminhos de esperança e de paz.
Com relação a esta edição sobre a Amazônia, como foi a construção do tema?
Quando o Papa anunciou a convocação do Sínodo em 15 de outubro de 2017, ele assinala que foi acolhido o pedido de várias conferências episcopais da região pan-amazônica que pediam que ele convocasse um Sínodo para essa região. Tudo isso foi construído numa estrada de mão dupla, ou seja, a partir também da Santa Sé e as igrejas aqui da região pan-amazônica. O pontapé inicial desse processo todo foi justamente no dia 19 de janeiro de 2018, quando o Papa, em visita ao Peru, teve como o primeiro ato se encontrar com os povos indígenas, os povos originários, em Puerto Maldonado. Uma senhora disse assim ‘Francisco nos defenda, querem nos eliminar, se nós perdermos os nossos territórios nós desapareceremos’ e o Papa então, em seu discurso, estabelece as coordenadas para o Sínodo pan-amazônico, onde ele diz que os povos indígenas são os primeiros que devem ser ouvidos por suas tradições, suas experiências, e sobretudo pelo estilo de vida que não compactua com esse mundo do descartável, do consumo, mas uma vida de uma sobriedade feliz. Podemos dizer que neste dia foi o início da construção para a temática do Sínodo ‘Novos Caminhos para a Igreja na Amazônia e para uma Ecologia integral’. Tudo isso é fundamental para todos nós.
O governo brasileiro, que se posiciona publicamente contrário ao reconhecimento dos direitos indígenas, fez declarações de ‘preocupação’ com a temática deste Sínodo. Por quê?
Eu não sei qual é a preocupação que o governo tem, mesmo porque o Sínodo foi convocado em 2017, nem sabíamos ao certo quem seriam os candidatos à presidência da república do Brasil. A região pan-amazônica compreende 9 países, a igreja não está preocupada com governo do Brasil, Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, das Guianas, a igreja está preocupada, sim, com o sofrimento, com a dor, com a marginalização dos pobres desses países, a igreja está preocupada, sim, com a destruição do meio ambiente, com a violência que vivemos nessa região, com a projeção de olharmos para a Amazônia como um quintal onde se vai buscar tudo o que precisa sem a consciência de que um dia vai esgotar. Eu não sei qual é a preocupação do governo, mas a igreja caminha com muita serenidade porque, ao logo da história, a igreja tem dado testemunho do seu empenho para promover a vida e a esperança dos povos na Amazônia. Agora, a igreja também não pode ficar indiferente quando os direitos das pessoas, da coletividade, não são respeitados.
Para o sr., que acompanha o dia a dia dos conflitos da região, qual é o principal problema social da Amazônia? Quem são as populações vulneráveis?
Nós podemos dizer que os problemas sociais na Amazônia são muitos, pelos 14 anos que vivo na região. Podemos dizer que há uma ausência muito grande do estado brasileiro, por isso, popularmente se diz que se torna ‘terra de ninguém’, ou seja, a terra da disputa, tem mais força quem pode mais. Precisamos ter essa consciência de que cresce na Amazônia a ocupação de terras públicas, o desmatamento ilegal, a invasão das terra indígenas já demarcadas, a implantação da monocultura, onde o uso abusivo de agrotóxico vai deixando um rastro de morte muito grande. Cresce na Amazônia uma visão de que os povos são incapazes e que é preciso ocupar esses espaços já que eles não produzem. Por isso o problema social da Amazônia é grave, e exige por parte do governo essa mediação, onde o direito esteja a favor da vida, e da vida de todos, onde as leis sejam cumpridas, não podemos continuar com essa prática da impunidade. Por outro lado, cresce a mentalidade dos grandes projetos que não respeitam nada, nenhuma legislação, e trazem consequências desastrosas, seja para o meio ambiente, seja para a população mais pobre que é a menos respeitada nos seus direitos.
Qual é a sua avaliação sobre o avanço do agronegócio e do garimpo no desmatamento da Amazônia nos últimos anos; e no atual governo? De que forma ocorre? Existe diálogo ou política pública voltada para as populações locais?
