Dois anos após a tragédia de São Sebastião, moradores ainda lutam por segurança e moradia digna
O município tem cerca de 1.000 pontos de escorregamento de solo, um alerta contínuo sobre o risco de novas tragédias.
Publicado 19/02/2025 - Atualizado 19/02/2025

Há exatos dois anos, o município de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, enfrentou uma tragédia sem precedentes causada por chuvas intensas, que — agravadas pela falta de políticas habitacionais — resultaram em deslizamentos de terra, inundações e soterramentos.
Ainda hoje, o município tem cerca de 1.000 pontos de escorregamento de solo. O dado, divulgado no último mês de setembro, faz parte de um inventário realizado por pesquisadores dos Institutos de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) e de Geociências (IGc) da Universidade de São Paulo (USP), usando imagens aéreas e o sensoriamento remoto a laser. Com base nesse levantamento, os cientistas agora estão fazendo um cruzamento com outras variáveis, para desenvolver um método capaz de identificar, com maior precisão, o risco para novos deslizamentos e subsidiar políticas públicas que possam impedir novas mortes evitáveis relacionadas aos eventos extremos, como os que ainda assombram os sobreviventes da tragédia de dois anos atrás.

Nos relatos dos atingidos que ainda lutam por moradia digna, a memória das cenas permanece viva. Gisele Silva, 33 anos, moradora da Vila Sahy, uma das áreas mais afetadas pelas chuvas, conta que suas filhas convivem até hoje com o medo e o trauma de perder amigos, conhecidos e a própria casa. Na madrugada de 19 de fevereiro de 2023, o céu desabou sobre o município. Em apenas oito horas, mais de 600 milímetros de chuva transformaram ruas em rios e encostas em avalanches de lama. O evento extremo resultou em 64 mortes e deixou um rastro de destruição: pelo menos 50 casas foram soterradas, levando consigo móveis, documentos, fotografias e memórias de atingidos que tiveram suas vidas radicalmente afetadas. Mais de mil famílias ficaram desalojadas.
“Para quem morava aqui embaixo, tudo começou na noite do dia 18. Por volta das dez e meia, as casas já estavam alagando. Quando a minha inundou, tentei subir o morro e fiquei na porta de uma casa, mas o morro desabou na minha frente e a construção foi junto. Por pouco, eu não fui também”, lembra Gisele, que até hoje não foi indenizada ou recebeu qualquer tipo de auxílio, ou mesmo uma nova moradia.

Além das dezenas de moradias destruídas, as chuvas causaram danos severos às estradas da região, incluindo a Rodovia Rio-Santos, que teve trechos completamente devastados, com segmentos de até 500 metros simplesmente desaparecendo e deixando parte da popullação isolada.
Contradições da reparação: parte dos atingidos ainda luta por moradia digna
Nos dois anos que se seguiram à tragédia, algumas medidas foram adotadas pelos governos federal, estadual e municipal para a reparação do território, incluindo obras de contenção em Juquehy, Morro do Esquimó e Vila Sahy. Também foram construídos planos de emergência junto à Defesa Civil. No entanto, essas ações são insuficientes diante da gravidade da situação, conforme avalia Arthur Macfadem, integrante da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em São Sebastião.
“Muitas regiões do município continuam vulneráveis a novos deslizamentos e alagamentos, como os bairros Pantanal, Lobo Guará e Tropicanga, onde ainda não foram adotadas medidas efetivas de prevenção. Além disso, várias pessoas atingidas permanecem em áreas de altíssimo risco porque não conquistaram a garantia de moradia segura”, explica. Há também aqueles que, por falta de alternativas, foram forçados a voltar para áreas de risco.
A história de Gisele expõe a desigualdade na reconstrução pós-tragédia. Depois de morar de favor na casa de conhecidos, ela continua sem qualquer tipo de assistência, mesmo após a execução dos projetos habitacionais do governo estadual. “Se os moradores pagavam IPTU, significa que a prefeitura reconhecia as construções. Ou seja, eles têm direito à reparação, mas ela não chegou para todos”, afirma Arthur. Muitas famílias ainda dependem do auxílio-aluguel, cujo prazo de dois anos está se encerrando sem garantia de resoluções permanentes.

