A desigualdade de gênero e o impacto dos crimes ambientais e das mudanças climáticas na vida das mulheres
No Dia Internacional da Mulher, precisamos fortalecer a luta das mulheres que são protagonistas na resistência contra as principais injustiças ambientais e sociais em todo o país
Publicado 08/03/2025 - Atualizado 08/03/2025

A luta das mulheres em contextos de crimes e desastres ambientais e mudanças climáticas no Brasil tem se mostrado cada vez mais urgente. Desde o rompimento da barragem de Mariana, em Minas Gerais, até as cheias no Rio Grande do Sul, as mulheres têm sido protagonistas na resistência e nas ações de recuperação dos territórios, enfrentando desafios que envolvem questões de gênero, racismo e as desigualdades estruturais de seus territórios. Através de suas experiências, elas revelam como a desigualdade de gênero amplia os impactos desses desastres e como suas histórias de resistência têm sido fundamentais para a reconstrução das comunidades atingidas.
Os relatos de mulheres atingidas no Brasil reforçam os resultados de estudos que apontam que as mulheres, especialmente as que vivem em comunidades periféricas e rurais, são mais impactadas pelas mudanças climáticas. Uma pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) alerta que as mulheres enfrentam maiores dificuldades econômicas e sociais durante eventos climáticos extremos, devido ao seu papel tradicionalmente responsável pelos cuidados familiares e pela gestão do lar, o que aumenta sua carga de trabalho e vulnerabilidade. De acordo com o estudo, a desigualdade de gênero é exacerbada pela escassez de recursos durante crises, deixando as mulheres em uma posição ainda mais precária.
Nesse Dia Internacional das Mulheres, em diferentes partes do país, mulheres lutam para sobreviver e reconstruir suas vidas diante das adversidades impostas por uma realidade de exploração econômica e devastação ambiental que deteriora as paisagens e as condições de vida de suas famílias.

Minas Gerais: mulheres invisibilizadas na reparação do crime do Rio Doce
Em Minas Gerais, o rompimento da barragem de Mariana, ocorrido em 2015, atingiu diretamente milhares de pessoas, mas segue revitimizando especialmente as mulheres. Além de lidar com a perda material, muitas delas ficaram responsáveis por cuidar dos filhos e dos idosos, enquanto tentavam se reorganizar em um território onde as condições de vida foram totalmente alteradas, conforme explica Letícia Oliveira, integrante da coordenação do MAB.
“As mulheres são mais atingidas pelos rompimentos de barragens, porque já são invisibilizadas pela sociedade. Estamos à margem de tudo, inclusive do processo de reparação. Perdemos nossas fontes de trabalho e as relações comunitárias, que são essenciais para nós.”
Letícia explica que, como muitas mulheres trabalham em setores informais, acabam sendo diretamente impactadas, mas não reconhecidas na reparação. “Nosso trabalho nunca é visto como ‘trabalho atingido’, e isso reflete a invisibilidade das mulheres tanto na sociedade quanto nas ações das empresas. O processo de reparação ignora as mulheres, não reconhece nossos direitos básicos e desconsidera as relações interpessoais, fundamentais para nossa sobrevivência e bem-estar.”

Ou seja, as mulheres atingidas também passaram a enfrentar a sobrecarga das tarefas de cuidados e a dificuldade de acesso a recursos para reconstruir suas casas e suas vidas, além de situações de violência doméstica, em alguns casos.
O crime de Mariana, assim como o de Brumadinho (2019), expôs as falhas do Estado, das empresas e da Justiça em proteger as minorias, como as mulheres. Por isso, para muitas delas, a luta pela justiça ambiental e social tornou-se uma extensão da luta por dignidade.
Amazônia: a seca e seus efeitos na vida das mulheres
Na Amazônia, o cenário também é alarmante. A seca que afetou a região no último ano trouxe grandes desafios para as comunidades locais, principalmente para as mulheres, que desempenham papéis centrais no cuidado com a família e a manutenção da subsistência. A escassez de água em comunidades como as do Rio Madeira, em Rondônia, por exemplo, comprometeu não só a produção de alimentos, mas também os cuidados básicos para a saúde e higiene. Ou seja, a falta de água potável não só afeta a segurança alimentar, mas também a saúde das mulheres e suas famílias, que muitas vezes são as responsáveis pela gestão dos recursos escassos.

