COP 30 na Amazônia: quando o Brasil vai começar a ouvir, reparar e proteger os atingidos pelas mudanças climáticas?

Na reta final para a Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, o Brasil pode ver seu licenciamento ambiental ser desfigurado, tornando os atingidos ainda mais vulneráveis às mudanças do clima

Belém (PA), sede da COP 30. Foto: Amanda Paulino / MAB

Em meio à crise de hospedagens e infraestrutura de Belém (PA), cidade-sede da 30ª Conferência do Clima da ONU, o país está a pouco mais de dois meses do evento, com muitos desafios ambientais que devem ganhar os holofotes do mundo. Durante os dias 10 a 21 de novembro, a capital paraense vai sediar debates de extrema importância global entre Estados, governos e a sociedade civil. O objetivo principal é avaliar o progresso do Acordo de Paris, revisar as metas de redução de emissões e discutir ações concretas para frear o aquecimento global, como o financiamento climático (a iniciativas de contenção de emissões). E a insistência para a realização do evento na Amazônia, apesar das dificuldades de estrutura, não é sem propósito. O território deve ter destaque nos principais fóruns da programação. Mas o que pensam os brasileiros e, especialmente, os amazônidas, que são diretamente atingidos pelas mudanças do clima?

Para o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), não é possível desenhar soluções reais para os problemas ambientais do mundo sem ouvir as populações que são diretamente afetadas pelos desequilíbrios climáticos. Vale destacar que as mudanças climáticas afetam, desproporcionalmente, populações vulneráveis, como pobres, negros, indígenas, mulheres e crianças. Isso ocorre devido a fatores como localização geográfica, acesso limitado a recursos e infraestrutura, além de maior exposição a eventos climáticos extremos e seus impactos.

Por conta de contradições históricas do modelo econômico vigente no país, as populações que estão na linha de frente na luta contra a destruição dos ecossistemas naturais são as mais atingidas pelos efeitos devastadores das recentes tragédias ambientais, mesmo sendo as que menos contribuem com as emissões de gases responsáveis pelo aquecimento do planeta. São comunidades de pescadores, extrativistas, agricultores familiares, indígenas e quilombolas que vivem de atividades de baixo impacto e travam uma luta diária contra a insegurança, a perda de modos de vida e a violação de direitos humanos. Ainda assim, elas têm pouco ou nenhum espaço de representação nas discussões oficiais da COP, enquanto empresas do agronegócio, da mineração e do setor energético têm conquistado cada vez mais influência nas decisões da Conferência.

Cúpula dos Povos

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Por isso, durante a COP, os atingidos se organizam na Cúpula dos Povos, evento paralelo à cúpula oficial, organizado por movimentos sociais e organizações da sociedade civil. O evento busca fortalecer a participação social e a construção de soluções populares para a crise climática, indo além das decisões tomadas nas conferências oficiais da ONU.

“Nós acreditamos que a COP 30 no Brasil se constitui como uma janela importante, primeiro para reforçar a importância da luta das populações atingidas do Brasil e do mundo. Segundo, para colocar novamente no centro das discussões os problemas do modelo econômico atual de produção, que está relacionado não apenas à crise climática, mas à crise ambiental – numa perspectiva ampliada – à crise alimentar e à crise econômica, etc”, afirma Francisco Kelvim, um dos integrantes da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).


Apesar disso, para o Movimento, o debate das COPs segue muito pautado por diplomacias que atuam para defender os interesses de blocos econômicos e dos lucros das empresas de seus países. “Por isso, temos poucos resultados práticos ao longo de mais de 30 anos de conferências. De qualquer forma, esse é um momento importante para colocarmos em pauta as nossas denúncias sobre os problemas que os atingidos vivem no campo e na cidade, e apresentar nossas propostas de soluções baseadas em participação popular”, afirma Thiago Alves, integrante da coordenação do MAB, em Minas Gerais.

A pressão das organizações populares na luta por direitos das populações atingidas se faz ainda mais necessária em um ano que em que o Brasil podia ter seu licenciamento desfigurado. Mesmo com as tragédias ambientais que se tornaram recorrentes, o Congresso aprovou recentemente o Projeto de Lei 2.159/2021, o chamado “PL da Devastação”. A pressão das organizações populares foi muito importante para que o projeto não tivesse um impacto ainda mais grave na vida da população. Embora o presidente Lula tenha sancionado a nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental, ele vetou 63 dos quase 400 dispositivos, barrando pontos críticos como a ampliação da Licença por Adesão e Compromisso (LAC) para empreendimentos de médio potencial poluidor, a transferência irrestrita das competências de licenciamento para os estados, a supressão da proteção especial da Mata Atlântica, e a limitação da consulta a povos indígenas e quilombolas em processo de reconhecimento. Esses vetos são fundamentais para preservar padrões nacionais de licenciamento, evitar retrocessos graves e garantir participação e proteção social e ambiental — pautas centrais à COP 30.

