Enchentes no Rio Grande do Sul e secas severas na Amazônia: dois extremos de um mesmo Brasil em crise

MAB cobra políticas públicas de reparação e prevenção diante de previsão de secas mais intensas na Amazônia

Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, teve em torno de 60% do município inundado pelos rios Gravataí e Sinos. O bairro Mathias Velho ficou completamente embaixo d’água. Foto: Francisco Proner / MAB

Enquanto tenta calcular todas as perdas humanas, sociais, econômicas e ambientais causadas pelas enchentes do Rio Grande do Sul, o governo brasileiro já se prepara para um novo evento climático extremo no norte do país. Ao todo, os municípios gaúchos chegaram à marca de 178 vítimas fatais e mais de dois milhões de pessoas atingidas, que tiveram suas vidas radicalmente alteradas, precarizadas e traumatizadas. Além das mortes, a tragédia deixou paisagens naturais e urbanas, equipamentos públicos e sistemas produtivos de alimentos destruídos – muitos deles de difícil recomposição – em 478 municípios.

Ao mesmo tempo que busca implementar um complexo plano de reparação para o território, governo precisa planejar – de forma ágil – ações de prevenção em relação aos próximos extremos previstos para a região amazônica. Segundo a própria Secretaria de Mudança do Clima do governo federal, uma seca “muito terrível” está prevista para ocorrer em breve no território amazônico. Alguns estados já se preparam. A Defesa Civil do Amazonas, por exemplo, publicou um boletim informando que a situação no estado este ano deve ser tão ou mais severa do que a registrada em 2023.

Seca afetou navegação na Amazônia e fez Rio Madeira ter baixa histórica em 2023. Foto: Joka Madruga / MAB

Os extremos climáticos apontam para um cenário de fome e insegurança alimentar

A seca na Amazônia, normalmente, ocorre no segundo semestre, com o pico da vazante das principais bacias hidrográficas da região se concentrando entre os meses de outubro e novembro, mas, neste ano, a temporada de seca começou antes do normal. Já no início do chamado “verão amazônico” (que acontece no período inverso ao verão do Sudeste), os moradores de Belém (PA) já sofrem com as altas temperaturas na cidade. A sensação térmica no começo de junho alcançou 35 graus. Outra capital em alerta é Porto Velho (RO). No ano passado, o Rio Madeira, que corta o município, enfrentou a pior seca já registrada: o nível das águas chegou a 1,43 metros, o pior já registrado.

De acordo com o superintendente do Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), Cauê Moura, neste ano, o período de chuvas na região da Amazônia brasileira foi afetado pelo fenômeno do El Niño, o que resultará em mais calor e uma seca ainda mais intensa a ser enfrentada pela população.

“Os rios não estão conseguindo recuperar a sua carga. Então, nós já estamos observando alguns corpos hídricos com um nível abaixo do esperado, muito próximo dos mínimos observados. O próprio Rio Madeira está nessa situação e a tendência é essa: de uma seca na Amazônia possivelmente pior do que a vivida no ano passado”, explica o cientista.

Seca no Rio Madeira em 2023 impactou na navegabilidade e dificultou acesso de comunidades a alimentos, água e remédios. Foto: Joka Madruga / MAB

Para além do impacto na biodiversidade, a redução do nível dos rios na Amazônia prejudica o transporte para comunidades ribeirinhas e, consequentemente, seu acesso à água, comida e remédios. Quando as secas se intensificaram em 2023, quilômetros do Rio Amazonas e do Rio Negro deixaram de ser navegáveis. Além disso, pequenos produtores rurais amargaram a destruição de suas lavouras e, ainda hoje, encontram-se com fortes dificuldades de recomposição dos seus sistemas produtivos. “Dentre as principais perdas agrícolas, destaca-se a cultura da mandioca. As ondas excessivas de calor também dificultam a floração de espécies como o açaí, base da alimentação de parcela expressiva da população amazônica, resultando em prejuízos enormes à economia local, entre outros problemas”, afirma Beatriz Luz, pesquisadora do Fundo Dema (fundo de justiça socioambiental e climática da Amazônia), que apoia projetos coletivos dos “Povos da Floresta”.

A especialista lembra que a perda dos roçados de mandioca prejudica diretamente a segurança alimentar na Amazônia, já que o ingrediente é essencial para um conjunto de alimentos presentes no cotidiano na região: farinha, goma, tapioca, tucupi, beiju. “Com as secas, os componentes nutricionais do solo estão em extrema fragilidade”, complementa Luz.

Diante da previsão de novos extremos, o governo federal está tentando se adiantar para entender quais municípios provavelmente vão ser atingidos e que tipo de prevenção será necessária. Isso está sendo liderado pelo Ministério da Integração Regional, conforme explicou Ana Toni, secretária nacional de Mudança do Clima, em seminário do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).

