Militantes do MAB seguem presos após denúncias fraudulentas de grileiros do Oeste da Bahia
Movimento dos Atingidos por Barragens denuncia perseguição política e reivindica liberdade para Solange Moreira e Vanderlei Silva, detidos há mais de um mês
Publicado 20/06/2025 - Atualizado 22/06/2025




Desde o último dia 16 de maio, Solange Moreira e Vanderlei Silva (conhecido como Badeco) permanecem detidos no Rio de Janeiro (RJ), após serem interceptados no aeroporto Santos Dumont – durante uma viagem de férias. A prisão se deu por conta do cumprimento de um mandado expedido na Bahia sob alegação de invasão de terras. O pedido de soltura feito pela advogada da família, Ana Paula Moreira, e pela Defensoria Pública foi negado. Também foi solicitado um habeas corpus, que ainda vai ser pautado na primeira turma do Tribunal de Justiça. A expectativa é o que o casal seja solto após a análise do pedido, tendo em vista que o uso de justificativas descabidas para a prisão preventiva contraria abertamente a lei.
Segundo Juliana de Athayde, advogada da Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR-BA), que acompanha o caso, os dois estão sendo criminalizados por sua expressiva atuação na defesa da sua comunidade Brejo Verde, em Correntina (BA), recorrentemente atacada por grileiros. Após invadirem a comunidade na tentativa de construir casa e apropriar-se ilegalmente do território, esses grileiros denunciaram Solange, Vanderlei e outras quatro pessoas por “invasão”, sob falsa alegação de serem proprietários das áreas. Após a detenção, o território tornou a ser invadido e houve destruição de cercas e de um rancho da comunidade. A prisão do casal gerou grande revolta na comunidade e entre organizações sociais do estado.
Além de atuarem no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), os dois se envolvem ativamente em diferentes frentes da vida social local. Solange é agente comunitária de saúde, catequista e coordenadora de culto dominical. Já Vanderlei é agricultor, motorista e proprietário de um ônibus que faz o transporte dos moradores para a sede do município. Juntos, os dois atuam há décadas na luta contra os fazendeiros que articulam ações armadas de invasão de terras na região. O juiz do caso alegou falta de residência fixa pra justificar a prisão preventiva do casal.

A escalada da violência no campo no Oeste baiano
O caso não é isolado. A escalada de violência contra comunidades tradicionais cresce com o avanço do agronegócio na região. O Comitê Brasileiro de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos (CBDDDH) relata diversos conflitos violentos no território. Em 2023, a ONG Repórter Brasil denunciou uma série de ataques a comunidades de fundo e fecho de pasto em Correntina e no município de Formosa do Rio Preto, também no Oeste baiano, incluindo assassinatos, tortura de moradores e incêndio de casas por parte de grileiros que tentam se apossar de terras coletivas das comunidades locais. Nos últimos anos, a Procuradoria Geral do Estado da Bahia conseguiu bloquear as matrículas indevidas de 19 propriedades rurais que incidiam sobre a área de uma única comunidade (Capão do Modesto). Ainda, assim, as matrículas falsificadas seguem se alastrando.
Integrante da coordenação nacional do MAB na Bahia, Temóteo Gomes explica que o ataque às comunidades tradicionais do município ocorre desde a década de 1970. “As famílias que são fecheiras e participam do MAB vêm sendo ameaçadas por defenderem seus territórios e suas águas”. Ele afirma que, além de lutar contra o avanço do agronegócio nessa região, as comunidades também enfrentam, há décadas, a ameaça da construção de grandes barragens no território que podem destruir o modo de vida das famílias, que dependem diretamente dos rios da região para a sua sobrevivência.
“Todas essas pessoas que hoje estão sendo perseguidas e acusadas são reconhecidas historicamente na região pelo compromisso com a defesa dos territórios tradicionais, das águas, dos direitos humanos e da vida. Trata-se de uma prisão política e de criminalização das comunidades que lutam contra a grilagem de terras e expropriação dos territórios no Oeste da Bahia”, afirma a coordenação do MAB em nota.
Para Temóteo, a prisão reacende o debate sobre a criminalização da luta por territórios tradicionais, revelando a urgência da regularização fundiária na região.
A falta de regularização das Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto




A Constituição da Bahia reconhece o direito à posse das terras para as comunidades de Fundo e Fecho de Pasto desde 1989, com a promulgação da Constituição Estadual de 1989, especificamente no Artigo 179, Parágrafo Único.
As famílias que vivem nesse tipo de comunidade estão na região há cerca de 300 anos. Nesse tempo, desenvolveram um jeito de viver nos ecossistemas locais que passa pelo compartilhamento de áreas comuns para soltar o gado, colher os frutos e remédios e plantar roças. A criação de animais é feita nas chamadas áreas de fundo de pasto, dentro da comunidade, ou nos fechos, áreas coletivas longe das moradias, onde o gado é levado sazonalmente para pastar.
Os chamados ‘fecheiros’ possuem uma identidade fortemente ligada ao vasto conhecimento dos biomas do Cerrado e da Caatinga, onde vivem, e à preservação desses ecossistemas por meio do manejo sustentável dos seus recursos.

