Luciana Gatti: “O próprio agronegócio vai quebrar com a falta de chuva que ele está causando no país por conta do desmatamento”

Nas últimas semanas, a climatologista se tornou alvo de ataques de entidades do agronegócio por evidenciar a relação direta entre a destruição ambiental provocada pela monocultura no país e a crise climática que estamos vivendo

Luciana Gatti, pesquisadora do INPE, coordena uma pesquisa sobre emissão de gases de efeito estufa na Amazônia. Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil


Luciana Gatti é cientista de mudanças climáticas e coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e coordena um importante projeto de pesquisa sobre emissão de carbono no Brasil. A onda de ataques contra a pesquisadora ocorre após depoimentos à imprensa sobre o uso do fogo por produtores de cana-de-açúcar e a negligência do governador de São Paulo, Tarcício de Freitas (Republicanos), diante das queimadas no estado.

Apesar das entidades terem repudiado as declarações da pesquisadora, estudos recentes respaldam as afirmações feitas pela cientista. Um relatório divulgado pelo MapBiomas, publicado em agosto deste ano, aponta que o setor do agronegócio é atualmente o principal responsável pela perda de vegetação nativa no Brasil, tendo expandido sua área agrícola em 228% nos últimos 39 anos.

Em entrevista exclusiva concedida ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), recentemente, ela reiterou o que relatórios de monitoramento já apontam: o desmatamento está diretamente associado às secas que se intensificam na Amazônia. Confira, abaixo, entrevista completa.

Como a Amazônia contribui hoje para os eventos extremos que estamos vivendo?

Nossa pesquisa se concentra justamente na área de emissões de carbono na Amazônia. Estávamos tentando entender por que na região tem tantas áreas com condições climáticas tão diferentes. Eu fui investigar o que aconteceu para mudar completamente o funcionamento de uma parte para outra da floresta. 

Analisando os dados mensais sobre chuvas e emissões, constatamos que um lado da Amazônia funcionava muito diferente do outro. Então, fomos pesquisar em uma série de 40 anos o que aconteceu. Em paralelo, outra pessoa do nosso grupo calculou quanto cada área estava desmatada e aí a gente viu uma correlação muito estreita entre mais desmatamento, perda de chuva e aumento de temperatura, principalmente durante os meses de agosto, setembro e outubro. Então, ficou clara essa vinculação: o desmatamento reduz a chuva.

Isso, na verdade, é meio óbvio, porque a árvore joga vapor de água na atmosfera. A floresta joga pra atmosfera uma quantidade de água parecida com a que o Rio Amazonas joga no oceano todo dia. É uma quantidade imensa de água. Você consegue imaginar o Rio Amazonas desaguando pra cima?”

Desmatamento na região do Cerrado. Foto: Adriano Gambarini / WWF-Brazil

E como o desmatamento influencia no aumento da temperatura?

Bom, a água para sair do estado líquido (o estado em que ela está no solo) e se transformar em vapor na atmosfera. Ou seja, para mudar de estado físico, ela precisa de energia na forma de calor. Por exemplo: para ferver uma água, você precisa botar fogo, né? Tem que dar calor para ela. Então, quando a água está fazendo esse processo, ela está fazendo a temperatura esfriar, porque a água que está virando vapor, está consumindo energia na forma do calor na Amazônia”.

Então, nós estamos falando de um processo que não só mexe com a água, como mexe com a energia, mexe com a temperatura. E, a partir de 2019, a gente teve um desmatamento generalizado não só na Amazônia, mas no Brasil inteiro. Então, você pega esse processo que vimos acontecer na Amazônia e aplica para o Brasil inteiro, um país com uma natureza exuberante sendo largamente desmatado. Você perde um monte de vegetação, a temperatura vai aumentar mais ainda e acelerar as mudanças climáticas e sua maior expressão são os eventos extremos. Então, quando eu vi os dados sobre os desmatamento, eu imediatamente entendi que a gente ia acelerar os eventos extremos no Brasil. Se você buscar as minhas entrevistas de 2021, você vai ver o que eu dizia: que a gente iria enfrentar secas cada vez piores.

A nossa pesquisa sobre a temperatura na Amazônia mostra que durante os últimos 40 anos havia um aumento da temperatura nos meses de agosto, setembro e outubro, mas, nos últimos anos, houve um crescimento exponencial: foi um pico, que coincide com o aumento do desmatamento. 