A luta por reparação no território
Desde a tragédia, o MAB tem atuado junto à população e à Defensoria Pública, que tem sido essencial na luta para garantir os direitos dos atingidos. Como avanços conquistados pelo órgão, destaca-se a realização de laudos individualizados das residências atingidas, a garantia de abrigamento provisório e definitivo para parte das famílias desabrigadas e o ingresso de ações civis públicas para assegurar indenizações por perdas materiais, danos morais coletivos e impactos psicológicos às vítimas. Além disso, a Defensoria recomendou a atualização do Plano Municipal de Redução de Riscos, promovendo medidas preventivas, como obras de contenção, melhoria no sistema de drenagem, instalação de sirenes e realização de simulados de evacuação, que foram implementadas nos territórios atingidos.
“No entanto, persistem desafios, como a necessidade de monitoramento constante das áreas de risco, a ampliação da oferta de moradias seguras e a previsibilidade de políticas habitacionais para realocar as famílias que ainda vivem em locais vulneráveis. A organização comunitária foi fortalecida, mas a cobrança por ações efetivas do poder público segue sendo essencial para garantir a segurança e a dignidade da população atingida”, avalia Patrícia Oliveira, defensora pública estadual que atuou no caso.
Entenda o processo de realocação das famílias

Em maio de 2023, o governo do estado de São Paulo iniciou a transferência de famílias desabrigadas para as chamadas “Vilas de Passagem”, formadas por casas pré-fabricadas de madeira, com cerca de 18 m². As condições nessas vilas foram denunciadas como insalubres, por conta da falta de ventilação e estrutura básica, água contaminada e surtos de sarna e outros problemas de saúde pública.
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Paralelamente, o governo estadual iniciou a construção de 704 unidades habitacionais permanentes na Costa Sul de São Sebastião, nos bairros Baleia Verde e Maresias, sob responsabilidade da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano de São Paulo (CDHU). No entanto, os moradores não foram consultados sobre o reassentamento e muitos enfrentam dificuldades para reconstruir suas vidas.
Falta de participação popular e impactos na vida dos reassentados
Mesmo aqueles que receberam novas moradias relatam dificuldades. Como os reassentamentos foram feitos sem consulta à população, muitas famílias foram colocadas em áreas distantes de seus trabalhos, escolas dos filhos e redes de apoio. O espaço reduzido dos apartamentos (44 m²) e os altos custos de condomínio também agravam a situação financeira e psicológica da população, provocando o risco de insegurança alimentar.
“Os reassentamentos resultaram na desterritorialização das pessoas atingidas, colocando-as em locais distantes de seus empregos e serviços essenciais. Além disso, os custos de moradia em condomínios aumentaram as dificuldades econômicas dessas famílias”, destaca Macfadem.
Enquanto isso, a especulação imobiliária pressiona as comunidades atingidas, encarecendo ainda mais o custo de vida. Famílias que perderam entes queridos seguem sem indenização e sem respostas do poder público. O abandono também se reflete na falta de apoio à saúde mental: crianças traumatizadas desenvolvem medo intenso de chuvas e há aumento no uso de medicamentos para ansiedade e depressão.
Outra preocupação frequente é a qualidade da água nos condomínios da CDHU. Moradores relatam casos de diarreia e problemas de pele. Muitas famílias, sem confiar no abastecimento, passaram a comprar água mineral, adicionando mais um custo à já difícil realidade financeira.
Mudanças climáticas e a necessidade de adaptação no litoral paulista



Estudos científicos já demonstram que, com o aquecimento global, eventos extremos climáticos – como secas, chuvas torrenciais, ciclones tropicais – serão cada vez mais frequentes e intensos. De acordo com o Relato Síntese de 2023 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), a temperatura global atingiu 1,1°C a mais do que a do período pré-industrial (1850-1900), e o ano passado foi considerado o mais quente da história do planeta.
Essa nova realidade demanda ações de prevenção e planejamento com base nas informações atualizadas. Ou seja, a tragédia de São Sebastião não foi um evento isolado. O Brasil tem registrado um aumento na frequência e intensidade de chuvas extremas, resultado direto das mudanças climáticas. Regiões costeiras como o litoral norte de São Paulo estão cada vez mais vulneráveis a deslizamentos, enchentes e erosões.
Diante desse cenário, especialistas alertam para a necessidade urgente de políticas públicas de adaptação, incluindo: mapeamento de áreas de risco com restrição de novas ocupações irregulares, investimentos em infraestrutura de drenagem para reduzir o impacto de chuvas intensas, programas de moradia segura, realocando famílias para locais estáveis e garantindo habitações dignas, monitoramento climático e sistemas de alerta precoce para prevenir tragédias.
“A reparação precisa ir além da construção de novas moradias. É necessário assegurar infraestrutura, serviços públicos acessíveis e um modelo habitacional que respeite a realidade das comunidades atingidas. É dever do Estado promover essas garantias”, reforça a coordenação do MAB.