Nesse contexto, a Cúpula dos Povos pretende ser um espaço de resistência contra as constantes ameaças de retrocesso ambiental no país. Além disso, é movimento de luta e construção de alternativas para um futuro mais justo, em que as vozes das comunidades afetadas pelas mudanças climáticas sejam ouvidas e suas demandas atendidas. Há mais de um ano, a Cúpula promove encontros preparatórios em diferentes regiões do país, para definir pautas prioritárias que serão debatidas no encontro.

Os desafios dos atingidos: insegurança e injustiça

Apesar da intensificação da mobilização popular neste ano de COP, a luta do MAB para garantir a proteção dos direitos dos atingidos é de longa data. O Movimento tem, historicamente, denunciado as consequências de um modelo econômico que causa a insegurança e a violação de direitos. Afinal de contas, o Brasil possui cerca de 24 mil barragens cadastradas na Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e muitas delas representam um perigo constante para as comunidades que vivem em seu entorno.

O rompimento das barragens de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), em Minas Gerais, são exemplos emblemáticos. O crime da Samarco/Vale/BHP Billiton, em Mariana, devastou a Bacia do Rio Doce, atingindo mais de 40 municípios. Em Brumadinho, 272 pessoas morreram e a lama tóxica da Vale soterrou o distrito de Córrego do Feijão. Passados quase 10 anos desde o primeiro rompimento, os atingidos continuam sem a reparação integral de suas perdas e os rios Paraopeba e Doce, permanecem contaminados. A falta de fiscalização e a impunidade se somam à dor das famílias, que ainda tentam reconstruir suas vidas em meio à injustiça.

Rio Paraopeba segue contaminado em Minas Gerais. Foto: Joka Madruga / MAB

Segundo Geisa Cristina Tomé, moradora de Betim (MG), as mudanças climáticas têm intensificado os efeitos dos rompimentos, que seguem afetando profundamente a vida dos moradores.

“Até hoje, as enchentes na Bacia do Rio Paraopeba arrastam rejeitos tóxicos para fora do leito, contaminando casas e quintais com metais pesados. Em Betim, na Colônia Santa Isabel, os alagamentos afetam até pavilhões onde vivem pacientes idosos, exigindo remoções e causando falta de água e energia. Quando os rejeitos secam, viram poeira tóxica levada pelo vento. É urgente que, durante a COP no Brasil, seja debatida a realidade de todos os atingidos pelos maiores crimes ambientais do país, para que se possa avançar em políticas de reparação e segurança”, afirma a atingida.

Além dos rompimentos, a gestão irresponsável de barragens também causa inundações devastadoras. Em Jequié, na Bahia, a abertura das comportas da barragem da Pedra, em 2021, causou enchentes que afetaram milhares de pessoas, desalojando famílias e destruindo casas. Esses eventos demonstram como as decisões de empresas e gestores podem impactar diretamente a vida das populações, especialmente as que já são mais vulneráveis.

De Norte a Sul, a crise climática atinge os mais vulneráveis

De acordo com a última pesquisa do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), mais de oito milhões de brasileiros vivem em áreas de risco de desastres naturais, como inundações e deslizamentos. A maioria dessas pessoas é de baixa renda, residindo em moradias precárias, em encostas e várzeas.

No Sul do país, as enchentes históricas que devastaram o Rio Grande do Sul em 2023 e 2024, são um retrato da crise e da necessidade de recursos para acelerar ações de reparação. Mais de 476 municípios foram afetados, com centenas de mortos e milhões de pessoas atingidas, de acordo com a Defesa Civil. A tragédia expôs a vulnerabilidade de cidades inteiras e a dificuldade de reconstrução em um cenário de eventos extremos cada vez mais frequentes. Os atingidos por essa catástrofe enfrentam a perda de tudo: suas casas, seus negócios, suas memórias.

Vista aérea do município de Eldorado do Sul, um dos municípios afetados pelas enchentes do Rio Grande do Sul em 2024. Foto: Francisco Proner / MAB

O impacto na saúde das populações também é imenso, com o aumento de doenças respiratórias, leptospirose, problemas de pele e traumas psicológicos. Para Juraci Padilha dos Santos, que viveu o extremo da crise climática nas enchentes de 2023 e 2024, no Vale do Taquari (RS), para que as iniciativas de superação desse cenário sejam efetivas, é preciso valorizar o ser humano e reconhecê-lo como potência de transformação. “Hoje em dia a gente vê a pessoa quase valendo menos do que o material. Nós estamos vivendo uma época em que somos descartáveis. É muito triste isso. O ser humano precisa ser reconhecido e valorizado como agente transformador. Só as pessoas podem fazer essa transformação, se forem respeitadas, reconhecidas e formadas em uma educação ambiental”, avalia dona Juraci. 