Durante muito tempo, a Amazônia foi apontada como uma possível solução para o problema das mudanças climáticas, como essa região se tornou o epicentro da crise?

A gente poderia ter a Amazônia como uma proteção contra as mudanças climáticas, como um airbag. Imagine: o mundo inteiro esquentando e você tem uma floresta que refreia essas mudanças, porque a vegetação ajuda a produzir mais chuvas e reduzir a concentração de (CO₂), mas aí você provoca um desmatamento generalizado nessa floresta, que poderia te proteger. A região que vai ali da Floresta Nacional do Tapajós (PA) até o meio do Amapá (cerca 700 mil km²) está 44% desmatada. O que acontece? Redução da chuva, aumento da concentração de gases de efeito estufa e da temperatura. Então, você está acelerando as mudanças climáticas. E o pior: continuamos desmatando um monte. Mesmo que o ritmo tenha reduzido na Amazônia, no Cerrado aumentou muito.

É importante lembrar que a vegetação da Amazônia é responsável por aproximadamente 50% da chuva no país. Ou seja, estamos comprometendo diretamente nossa estabilidade climática. No ano passado, muitos jornalistas atribuíram a situação de seca ao El Niño, esse fenômeno climático que ocorre quando as águas do Oceano Pacífico aquecem anormalmente, afetando nosso regime de chuvas. E, sim, ele interfere no clima, mas o desmatamento aumentou consideravelmente nossa vulnerabilidade a essa variabilidade climática que é cíclica. O desmatamento é muito pior que o El Niño. Tanto que, neste ano, não temos El Niño e a seca está pior.  

Foto: Bruno Kelly/Reuters

Alguns cientistas têm falado que estamos nos aproximando do chamado “ponto de não retorno”. O que você pensa sobre isso?

A gente está descobrindo que, na verdade, não existe um ponto de não retorno para a Amazônia inteira, mas temos que analisar caso a caso a realidade das sub-regiões. O sudeste da Amazônia, por exemplo, que é a área mais desmatada, virou uma fonte de carbono, porque as temperaturas estão extremamente altas e há um déficit de vapor d’água muito grave ali. Então, a gente precisa priorizar projetos de restauração florestal lá, mas o governo do estado do Mato Grosso está fazendo o oposto. Está entregando a área para o desmatamento, para a mineração, para a soja.

Os caras só querem saber de dinheiro. Só que, assim, é o próprio agro o primeiro que vai quebrar. Os produtores estão iludidos por cientistas fakes, como Evaristo Miranda que, na época do governo Bolsonaro, disse que o Brasil protegia muito e tinha mais área preservada do que precisava, dando aval “científico” para a política institucional de destruição. Esse foi o início do da nossa desgraça. Imagine que desserviço gigantesco que esse sujeito prestou para o país.

Qual a saída para esse cenário devastador que estamos vivenciando na Amazônia?

A gente tinha que começar agora a decretar moratória no Brasil inteiro para aumento de área de soja, de milho, de cana e de gado e só permitir sistemas tipo agricultura familiar, que são diversos, em que você mistura culturas alimentares e espécies nativas. E precisamos replantar florestas. Só durante o governo Bolsonaro, na Amazônia, foram 50 mil km² de área perdida de floresta primária, fora as pequenas áreas de degradação, que, somadas, superam esse valor. Eu me desespero, porque isso significa mais eventos extremos, mais seca, mais morte das pessoas e da vida silvestre.  

Existem estudos que conseguem estimar o prejuízo que esse desmatamento tem causado para o país em termos de saúde pública ou reparação dos eventos extremos?

Não tem, mas deveria ter. Porque, quando falam do impacto econômico do agro no Brasil, na conta, só entra o tanto de dinheiro lá da balança comercial. Se os caras colocassem na ponta do lápis quanto eles não pagam de imposto, quanto custam os empréstimos com juros baixíssimos para o agro, quanto custam os subsídios todos e quanto está custando para o estado brasileiro cobrir os eventos extremos (de seca e de enchente), a gente veria que esse agro dá muito prejuízo para o Brasil, fora as mortes relacionadas aos desastres naturais que não tem como a gente mensurar o que isso significa. O desmatamento acelerou os eventos extremos e o número de mortes causadas por eles.

