“Internacionalismo e soberania popular não se opõem. Só seremos soberanos se também formos solidários entre os povos”
Professor Carlos Vainer analisa o 4º Encontro Internacional dos Atingidos por Barragens e Crise Climática no contexto do avanço da extrema direita em todo o mundo, e defende uma transição energética popular que una soberania, solidariedade entre os povos e luta em todas as escalas
Publicado 10/10/2025 - Actualizado 31/10/2025

Às vésperas do 4º Encontro Internacional dos Atingidos por Barragens e Crise Climática, que acontecerá em Belém junto à COP30 e à Cúpula dos Povos, o MAB conversou com o professor Carlos Vainer, professor emérito do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur-UFRJ), e membro da Comissão Mundial de Barragens, que há mais de três décadas acompanha a luta contra a mercantilização da água e da energia. Nesta entrevista, ele analisa o cenário mundial marcado pela crise climática, pelo avanço das extremas direitas e pela financeirização do setor energético Além disso, ele resgata a trajetória que levou os atingidos do Brasil a se tornarem referência internacional.
Em formato ping-pong, a conversa aponta os desafios de construir uma transição energética popular, anticapitalista e internacionalista, enraizada no território, mas articulada em todas as escalas.
Professor, estamos nos preparando para o 4º Encontro Internacional dos Atingidos por Barragens, em meio também à expectativa da COP30 e da Cúpula dos Povos. Como o senhor lê o momento atual?
A crise em todo o mundo hoje é múltipla: econômica, política, geopolítica, e atravessada pela crise climática. Isso coloca a questão energética no centro, porque a queima de combustíveis fósseis é causa estruturante do aquecimento global. Ao mesmo tempo, há um crescimento internacional da extrema direita, com especificidades em cada país, mas com algo comum: uma parcela expressiva é negacionista do clima. Hoje, tem lideranças que dizem isso abertamente. Esse conjunto de fatores marca profundamente o contexto do 4º Encontro.
Para que os atingidos de todo o mundo cheguem até aqui, como essa articulação internacional dos atingidos foi se construindo?
No Brasil, a luta nasceu local, virou regional, depois nacional, para então caminhar para uma articulação internacional. Em 1987, ainda no calor da redemocratização, aconteceu a primeira reunião nacional de atingidos por barragens. Em 1989, vem o 1º Encontro Nacional; em 1991, o 1º Congresso Nacional e a fundação do MAB. Em 1992, a Rio-92 traz para o debate público a questão energética, mas majoritariamente pelas ONGs ambientalistas. Naquele momento, a presença dos atingidos como sujeito político do tema era residual.
A virada começou em 1995, com um encontro preparatório em Itamonte (MG), que reuniu representantes do Brasil, da Índia (o movimento do Vale do Narmada), do Chile (Bacia do Bio-Bío), das redes europeias e da International Rivers Network (EUA). Em 1997, aconteceu em Curitiba o 1º Encontro Internacional dos Atingidos por Barragens.
O Brasil conseguiu algo raro: um movimento nacional de atingidos. Por quê?
Pela escala do país e pelo número de barragens, aqui tivemos condições de consolidar um movimento nacional. Em muitos países, as lutas permanecem locais. Mesmo na Índia, com movimentos muito fortes, a articulação nacional nunca se consolidou por razões de dimensão, diversidade linguística e estrutura social (como o sistema de castas). Mais recentemente, o México estruturou um movimento nacional; fora isso, é exceção.
Que papel tiveram as redes internacionais nessa construção?
Foram decisivas. O MAB ainda estava nascendo enquanto articulação nacional e tinha poucos contatos externos. Redes ambientalistas – como a sediada na Califórnia – mediaram os vínculos com movimentos de outros países e, principalmente, com a Índia, cuja luta em Narmada, contra barragens financiadas pelo Banco Mundial, ganhou repercussão internacional. Esse apoio foi fundamental para trazer os indianos ao encontro e para expor contradições de grandes financiadores. Houve um momento, depois, em que parte dessas redes se sentiu ameaçada pelo fortalecimento dos movimentos de base e tentou construir seu próprio movimento internacional por cima. Isso gerou tensões. Mas, no início, a mediação delas foi valiosa.