Amazônia entre secas e cheias devastadoras

Enquanto o Rio Grande do Sul tenta se recuperar das enchentes, a Amazônia vive ciclos de extremos. Relatórios do Cemaden mostram que, há anos, a região enfrenta secas prolongadas que afetam a navegação, a pesca e a vida de comunidades ribeirinhas, enquanto também sofre com cheias históricas. A seca de 2023, por exemplo, foi a pior em mais de um século, expondo o leito de rios como o Negro, isolando comunidades e gerando desabastecimento de água e alimentos. Por outro lado, o Rio Amazonas já atingiu níveis recordes de cheia, inundando cidades e florestas, destruindo plantações e moradias.

Para Cleidiane Vieira, integrante da coordenação do MAB no Pará, é muito representativo que a Conferência aconteça na região.

“Pela primeira vez, uma COP acontecerá na Pan-Amazônia e na América do Sul, uma das regiões mais biodiversas do mundo, e os olhos de todos estarão voltados para lá. Então, que o mundo também escute o que os rios têm a dizer. Como amazônida, devo pontuar que somos os povos que mais sofrem com a crise climática. No último ano, a Amazônia viveu uma seca histórica, afetando nossa alimentação, transporte e qualidade de vida. Quando os rios secam, o povo perde seu modo de subsistência, suas ruas para se locomoverem; perde o que comer, sua cultura e sua história”, alerta.

No Baixo Rio Madeira, em Porto Velho (RO), o rio virou deserto e mais de seis mil ribeirinhos têm abastecimento de água comprometido. Foto: Luis Gabriel / MAB

O Nordeste sofre com o avanço da grilagem de terras e o impacto de grandes projetos de infraestrutura, como a instalação de empreendimentos criados para produzir energia dita limpa que, muitas vezes, desrespeitam o modo de vida de comunidades tradicionais.

Cinco décadas após a construção da hidrelétrica de Sobradinho, que desalojou 72 mil pessoas no Sertão da Bahia, comunidades de Remanso, Casa Nova, Sento Sé e Pilão Arcado ainda lidam com as marcas da remoção forçada, e agora enfrentam novos empreendimentos, como parques eólicos e mineradoras. O atingido Neto Costa, morador de Sobradinho (BA), carrega até hoje as marcas da construção da barragem que desalojou sua família em Sento Sé. “A experiência de quem é atingido carrega para o resto da vida uma marca amarga, que fica na mente das pessoas para sempre. Nunca imaginamos deixar as barrancas do rio e sermos largados ao léu”, lembra.

Hoje, ele relata que a comunidade enfrenta novos impactos com a chegada dos parques eólicos e com o Parque Nacional do Boqueirão da Onça, que ameaçam a criação de cabras e ovelhas, base da economia local. Além disso, faltam estradas, água e políticas públicas. “A gente não perde a esperança de dias melhores, mas seguimos sofrendo intensamente esses impactos e a falta de ação dos governos”, afirma.

Comunidades atingidas pela Hidrelétrica de Sobradinho, agora são revitimizadas por conta da instalação de parques eólicos no Norte da Bahia. Foto: Natália Fonseca / Projeto Colabora.com.br

Além disso, algumas regiões, como o Oeste da Bahia, sofrem com a disputa por água, relacionada, principalmente, ao uso intensivo dos recursos hídricos pelo agronegócio, especialmente na região do Cerrado, onde grandes lavouras de soja, milho e algodão consomem altos volumes de água para irrigação. Essa exploração tem causado o rebaixamento de aquíferos, diminuição da vazão de rios e conflitos com comunidades tradicionais, ribeirinhas e pequenos agricultores em municípios como Correntina e Riachão. 

O contraste da COP 30: compromisso global e retrocesso interno

Mesmo com esse cenário complexo, os dirigentes do MAB acreditam que a COP 30 em Belém é uma oportunidade para o Brasil mostrar que está disposto a enfrentar essa crise, ouvir as vozes dos atingidos e apresentar soluções que coloquem a vida e o meio ambiente à frente do lucro.

Francisco Kelvim, explica que o MAB está preparando uma série de intervenções na cidade de Belém durante a COP, principalmente o IV Encontro Internacional de Comunidades Atingidas por Barragens e Crise Climática, que vai acontecer na região no início de novembro. “Os atingidos do mundo se encontrarão em Belém, apresentando uma resposta coletiva a crise que vivemos, o MAB também se juntará à Cúpula dos Povos naquela oportunidade. Portanto, será um momento de denúncia e de anúncio, um espaço de mobilização popular”, afirma.

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