*Segundo apuração do blog Poder 360, no período de 2008 a 2023, o Brasil registrou 23.885 ocorrências de alagamentos, enxurradas, inundações, movimentos de massa, tornados, vendavais, ciclones, chuvas intensas e granizo. Nesse período, morreram 3.464 pessoas por conta das tragédias.

Foto: Arquivo MAB

E sobre modelo econômico, o que você acha que é possível para uma Amazônia mais justa, mais inclusiva e mais racional?

Primeiro, o governo tem que ser firme em proibir a ampliação e ter um plano de redução de soja na região, porque a soja é anti biodiversidade. Ela usa dois tipos de venenos: um para insetos e outro para outras espécies vegetais. Aí a chuva leva isso para os rios no meio daquela biodiversidade toda e o veneno vai matando tudo. Eles chamam isso de defensivo, mas só é defensivo do lucro do produtor. Então, a soja nunca deveria ter entrado na floresta. Esse eu acho que foi um enorme desserviço da Embrapa: adaptar soja para a Amazônia. Virou uma calamidade, porque o pasto, pelo menos, os caras não jogam veneno. Eles desmatam, né? Agora, claro, o gado já desmatou muito mais áreas do que a soja. Porque, em 2019, o Bolsonaro e o Ricardo Salles atropelaram toda legislação de proteção ambiental no país. 

Como garantir a proteção e o desenvolvimento socioeconômico das comunidades que vivem no território amazônico e aos ataques que o bioma vem sofrendo? 

Primeiro temos que parar essa máquina de destruição da natureza e restaurar locais que estão muito desmatados Quanto mais tempo a gente demorar para começar esse processo, mais difícil vai ser a gente reparar os danos. Vai aquecer e o aquecimento vai destruir, inclusive, a safra agrícola dos que desmataram. Tudo vai ser afetado, toda a biota. Os peixes, que já estão sendo contaminados pelo garimpo, vão ser afetados também pelo aumento da temperatura. As pessoas já estão perdendo a fonte de alimentação e renda.

Então, o modelo que a gente tem hoje está baseado em extrair, extrair, extrair e destruir. A gente tem que ter um modelo com a floresta em pé, um modelo baseado em ecoturismo e em sementes e frutas, que você vai lá, você colhe e você continua tendo a vegetação. Na hora que a gente restaura, a gente restaura colocando espécies que vão gerar renda para as comunidades. No primeiro momento, é possível fomentar a economia local através da produção de mudas que serão necessárias para a restauração. Depois, temos a economia relacionada aos produtos da floresta, como o cupuaçu e a castanha para a indústria alimentícia, o cacau para a indústria de chocolate, a andiroba para a indústria de cosméticos e por aí vai. Então, tem uma infinidade de produtos, mas precisamos fomentar indústrias comunitárias para processá-los e agregar valor. Se temos todas essas possibilidades, por que se opta por um modelo que destrói a Amazônia? Temos que mudar o jogo.

Conteúdos relacionados
| Publicado 21/12/2023 por Coletivo de Comunicação MAB PI

Desenvolvimento para quem? Piauí, um território atingido pela ganância do capital

Coletivo de comunicação Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Piauí, assina artigo sobre a implementação de grandes empreendimentos que visam somente o lucro no território nordestino brasileiro

| Publicado 04/07/2022 por Francisco Kelvim

Desmatamento faz Amazônia liderar emissões de gases de efeito estufa

Ranking produzido pelo Observatório do Clima aponta municípios da Amazônia entre os principais emissores de gases causadores do aquecimento global

| Publicado 26/09/2024 por Roberta Brandão / MAB

MPF, MPT e DPU lançam recomendações para ação do poder público no enfrentamento da seca em Rondônia

Os órgão públicos, auxiliados pelo MAB, listaram quais ações são urgentes para atender necessidades de pessoas atingidas pela seca na Amazônia

| Publicado 20/09/2024 por Wérica Lima / Amazônia Real

Pará e Rondônia são tomados pelo fogo e pela estiagem

Populações respiram fumaça tóxica, já sentem o drama dos rios que secam e enfrentam a estiagem que está a caminho com o risco de não ter o básico para sobrevivência, água potável