Missay Nobre, integrante da coordenação do MAB na Amazônia, conta que muitas mulheres atingidas vivem em comunidades ribeirinhas e tradicionais, frequentemente isoladas dos centros urbanos, o que agrava os desafios enfrentados com os extremos climáticos. “Elas são as principais responsáveis pelo cuidado da família, garantindo alimentação, saúde e o bem-estar doméstico. Durante a seca, esses desafios se intensificam: o peixe escasseia, a água para consumo e atividades diárias se torna escassa, e as crianças não conseguem ir à escola. A ansiedade aumenta e a perda de renda afeta diretamente as mulheres extrativistas, pescadoras e agricultoras, além de mulheres chefes de família que não são reconhecidas em programas de auxílio”, afirma.
Com a seca, muitas mulheres enfrentaram problemas relacionados à saúde, devido ao aumento das doenças transmitidas por mosquitos e à escassez de alimentos. As consequências da seca são duradouras e as mulheres, em sua grande maioria, lidam com os impactos de forma multiplicada, por conta da sobrecarga das tarefas domésticas e à busca por soluções imediatas para suas famílias.
Rio Grande do Sul: as mulheres no processo de reconstrução de um estado
No Rio Grande do Sul, as chuvas intensas que atingiram o estado, a partir de 27 de abril de 2024, causaram uma série de enchentes catastróficas nas bacias dos rios Taquari, Caí, Pardo, Jacuí, Sinos e Gravataí, afetando mais de 2,3 milhões de pessoas em uma área de 800 km². Com 183 mortes e 27 desaparecidos, as águas ultrapassaram os limites de segurança, deixando Porto Alegre submersa por mais de um mês devido à falta de manutenção dos diques. Em regiões de serra, deslizamentos de terra agravaram ainda mais a devastação, enquanto a reconstrução de moradias e a reestruturação das comunidades permanecem lentas. O impacto psicológico da enchente, especialmente para mulheres, é profundo, com muitas ainda residindo em abrigos, enfrentando dificuldades de acesso a recursos básicos e sobrecarga nas responsabilidades de cuidados familiares.

Mulheres, especialmente as de baixa renda, sofrem mais com problemas psicológicos como ansiedade, depressão e burnout, exacerbados pela perda de seus lares e pela falta de apoio. Pesquisas realizadas pelo Serviço de Psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em parceria com a Rede Nacional de Saúde Mental, mostraram que as mulheres com menor renda apresentaram 100% de sintomas de ansiedade, enquanto a taxa de depressão foi de 71% entre elas. Além disso, elas enfrentaram dificuldades no acesso a serviços essenciais, como saúde e educação, agravadas pela destruição de hospitais e escolas. Nos abrigos, a violência sexual foi um problema grave, levando à criação de espaços específicos para garantir a segurança das mulheres e crianças. O MAB atuou na organização de cozinhas solidárias e apoio às comunidades atingidas, produzindo e entregando mais de 180 mil refeições durante os meses seguintes à enchente.
Alexânia Rossato, integrante da coordenação do MAB no estado, compartilha a realidade vivida pelas mulheres de sua região depois das devastadoras enchentes de 2023 e 2024. “Após a enchente, as mulheres sofreram ainda mais com a sobrecarga emocional e física. Muitas precisaram cuidar de seus filhos, enquanto lutavam para encontrar um abrigo seguro. A angústia de não saber aonde ir, somada à perda do que foi construído ao longo de uma vida inteira, é um peso difícil de carregar”, afirma Alexânia, ao ressaltar que o apoio psicológico ainda é escasso, mas essencial.
Em sua fala, Margareth Augustini, moradora de Roca Sales, também no Rio Grande do Sul, relata a profundidade do impacto psicológico nas mulheres após as enchentes: “Muitas das mulheres que conheço desenvolveram depressão e ansiedade. Os filhos não conseguem dormir sozinhos quando começa a chover, o medo é constante”, compartilha Margareth. Ela descreve o desespero de muitas atingidas que, mesmo após a reconstrução parcial de suas casas, continuam a buscar um espaço seguro para dormir, longe da ameaça das chuvas e deslizamentos de terra.
As mulheres na linha de frente na luta por justiça

As mulheres não são apenas vítimas, mas também protagonistas na luta por justiça socioambiental. Em Minas Gerais, na Amazônia e no Rio Grande do Sul, elas estão se organizando, se mobilizando e exigindo que suas vozes sejam ouvidas. Muitas dessas mulheres articuladas no MAB têm se engajado em ações políticas para garantir que suas comunidades sejam mais resilientes e que os direitos das mulheres sejam respeitados durante e após os desastres. No Rio Grande do Sul, por exemplo, foram elas que lideraram as cozinhas solidárias que alimentaram milhares de desabrigados, mas agora elas reivindicam direito à reparação, moradia, saúde e segurança.
Ou seja, a luta dessas mulheres não se resume apenas ao direito a sobreviver, mas também à exigência de políticas públicas que garantam uma recuperação justa, que leve em consideração as desigualdades de gênero e os desafios específicos que elas enfrentam. A resiliência dessas mulheres diante da adversidade é um reflexo da sua força, mas também da necessidade urgente de uma sociedade mais justa e inclusiva, que considere as desigualdades de gênero na abordagem das mudanças climáticas e seus impactos.
