11 meses após enchentes de 2024, atingidos enfrentam novos temporais no Rio Grande do Sul

Comunidades atingidas reivindicam participação política no processo de reconstrução do estado, moradia digna, direito à saúde e medidas de prevenção em relação a possíveis novos desastres

Manifestação contra a gestão da prefeitura e do governo do Estado no centro de Porto Alegre, no final do último mês de maio. Passado quase um ano, crise climática e humanitária ainda aflige comunidades atingidas por falta de perspectiva de moradia definitiva. Foto: Francisco Porner
Manifestação contra a gestão da prefeitura e do governo do Estado no centro de Porto Alegre, em maio de 2024. Foto: Francisco Proner

Passados 11 meses das enchentes de 2024, na tarde de ontem (31), um forte temporal causou transtornos em Porto Alegre e região metropolitana, com chuvas intensas e ventos que chegaram a 110 km/h. A tempestade destelhou casas e provocou a queda de árvores em diversos pontos da cidade, como no Centro Histórico e nos bairros Independência e Menino Deus. O temporal também gerou alagamentos e afetou o abastecimento de água, já que as estações de tratamento Moinhos de Vento, São João e Belém Novo ficaram sem energia.

A Empresa Pública de Transporte e Circulação registrou bloqueios no trânsito devido à queda de árvores e galhos. A Defesa Civil de Porto Alegre havia emitido alerta de temporal, raios, rajadas de vento e granizo também para a manhã de terça (01). O acumulado de chuva pode chegar a 50 mm, segundo o órgão. Em diferentes bairros, equipes trabalham para restaurar os serviços essenciais e o fornecimento de energia.


Quase um ano de luta por reparação e justiça

O temporal assusta moradores que ainda tentam superar o trauma da maior tragédia ambiental do estado. Mesmo passados 11 meses, os números ainda chocam: 2,3 milhões de pessoas atingidas, 183 mortos, 27 desaparecidos, 98,6 mil desabrigados e 701,4 mil desalojados.

Mais do que números que somam prejuízos, esses dados representam o resultado da falta de preparo do estado para enfrentar situações climáticas extremas. Diante da negligência do poder público estadual, as inundações de maio destruíram milhares de casas e viraram de cabeça para baixo a vida de milhões de pessoas. Tentando superar o trauma gerado por um dos maiores desastres naturais do país, a população ainda sofre com a precarização de diversos espaços e serviços públicos, que, até hoje, não foram totalmente restabelecidos.

O Mapa Único Plano Rio Grande do Sul (MUP) aponta 1.247 equipamentos públicos atingidos. Entre eles, estão 782 escolas e instituições de ensino superior; 243 hospitais e unidades de saúde, incluindo pronto atendimento; 111 bibliotecas e museus; e outras 111 estruturas voltadas ao atendimento em desenvolvimento social e segurança. Além disso, em muitos locais, continuam prejudicadas as pontes, estradas, sistemas de esgoto, drenagem das águas da chuva, distribuição de energia elétrica e abastecimento de água.

Durante esses 11 meses, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) atuou de forma ininterrupta no território com ajuda emergencial, cestas básicas, refeições, acolhimento, escuta, articulação com diferentes esferas do poder público e apoio jurídico. Hoje, entre as principais reivindicações dos atingidos organizados no Movimento, estão o direito à moradia digna – muitas famílias ainda estão alojadas em abrigos – à proteção e segurança das comunidades atingidas, à segurança alimentar, o acesso à energia elétrica e à água, e à reconstrução das estruturas públicas de saúde e educação. Além disso, os moradores também lutam por participação e representatividade no processo de reconstrução do estado.

Moradores convivem diariamente com os rastros da tragédia

Basta uma caminhada rápida pelo Mathias Velho, bairro mais populoso do município de Canoas, para ver, ainda hoje, os rastros da enchente. Além das marcas da água suja nas residências, os amontoados de lixo nas ruas deixam evidente que os efeitos da tragédia ainda são sentidos pela população em diversos aspectos.

