A água baixou, mas a enchente não passou
Onde a vida vale menos: como as enchentes no Rio Grande do Sul se relacionam com outros crimes ambientais em um sistema onde o lucro está acima de tudo
Publicado 03/07/2025

A dor no mundo, tanto individual quanto coletiva, parece intransponível. Como testemunhar a dor e não nos tornarmos insensíveis a ela? Como transformar o luto em ação? Meu trabalho e solidariedade com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) começaram em 2018 e, sempre que estou em comunidade com o MAB, lembro-me do poder do amor e da solidariedade.
Em junho e julho de 2024, estive em espaços com o MAB em diferentes partes do país, incluindo 18 dias no Rio Grande do Sul, na Cozinha Solidária de Canoas. Todos os dias, sem folga, a cozinha preparava quase 1.000 refeições para entregar às pessoas nas regiões mais atingidas pelas enchentes catastróficas. Embora a maior parte do meu tempo tenha sido passado na cozinha ou nas comunidades onde a cozinha fornecia marmitas (as Ilhas, Rio Branco e Sarandi), perto do fim do meu período, passei um dia em Estrela – onde o MAB tinha outra cozinha que produziu algumas centenas de refeições por dia – e nas comunidades vizinhas do Vale do Taquari. Alguns lugares ali pareciam ter sido alvo de uma bomba. Até onde a vista alcançava, parecia uma zona de guerra. A marca da água no Vale do Taquari foi inacreditável. Assim como a realidade, que a água permaneceu 30 dias em cima dos tetos das casas em Canoas, é inacreditável. Mas aconteceu. E não passou.

Em julho de 2025, voltei para o Rio Grande do Sul. Foi um ano depois, mas em alguns bairros de Canoas e no Vale do Taquari, parece que só uma semana passou desde a enchente. A água baixou, mas a enchente não passou. Em Canoas, embora muitas pessoas tenham retornado para suas casas, para muitas outras, esse não foi o caso. Eu falei com dezenas de pessoas e todas falaram mais ou menos isso: “Não tomo a água da torneira”, apesar de pagarem muito por água e energia. O preço da luz é um roubo, realmente. Uma moradora de Canoas me disse: “A causa da enchente é uma imprudência” por parte do governo. Ela também disse algo que mexeu com todos nós: “A gente pode perder tudo de novo”, e contou: “minha casa ficou toda molhada”. Essa frase expressa bem o que eu percebi durante a minha semana na região: muitas casas ficaram molhadas, com as paredes, teto e chão úmidos, com condições desumanas pra viver. “Nosso nariz já está acostumado com o fedor”, relatou uma outra moradora atingida de Canoas. Enquanto estou escrevendo isso, muita gente tem medo de que as enchentes aconteçam de novo. Um ano depois, a água baixou, mas a enchente não passou e a água pode subir de novo.
A questão da moradia e da saúde das pessoas não pode ser separada da questão ambiental. Em uma reunião dos moradores no Vale do Taquari, uma moradora falou sobre as enchentes de 2024: “É uma dor coletiva, uma dor na alma”. Ela argumentou que a questão das enchentes é “uma questão climática, do aquecimento global”, e ressaltou que “é uma questão global”. Para ela – e outras pessoas – as enchentes e a falta de resposta do governo, mesmo um ano depois, são sinais de uma realidade ainda maior: o problema de um sistema econômico e social em que vale o lucro em cima da vida. Ela falou sobre como o planeta não quer as bombas nucleares dos Estados Unidos, que também fazem parte das mudanças climáticas. E ela tem muita razão: o maior emissor institucional de C02 é o exército dos EUA – e está isento de reportar essas emissões em acordos de redução de emissões.
Uma outra pessoa do Vale do Taquari disse que “o meio ambiente pediu socorro”, e que a gente precisa “plantar a vida”, precisa de uma outra cultura. Isso converge com as palavras de uma outra moradora em Canoas: “O verão é um inferno e o inverno está diferente”. Para ela, isso é mudança climática. Outras pessoas também falaram sobre isso, incluindo os problemas com desmatamento e o agronegócio. A mineração e o agronegócio no Brasil trazem morte, porque também buscam o lucro acima da vida.
Nos espaços do MAB, é de fundamental importância discutir como a mudança climática é uma crise iminente e quanto nossas ações precisam mudar. Pessoas já morreram por causa da mudança climática. Pessoas têm morrido por causa da mudança climática. Mas isso também não significa o fim do mundo para todos. Os ricos podem escapar. Os pobres, não. Como uma palestrante falou em uma reunião do MAB no Rio de Janeiro em 2024: “somos atingidos pelo modelo de sociedade”. Vemos isso no Rio Grande do Sul: quem tem recursos pode limpar melhor suas casas, ficar com suas famílias, se mudar. Mas as pessoas mais vulneráveis e marginalizadas morreram e morrem, vivem em barracas na beira da estrada, sem aquecimento, saneamento, água ou comida. São esquecidas. O sistema econômico vê suas vidas como “descartáveis”.

O sistema que desmonta a floresta, minera a terra e constrói barragens, é o mesmo que criou bombas pra cometer genocídio em Gaza, e o mesmo sistema que arma a polícia pra matar pessoas negras nos Estados Unidos, assim como no Brasil. É o mesmo sistema que prende injustamente as pessoas, incluindo dois companheiros do MAB da Bahia, Solange e Vanderlei, presos desde maio. E para mim isso é um crime. O sistema capitalista é violento. E com a mudança climática, essa violência só vai se tornar pior. Antes de chegar ao RS, participei da Jornada Nacional de Luta das Mulheres Atingidas: Para Enfrentar o Fascismo, a Crise Climática e Avançar nos Direitos, onde entre as principais reivindicações das mulheres atingidas, destacam-se a regulamentação e aplicação da Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas (PNAB), a criação de planos de segurança para as populações impactadas por barragens, grandes projetos e mudanças climáticas e o enfrentamento da devastação ambiental promovida pelo setor do agronegócio no país.
A frase do MAB, que desde 2018 eu falava muito – incluindo cada dia em 2024 na Cozinha Solidária onde estávamos montando as marmitas – “Águas para vida, não para morte”, a cada dia significa mais e mais pra mim. Água permite vida. Mas. também, a água pode trazer a morte. Precisamos de um modelo energético, um modelo de vida onde o lucro não valha mais que a vida.
A realidade é que a maioria das pessoas desse mundo está muito perto de ser atingida por enchentes, barragens, mineração, mudança climática ou mesmo pelas bombas imperialistas caindo no seu teto e matando suas crianças, deixando-as sem teto, sem comida, sem água e sem saúde. E é muito importante não naturalizar isso. Eu moro na Carolina do Norte (EUA), onde poucos meses depois das enchentes no Rio Grande do Sul, um furacão atingiu a cidade de Asheville, em um lugar onde as pessoas no passado iam para escapar das tempestades. As imagens parecem as imagens do RS. O que aconteceu no território gaúcho em 2024 não foi um desastre natural, do mesmo jeito que o que aconteceu em Asheville em 2024, ou Brumadinho em 2019, ou Mariana em 2015. Todos foram crimes. No mundo, os políticos e as empresas sacrificam a vida pelo lucro.
Todos somos atingidos pelo extrativismo, pela mineração, pelas mudanças climáticas e pelas políticas de água e energia. E por isso, a gente se organiza. A gente grita. A gente imagina. Juntos, vamos construir um novo mundo. É possível. O MAB nos ajuda a trabalhar juntos para entender o que significa ser humano e construir a sociedade que queremos. A luta continua!