Você costuma falar em “estratégia transescalar”. O que é isso?
Estratégia transescalar é entender que a mercantilização da água e da energia se organiza em todas as escalas: local, regional, nacional, internacional. Desde sempre, o setor elétrico e mínero-metalúrgico opera assim: empresas de engenharia e construção, fornecedores de equipamentos, consultorias, fundos, bancos nacionais e estrangeiros – todos articulados. Portanto, a nossa resistência também precisa ser transescalar: base territorial forte, articulação regional e nacional e internacionalismo. Se não há luta no território, não há movimento internacional que se sustente; e se não há articulação nacional e internacional, o território fica isolado diante de adversários globais.
Como mudou a estrutura do setor energético do nascimento do MAB para cá?
Nos anos 1980, o setor elétrico brasileiro era majoritariamente estatal (com o polo privado em construção civil, equipamentos e consultorias). A partir dos anos 1990, com a onda neoliberal, houve privatizações e parcerias que reconfiguraram o setor. Hoje, temos um ambiente muito mais privatizado e financeirizado, e isso altera o terreno da disputa, inclusive porque o interesse privado, por definição, é vender mais energia e bloquear modelos que reduzam a demanda ou descentralizem a geração.
E o cenário internacional? Você menciona uma virada após 2008.
A crise de 2008 abalou a globalização neoliberal. Países que a promoveram, passaram a renegá-la em vários aspectos; somou-se a isso a ascensão da extrema-direita com um nacionalismo xenófobo. O resultado é um quadro instável, com disputa geopolítica intensa, inclusive pela energia e recursos naturais. Destaque para a presença chinesa na África e na América Latina, inclusive em renováveis, que de “limpas” têm pouco quando organizadas sob lógica puramente mercantil. Nesse mundo mais fragmentado e bélico, o internacionalismo popular ganha relevância: não como bandeira abstrata, mas como necessidade estratégica.
Soberania popular e internacionalismo entram em choque?
Ao contrário. Soberania se fortalece com solidariedade entre os povos. A defesa de uma América Latina soberana passa por articular movimentos continentais – como o dos atingidos por barragens na América Latina – para enfrentar interesses imperialistas e do grande capital sobre bens comuns.
Como olhar a crise climática dentro desse tabuleiro?
Vejo dois campos dominantes. Um é o negacionista. O outro reconhece a crise, mas a transforma em negócio: mercado de carbono (o “direito de poluir” como mercadoria), “transição” que mantém a lógica mercantil e energívora do capitalismo. Mesmo as renováveis, se organizadas como fronteiras de negócio, produzem impactos: eólica ocupa grandes áreas, altera territórios e ecossistemas; solar, em larga escala, concentra poder e terra; grandes hidrelétricas, já conhecemos. A resposta popular precisa romper com a mercantilização da energia, reduzir a demanda antes de multiplicar a oferta e reconfigurar produção e consumo.
E quais seriam os pilares de uma transição energética popular?
Alguns eixos, na minha visão pessoal seriam esses, sempre lembrando que é um arranjo múltiplo:
- Economia de energia como política de Estado – Há estudos (como trabalhos do Greenpeace no caso brasileiro) indicando potencial de redução expressiva do consumo elétrico com eficiência e gestão da demanda;
- Mudar a inserção do Brasil na economia internacional: Hoje, ao exportar alumínio, minério, carne, “exportamos” água e energia embutidas. Somos um país primário-exportador, e isso nos condena a ser grandes consumidores de água e energia para o benefício de fora. Mudar isso derruba a pressão por novos megaprojetos;
- Cidades compactas e mobilidade coletiva – Nossas metrópoles são energívoras; a expansão periférica aumenta distâncias, transporte individual, congestionamentos, emissões. Planejamento urbano pode reduzir deslocamentos, estimular modos coletivos e baixar consumo;
- Tarifa zero como política energética – Costuma ser tratada só como política social, mas é também medida de transição energética: migra usuários do transporte individual para o coletivo, com impacto direto em emissões e energia, desde que venha com investimento pesado na capacidade e qualidade do sistema público;
- Geração descentralizada e popular – Fotovoltaica em telhados, cooperativas de energia, remoção de barreiras regulatórias e financiamento público para democratizar o acesso;
- Eficiência e financiamento inclusivo – Troca massiva para LED, refrigeração eficiente, retrofit de edificações. O Estado pode financiar e capturar a economia na conta para amortizar o investimento, de modo que a família não pague a mais no curto prazo e pague menos depois;
- Redes e perdas – Perdas técnicas em transmissão/distribuição no Brasil são relevantes, e linhas muito longas elevam perdas. Descentralizar e aproximar geração/consumo reduz desperdício;
- Campo e bioenergia descentralizada. Biodigestores para dejetos (como de suínos no Sul) geram biogás e adubo, melhoram o saneamento rural e produzem energia local;
- Planejamento público integrado – Energia, água, uso do solo, alimentos, mobilidade, organizados a partir do direito e não do negócio.
Você citou tecnologias que, vendidas como solução, acabam reforçando a lógica energívora. Você pode nos dar alguns exemplos?
Os Data Centers da economia digital consomem muita energia; difusão do automóvel elétrico pode virar mais do mesmo, se não vier junto de uma revolução no transporte coletivo. A saída capitalista típica é perguntar: “onde está a oportunidade de negócio?”, e não “como reduzimos demanda e impactos?”. Por isso insisto: eficiência e reorganização antes de novas ofertas.

Você poderia detalhar duas ideias muito concretas que apareceram aqui: tarifa zero e energia solar distribuída com apoio público?
Tarifa zero: além do efeito social, é a transição energética. Se a pessoa tem opção coletiva de qualidade e gratuita, migra do carro/moto. Para virar política de Estado, precisa de fonte de custeio estável, gestão metropolitana e investimento para evitar superlotação e queda de qualidade.
Solar distribuída: famílias pobres não conseguem arcar com o investimento inicial. O Estado pode financiar e “casar” o pagamento com a economia na conta (modelo de on-bill financing). Por alguns anos, a família paga o mesmo que pagava; terminado o período, paga menos porque fica com o ativo. Isso vale para LED, geladeiras eficientes etc. É política social e energética ao mesmo tempo.
E quanto ao desenho das cidades?
Cidades compactas e adensamento com infraestrutura reduzem deslocamentos, emissões e demanda energética. Hoje, o capital imobiliário-financeiro empurra a expansão periférica: terra barata, urbanização nova, impermeabilização, mais vias e mais energia. Também é possível regular o parque construído. Por exemplo, obrigatoriedade de fotovoltaica em novas edificações ou telhados preparados para receber painéis, integração com sombreamento, ventilação, reuso de água. Isso muda o patamar de consumo urbano.
Olhando para a COP30 e para a Cúpula dos Povos, que papel tem o 4º Encontro no contexto desses outros dois grandes espaços políticos?
Recolocar o internacionalismo popular no centro. Vivemos em um mundo em que o discurso de “globalização” convive com fechamentos nacionalistas e guerras, mas o capital segue global e transescalar. Então a resposta precisa ser coordenada: território forte, articulação nacional e alianças internacionais. O 4º Encontro pode afirmar isso explicitamente e atualizar um programa de transição energética popular diante do novo contexto.