Rosi Verônica de Oliveira, que nasceu e cresceu no bairro, denuncia a cobrança abusiva de água e energia, com destaque para a taxa de esgoto, que corresponde a 70% do valor da água. A reclamação dos moradores é que o valor não é compatível com os serviços que foram precarizados após as enchentes, especialmente no caso do esgoto. “Está tudo entupido! Quando chove, tudo transborda, mesmo pagando essa taxa altíssima”, diz a moradora. Além disso, Rosi conta que não pode consumir a água que chega na torneira da sua casa: “O gosto é horrível. Não tem como cozinhar. Se você fizer um arroz, vai sentir o gosto. O café também não dá para fazer. Temos que comprar bombonas de água para poder cozinhar. Mesmo para tomar banho, você sente o cheiro da água no corpo”, denuncia.

Rosi de Oliveira, atingida de Canoa denuncia taxas abusivas de energia, águae esgoto, mesmo com precariedade dos serviços no pós enchente. Foto:  Victória Holzbach / MAB
Rosi de Oliveira, atingida do município de Canoas, denuncia taxas abusivas de energia, água e esgoto, mesmo com precariedade dos serviços no pós enchente. Foto: Victória Holzbach / MAB

A moradora ainda aponta a dificuldade com a escola e o pronto socorro. “A escola da minha filha tem aula um dia sim, outro não, porque ainda tem um prédio que não foi arrumado. O pronto socorro não está funcionando, e o posto de saúde não tem vacina, porque a geladeira não funciona”, conta. Por fim, Rosi também menciona os efeitos psicológicos na comunidade e o medo da população, especialmente das crianças, quando começa a chover. “Muitas vezes, as escolas chamam os pais quando começa a chover, porque as crianças começam a chorar”, conclui.

Muitos atingidos do Vale do Taquari ainda vivem a angústia de não ter para onde ir. Foto: Giulia Morschbacher / Resgate+
Muitos atingidos de Lajeado, no Vale do Taquari, ainda vivem a angústia de não ter para onde ir. Foto: Giulia Morschbacher / Resgate+

Alexania Rossato, integrante da coordenação nacional do MAB, explica que existem dois grandes desafios em momentos diferentes de uma tragédia dessa proporção: o da emergência — durante e logo após a enchente — e o da reconstrução, quando é preciso focar na articulação dos atingidos, visando a luta por direitos coletivos, como a moradia, a saúde e a segurança, diante a intensificação dos extremos climáticos.

No âmbito da emergência, desde que as enchentes atingiram o Rio Grande do Sul, o MAB distribuiu, de maio a outubro, mais de 246 mil refeições, com o apoio de 132 militantes. Alexania lembra que o Movimento encontrou nas cozinhas solidárias, organizadas durante a emergência, uma porta para chegar às comunidades e começar a formar os grupos com a população atingida. “A gente não consegue fazer nada sem que os atingidos estejam organizados. Ainda em agosto, começamos a consolidar os grupos e a construir, com essas famílias que estavam se organizando, sua pauta, elencando suas principais necessidades.” A articulação inclui reuniões com o Ministério da Reconstrução e apresentações das reivindicações das populações atingidas aos governos estadual e municipais.

Para Alexania, a questão da moradia é a mais emergencial. Ela relata que, na região metropolitana, em Porto Alegre e em parte do Vale do Taquari, é urgente se criar uma política para reformar as casas atingidas que podem ser reabilitadas. Segundo ela, outra demanda é criar uma solução para moradores de residências atingidas em bairros ribeirinhos, próximos ao Rio Taquari, onde não é possível voltar a viver.

Durante este ano, foram disponibilizadas três opções aos atingidos: o programa Compra Assistida, que oferece até R$ 200 mil para a compra de um imóvel; o Aluguel Social, de R$ 1 mil mensais por até 12 meses; e o Estadia Solidária, para famílias que precisam ficar em abrigos ou casas de amigos/parentes, oferecido para famílias com renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa (R$ 706,00). Ainda no território afetado, outra situação desafiadora, que tem exigido grande luta do movimento, é em relação às famílias do Bairro Sarandi, em Porto Alegre, que estão sendo pressionadas arbitrariamente para deixarem suas casas às pressas para a reforma do dique no local.