Hidrelétrica de Santo Antônio, durante o período seco no rio Madeira. Foto: Joka Madruga / MAB


Para cientistas da área, porém, para além de adotar ações emergenciais ou alertar a população sobre os riscos de seca, o governo precisa enfrentar reais problemas que contribuem com as mudanças do clima, como as alterações promovidas na paisagem provocadas pelo agronegócio, que avança na destruição dos biomas brasileiros.

O escritor Luiz Marques, livre-docente aposentado e colaborador do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), problematiza o fomento por parte do poder público a um modelo agrícola que causa diversos riscos para a população e para as paisagens naturais.

“O Estado está inteirinho mobilizado para financiar, favorecer, isentar de impostos esse grande sistema que é o agronegócio brasileiro, que é o sistema que está arruinando o país. Se pegar as emissões de gases estufa do Brasil, por volta de 70%, 72%, 74% dessas emissões provêm de duas fontes: o gado, a emissão de gases de metano pelo gado e os desmatamentos, os incêndios”, analisa Luiz, que é autor do livro ‘O decênio decisivo’.

Para o professor, não falta informação para que os governos atuem em relação ao tema das mudanças do clima. “Não é uma equação difícil. Você e qualquer criança que abrir a primeira página de um relatório científico entende que a solução é você sair do agronegócio, sair do sistema alimentar globalizado, deixar de ser um país fornecedor de soja e carne para o mercado externo e optar por uma agricultura familiar próxima ao consumidor, sem uso de agrotóxicos, sem o uso de fertilizantes industriais, etc. Então o governo também entende”, dispara.

Prevenção: MAB exige medidas que garantam a segurança hídrica da população e acompanha inciativas do poder público

Neste contexto, O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) tem cobrado políticas públicas dos governos para que se implementem ações que possam prevenir situações de escassez de água e outras consequências dos extremos climáticos para a população mais vulnerável.

No mês de maio, o MAB cobrou da Secretaria de Planejamento do município de Porto Velho ações urgentes diante do cenário de seca. “Exigimos recursos específicos para estruturar a Defesa Civil do município para uma provável seca, pra não repetirmos o drama do ano passado, porque eles precisam cuidar do povo, né? Precisam minimamente perfurar poços que garantam a segurança hídrica das comunidades”, afirma o integrante da coordenação do MAB, Océlio Muniz.

A demanda da perfuração de poços artesianos foi atendida pela prefeitura, que iniciou, em junho, os estudos geológicos para a implementação de cinco poços nas localidades de Terra Firme, Papagaios, Santa Catarina, Calama e Demarcação. 

Para Océlio, as ações são imprescindíveis. “As chuvas aqui em Rondônia já estão cessando. Nós já temos relatos de pescadores de que o rio está baixando. Essa tendência da nova seca é visível, né? Tanto pelas previsões meteorológicas, quanto pela experiência do nosso povo, das comunidades que veem que o rio perdeu o seu ritmo”, alerta o dirigente.

Ele explica que, além de solicitar a perfuração dos poços, o MAB está acompanhando a criação de um grupo de gestão de crise instaurado no estado de Rondônia, com o intuito de realizar um monitoramento dos possíveis riscos da seca. A iniciativa conta com a participação do poder público municipal e estadual, do Ministério Público e da Defesa Civil.

Em preparação para a COP 30, MAB realiza série de encontros em comunidades no Pará. Foto: Arquivo MAB

Atingidos em preparação para a COP 30

Além de cobrar os governos sobre ações emergenciais para a população, o MAB também têm atuado na mobilização da população de diferentes territórios amazônicos para que as próprias comunidades se articulem e possam reivindicar políticas púbicas para o território diante do cenário das mudanças climáticas. No Pará, mais especificamente, o Movimento está envolvido na preparação da população para a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025, também chamada de COP30, que está prevista para ocorrer em novembro de 2025, na capital paraense. A ideia é fomentar o debate sobre o modelo econômico da Amazônia a fim de mobilizar os moradores na participação ativa da Conferência.

A Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30) é uma conferência internacional que reúne representantes de diversos países para discutir e negociar ações relacionadas ao combate às mudanças climáticas. Durante a conferência, os países participantes devem debater e tomar decisões sobre metas de redução de emissões de gases de efeito estufa, financiamento para ações climáticas, adaptação às mudanças climáticas, entre outros temas relacionados ao meio ambiente. O estado do Pará espera cerca de 150 delegações internacionais para participar do evento.

“As Conferências das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, em seus 28 anos de história, têm se mostrado resistentes à influência direta da sociedade civil no processo de tomada de decisões. Apesar disso, a COP30 em Belém abre uma janela de oportunidades para incidências concretas, ao fomentar as discussões de nosso povo amazônico e impulsionar nossa militância. Nesse sentido, horizontalizar os debates sobre mudanças climáticas é crucial. Nossas bases, por meio da educação popular, têm sido qualificadas para esta discussão, animando seu espírito de luta e reforçando sua confiança. Daqui até a COP da Amazônia, em 2025, os atingidos e atingidas firmarão seus alicerces no tema, bem como construirão espaços de discussão e consenso”, afirma integrante do MAB, Beatriz Moreira, que é moradora de Belém (PA).

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