CRÔNICA | O tempero do movimento popular

A solidariedade dos movimentos populares na distribuição de marmitas aos atingidos e atingidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul

Entrega de marmitas à população atingida pelas enchentes. Foto: arquivo MAB

Quando está chuvisco acompanhado de intenso frio – nesses dias de inverno, em Porto Alegre -, Roni grita “marmita!” e aguarda por instantes. Ele é operário da Transpetro e dedica parte de seu tempo diário a essa atividade com alguém do Movimento dos Atingidos.

Às vezes o grito é acompanhado de assovio com as mãos postas à boca em formato de megafone. Assim, o som chega até o fundo das ruelas à beira do Guaíba, o rio invadido que invadiu a cidade.

Nos dias de frio menos bravo não há necessidade desses artifícios, pois as pessoas esperam em algum dos pontos de distribuição. Já se habituaram. Afinal, essa rotina fez dois meses no dia 19 de Julho e já foram distribuídas mais de 50 mil marmitas.

Roni é de pouca conversa e de prática profundamente humanista. Diálogo curto e solidário: “quantas?”. A pessoa diz ou apenas dá sinal com a mão. É o suficiente! Ele entrega e pronto! Não questiona nem pergunta o nome, parece em respeito a cada pessoa.

Fome não tem explicação num país farto. Só mesmo pela exploração insana em toda e qualquer circunstância. Até nas catástrofes.

A despedida, também, é muito modesta: “até amanhã” ou apenas um sinal de “joia”.

Os atingidos, abandonados nas ilhas à sua própria sorte, muitos acampados à margem da BR 290, sentem a solidariedade presente. Diversos o expressam nas mais variadas maneiras.

O senhor idoso, de barba branca, sobe o barranco com dificuldade, engatinhando até alcançar a altura da pista. Os olhos dele e de Roni brilham de contentamento. Difícil saber quem é mais ajudado; quem se humaniza mais. Pois, não basta ser da raça humana para ser humano.

A mulher segura as marmitas, abraçando-as e apertando-as junto ao peito. A exclamação vem em meio ao ar risonho: “não comi nada hoje, agora vou almoçar!”.

Um motoqueiro “persegue” Roni até parar. “Estava chegando do trabalho e vi o carro da marmita passando”, diz. Roni se mantém impassível na sua ternura serena. Ouve com o coração. Toma duas marmitas e as ajeita, cuidadosamente, no fundo da bolsa do motoqueiro para não entornar.

Uma criança bem pequena chega e pede cinco. Roni sorri e exclama “oche!” e, prontamente, as ajeita em seus pequeninos braços. Outra criança diz que “a marmita é muito boa, tomara que ganhem na loto”. Seu rosto brilha de alegre apetite.

A linguagem do amor é universal, sem preço algum, misturando sensibilidade e gratidão na existência cujas contradições e revezes precisam trazer, necessariamente, a consolidação das condições objetivas da liberdade. Sempre! Sem isso se anda para trás, pois nada, absolutamente nada está parado.

A entrega das marmitas é belo ato de “caridade” em momento de extrema fragilidade. A cozinha solidária do MAB, sindicato dos petroleiros e demais parceiros, em Canoas e Estrela, é decisão corajosa e acertada. Ela possibilita a proximidade de tantos corações semelhantes ao de Roni sem esquecer o estômago. Nesse aspecto, ela é expressão e embrião da solidariedade de classe.

É valorosa a diversidade das brigadas com membros advindos das várias partes do Brasil e do exterior, pois ajudam a construir o alimento mais saboroso, nessas mãos de fada, para muito além do emergencial: a organização popular.

O povo de qualquer parte do mundo sempre tem uma reserva inesgotável de rebeldia, que, em maior ou menor grau, fica à flor da pele nos momentos de grandes catástrofes. Um exemplo são as ilhas de Porto Alegre que, por conta delas, pararam a BR 290 no dia 19 de julho reivindicando prazo para solução dos problemas.

A presença dos estados e governos, nos casos de catástrofes, é essencial (e não fazem mais do que sua obrigação), mas daí não vem o “passo adiante”. Também as iniciativas das instituições de caridade, entre as quais as igrejas, cumprem papel fundamental, mas vislumbram o “inferno” e o “céu” separados pelo abismo da ausência da dialética. Ela ficou esquecida desde que as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) foram abandonadas.

Cabe aos movimentos populares a nobre tarefa de continuar com as “mangas arregaçadas”, no meio do povo. Ali, onde mora a rebeldia, está por construir a sociedade sem nenhum tipo de opressão. Ali o Movimento finca sua intencionalidade em tudo que faz. Então, o trabalho de base não precisará de marmitas para abrir-lhe porta; o poder popular será mesa farta temperada em mística, arte e ciência.


*Padre Antônio Claret, ligado à Arquidiocese de Mariana, defende, desde o início do seu sacerdócio, os direitos da parcela mais oprimida da população. É também coordenador do MAB, em Congonhas, onde atua em comunidades atingidas pelas barragens da região a partir da metodologia das comunidades eclesiais de base.

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