Entretanto, Alexania alerta que esses programas impõem uma burocracia extrema e não respeitam as individualidades de cada família, como a relação com a comunidade, a faixa da renda atual (e não de antes da enchente) ou as necessidades especiais de algumas pessoas. “O que o MAB propõe como pauta é a criação de políticas de reassentamento das comunidades inteiras em regiões altas, protegidas de enchentes. Pautamos que o governo federal crie uma política especial, que mantenha os vínculos comunitários, familiares e de vizinhança, sem segregação por renda”, afirma.

Ação Civil Pública Estruturante: a luta pelo acesso à justiça

Uma importante iniciativa dos atingidos neste período, realizada pela Associação Nacional dos Atingidos por Barragens (ANAB), foi a sua habilitação como parte da ação civil pública estruturante, ajuizada pelo Ministério Público Federal, por meio da Procuradoria da República. A ação, movida contra nove municípios do Vale do Taquari, o Estado do Rio Grande do Sul e a União, visa discutir e analisar a efetividade de políticas públicas em favor das populações atingidas.

O advogado e militante do MAB em Arroio do Meio, Djeison Diedrich, explica que esse tipo de ação “parte do pressuposto de que não é possível definir o pedido antes de começar o processo, o que permite flexibilidade do objeto”. Ou seja, o que será reivindicado pela ação é definido ao longo do tempo. Durante uma série de audiências de setembro a dezembro de 2024, foram discutidas as situações atuais dessas populações, com destaque para as famílias que permanecem sem moradia, muitas delas ainda não identificadas.

A ação também prevê a análise das listas enviadas pelas prefeituras com os nomes dos possíveis beneficiários, que, de modo geral, apresentam poucas pessoas, considerando a realidade dos municípios e a fragilidade na busca ativa das prefeituras pela população atingida.

Atingidos do Vale do Taquari ainda vivem a angústia de não ter para onde ir. Foto: Giulia Morschbacher / Resgate+
Atingidos do Vale do Taquari que perderam suas casas aguardam moradia definitiva. Foto: Giulia Morschbacher / Resgate+

Djeison destaca a importância da iniciativa, apontando que a ação tem sido fundamental para pressionar por políticas de reparação e que já deu alguns passos, ainda que pequenos, no contexto geral do processo: “Com algumas prefeituras da região, foi somente por meio da ação que conseguimos dialogar e tivemos acesso a informações importantes que antes não sabíamos, como a relação entre os números de atingidos e os inscritos nos programas pelas prefeituras”, relata.

A disputa pelo reconhecimento

O último levantamento publicado pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM), com base nos dados da Defesa Civil, aponta que mais de 104 mil moradias foram danificadas e outras 9,3 mil foram destruídas em 478 dos 497 municípios do estado.

Apesar dos números, tem sido um desafio constante para os atingidos serem reconhecidos como tal, o que facilitaria o acesso aos programas de reparação do estado. Um exemplo disso, segundo Alexania, é que cada prefeitura tem critérios diferentes para reconhecer as populações como atingidas.

“Não podemos considerar atingido somente quem teve a casa destruída pela enxurrada. Todos tiveram suas casas comprometidas, tiveram que sair correndo ou ainda sofreram com problemas de saúde causados pelas enchentes. Esses também são atingidos”, alerta coordenadora, que complementa: “Não pode ser a vontade de um prefeito que define se a pessoa é ou não atingida.”

Djeison reforça a angústia das famílias, que vivem sempre na insegurança de não saber se seus nomes estão nas listas de pessoas que serão contempladas pelos programas do governo federal. Segundo o advogado, o procedimento inicial para acessar esses programas é sempre o mesmo: “identificação das famílias (pelas prefeituras). Somente se cumprirem os requisitos, elas serão elegíveis para os programas”, explica.

Luta à frente!

“Os 11 meses que se passaram desde a grande tragédia no Rio Grande do Sul, evidenciam a ineficácia dos governos no atendimento às necessidades mais urgentes da população. A enchente ainda não terminou para os atingidos e o MAB permanece ao lado dessas populações em busca de reparação”, afirma Alexania.

Esse é o primeiro conteúdo da série “1 ano das enchentes no Rio Grande do Sul”, série especial produzida pelo Coletivo de Comunicação do MAB, relatando a situação atual das populações atingidas, um ano após a grande enchente que devastou o estado em maio de 2024.

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