Tem essa mentalidade de que a Amazônia é a última reserva agrícola, e com isso entram em choque dois modelos de desenvolvimento. O modelo predatório, que vai destruindo tudo, que não respeita nada, que coloca a selva amazônica no chão, queima, semeia o pasto para o gado e depois com o tempo chega a monocultura, a soja, e também outras como cana e eucalipto. Tudo isso vai trazendo consequências preocupantes para a região. Sobre as políticas públicas, quando olhamos as cidades da Amazônia, por exemplo, o saneamento básico e o acesso à água potável têm índices de pessoas que dispõem baixíssimos. Depois de 31 anos da promulgação da Constituição Federal, a grande maioria das terras indígenas e quilombolas não foram demarcadas, não há nenhum grupo de estudo, nenhum procedimento técnico. Mesmo que a Constituição preveja que os povos indígenas tenham uma educação diferenciada, isso é muito difícil de acontecer porque é a lei do menor esforço, ou seja, quanto menos investimento, melhor. Não querem que essas populações cresçam e sejam sujeitos de suas histórias. Esse avanço do desmatamento da Amazônia não é por acaso, é todo um projeto que está em curso, onde existe a compreensão de que se não produzir em larga escala para exportar, o Brasil fica mal na foto. É importante que as pessoas saibam que quem produz para colocar o alimento na mesa das famílias são as pequenas propriedades. As pessoas não usam só óleo de soja, carne de soja ou leite de soja, as famílias brasileiras comem muito mais do que isso. Não usamos só esse ou aquele produto de origem da cana ou do eucalipto.
Por isso que o avanço do agronegócio também empobrece a mesa das pequenas famílias, a nossa alimentação. Isso é preocupante. É muito difícil o diálogo, porque diálogo se faz em pé de igualdade, e hoje os pobres estão sendo, cada vez mais, enxotados e jogados na rua da amargura sem nada. Vemos as reformas trabalhista e da previdência, tudo isso, demonstra a concentração de renda em poucas mãos crescendo assustadoramente, e nós achamos isso tudo normal. Lembro do que o Papa falou na Bolívia ‘Nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos” esse é o grande desafio.
Sobre o crescente desmatamento da floresta, comprovado em números, quais as perspectivas para o próximo período? Como a discussão ambiental dentro da igreja pode auxiliar neste debate?
Nós precisamos dizer que a encíclica do Papa sobre a Casa Comum é muito forte. Nos temos uma documentação muito rica, o nosso problema enquanto católicos é a prática. Ao longo dos últimos tempos, a Campanha da Fraternidade desenvolvida anualmente pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em vários momentos tratou aquilo que diz respeito à casa comum, a questão da terra, água, biomas, Amazônia, povos indígenas, enfim, uma série de temáticas. Nós estamos sentido em Rondônia, de forma muito visível e palpável, o crescimento do número de igarapés que vem secando anualmente no estado. Eles secam, não porque há uma fúria por parte de Deus, mas pela nossa irresponsabilidade no desmatamento, em não respeitar as nascentes, as matas ciliares, como está previsto nos nossos códigos, escritos com muito sacrifício. Porém, agora, tudo foi flexibilizado e há um incentivo por parte do senhor presidente para essa prática que é assustadora, né. Quando a gente ouve o que foi feito, no Pará e em outros lugares no mesmo dia, com os incêndios, isso tudo revela uma mentalidade destrutiva e uma irresponsabilidade de todos nós diante da nossa responsabilidade com as gerações vindouras.
Qual a opinião do sr. sobre a ameaça à soberania nacional que envolve a Amazônia, estamos em risco?
Eu quero dizer que não são as ONGs, e não é a igreja que está internacionalizando a Amazônia, é o governo brasileiro, com o Congresso Nacional e com a anuência do judiciário. Quem está abrindo a Amazônia para as mineradoras internacionais é o governo, quem está desejando vender terras na região Amazônia para estrangeiro não são as ONGs, não é a igreja, é o próprio governo brasileiro. Quem está entregando a base aeroespacial de Alcântara com um acordo vergonhoso do Brasil com os Estados Unidos é o governo do senhor Jair Bolsonaro. Então, essa internacionalização é, sobretudo, por esse governo, que não tem coragem de defender a soberania nacional, e se submete de maneira inconsequente ao governo americano, ao dinheiro americano. É lamentável. Se alguém está abrindo as portas da Amazônia para o capital internacional é este governo que está aí.
Qual a importância da participação dos movimentos sociais com a igreja no Sínodo?
Nós podemos dizer que a grande missão da igreja é testemunhar a esperança, defender a vida ameaçada, a vida das pessoas e de toda a criação. Os movimentos sociais também têm esse empenho em defender a justiça, a dignidade, os sonhos dos pobres, e por que não dizer os sonhos da própria criação. É muito importante nesse processo de escuta, em Porto Velho, nós tivemos essa experiência bonita com vários movimentos sociais que se fizeram presentes e continuam participando das discussões do Sínodo, isso tudo vai nos enriquecendo nessa estrada de duas mãos, onde ninguém é mestre, todos nós somos alunos dessa escola da esperança, da fraternidade, dos sonhos, onde outro mundo é possível, da superação de um mundo que excluí, um sistema que excluí e que mata, para um caminho onde todos podem sentar ao redor da mesa. Somos extremamente agradecidos pela contribuição dos movimentos. Como a entrevista é para o MAB, quero destacar de modo especial, os nossos irmãos em Rondônia que tem uma presença de muita maturidade e desejo de caminhar juntos, onde não há nenhuma disputa de holofotes entre igreja e movimentos.