Em 2021, o governo do Estado certificou 146 desses territórios. As áreas onde vivem Solange e Vanderlei são certificadas, mas ainda não foram demarcadas ou regularizadas. Isso significa que o Estado reconhece que a comunidade existe, mas ele não regularizou o território ainda, o que os deixa mais expostos à violência agrária. “Boa parte das terras do oeste da Bahia são devolutas (terras públicas sem destinação), e neste cenário, com o Estado sem atuar diligentemente, a grilagem se prolifera”, afirma Juliana.
As terras das comunidades passaram a ser cobiçadas com a rápida expansão das lavouras na região. Segundo dados da ONG Repórter Brasil, enquanto a área de soja cultivada em todo o Cerrado brasileiro (incluindo Mato Grosso, o maior produtor nacional de grãos) cresceu 170% entre 2000 e 2021, na área conhecida como Matopiba (Maranhão, Tocantins e Bahia), o salto proporcional foi cinco vezes maior.
É neste contexto que muitas fazendas acabam sendo registradas irregularmente dentro do perímetro dos territórios pleiteados por comunidades tradicionais. Por isso, a AATR-BA atua na defesa de direitos e assistência jurídica de comunidades que têm sido vítimas de ações violentas de grileiros por trás dessa.
Avanço do agronegócio no Oeste Baiano e a grilagem de terras

De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), Correntina é o município com mais registros de conflitos na Bahia, com 132 ocorrências entre 1985 e 2023. “A grilagem de terras, em suas diversas modalidades, é um problema persistente no Oeste da Bahia. A prática geralmente envolve a falsificação de documentos, muitas vezes por meio de esquemas que articulam cartórios de registro de imóveis, advogados e, infelizmente, até mesmo juízes”, afirma Juliana. Vale lembrar que, em 2024, três juízes da Bahia foram afastados dos cargos por atuarem com agiotagem, venda de sentenças e grilagem de terras no estado, no caso conhecido como Operação Faroeste.
A advogada explica que uma prática comum é a manipulação de matrículas de imóveis: uma matrícula de 10 hectares, por exemplo, pode ser ampliada para 100, 200, 300 hectares ou se multiplicar muito mais e ter sua localização alterada. Isso é particularmente comum em processos de inventário no Oeste da Bahia, que frequentemente dão origem às matrículas fraudulentas.
No caso da comunidade de Brejo Verde, os grileiros Facundo Fachin e sua esposa Renilde Fachin apresentaram à Justiça um documento de usucapião cartorial e um Cadastro Ambiental Rural (CAR), que não comprovam a propriedade das terras. “O usucapião cartorial é uma das formas mais grosseiras de grilagem e o CAR é um documento declaratório. Você mesmo declara no sistema que aquela terra é sua para fins ambientais. Não existe uma checagem de lastro de propriedade efetiva. É um documento que sozinho sequer comprova a posse, quem dirá propriedade do imóvel, mas, muitas vezes, é aceito como tal.”, ressalta a advogada.
Outra situação comum na região é a chamada grilagem verde, uma prática criminosa que envolve apropriação ilegal de terras públicas com vegetação nativa preservada, geralmente com o objetivo de registrar essas áreas como reserva legal para atividades agropecuárias ou outros empreendimentos. Essa modalidade de grilagem se diferencia da grilagem tradicional por focar em áreas ainda não desmatadas, utilizando a preservação como fachada para legitimar a posse da terra. Ela se dá por meio de cadastros de reserva legal, que é uma obrigação ambiental de preservação de percentual das terras das fazendas.
“É importante ressaltar que, ao se deparar com essa ‘grilagem verde’, a análise superficial pode levar a crer que se trata de uma área que busca preservação ambiental e que a comunidade está impedindo isso. No entanto, a realidade é outra: são os fazendeiros que burlam a legislação ambiental, alocando essas reservas legais em terras que não lhes pertencem e que estão preservadas justamente pelas comunidades que fazem uso secular dessas áreas”, analisa Juliana.
Ato de solidariedade dos movimentos sociais
Em 23 de maio, dezenas de movimentos populares e organizações políticas da Bahia se reuniram no Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), no bairro da Federação, em Salvador, para um ato de solidariedade aos militantes. A ação denunciou a criminalização da luta popular e o aumento da violência no campo no estado, exigindo a liberdade imediata dos atingidos e fecheiros.
Além do CEAS, estiveram presentes no ato organizações como o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), a Comissão Pastoral da Terra (CPT-BA), o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), a Associação de advogados de Trabalhadores Rurais (AATR-BA), a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), o grupo de pesquisa Geografar. Além de professores universitários e intelectuais.
Também houve um ato popular no no Fórum de Coribe pedindo a liberdade do casal, já que a ação está correndo nesse município, que é vizinho à Correntina.
Leia aqui a nota completa do MAB sobre a prisão.
