Barragens promovem precarização da saúde pública, mas empresas responsáveis negam na justiça pedidos de reparação

Estudos atestam o adoecimento sistêmico da população atingida, causado pela exposição contínua a metais pesados, insegurança e perda de vínculos sociais

Em Cachoeira do Choro (MG), após Vale atestar que água estaria livre de contaminantes, parte da população voltou a pescar. Estudos da Fiocruz e UFMG contestam informações da mineradora. Foto: Pedro Stropasolas / Brasil de Fato

Natural de Juatuba (MG), Joelísia Feitosa nasceu e cresceu na beira do Rio Paraopeba, onde pretendia desfrutar de sua aposentadoria depois de uma vida dedicada ao serviço público e à militância. Quando esse momento chegou, ela viu a lama-rejeito da Mina Córrego do Feijão invadir o rio da sua infância e soterrar a região com incertezas, medos e inseguranças. Com diagnóstico que atesta presença de metais pesados acima do normal em seu organismo, a atingida atua ativamente na busca pela recuperação ambiental do território e pela reparação da saúde das pessoas. “Enquanto as pessoas seguirem expostas à contaminação, não haverá reparação integral”, afirma.

Cinco anos depois do rompimento da barragem em Brumadinho (MG) e oito anos depois do rompimento da barragem em Mariana (MG), assim como Joelísia, muitos atingidos permanecem sofrendo com os impactos na saúde, física e mental, provocados pelos resíduos de minério e pela impunidade que gera a descrença na possibilidade de reparação de direitos. Muitos já consideram irreal a possibilidade de receber as chaves de uma nova casa permanente que poderia parecer um lar, após tantos anos da perda de suas moradias, onde construíram suas vidas. Apesar de diversos acordos feitos com a Justiça envolvendo a reparação do território, até hoje a mineradora Vale não retirou nem um terço dos rejeitos do Rio Paraopeba.

Após os crimes, a maioria dos atingidos foi realocada longe dos vizinhos, dos familiares, dos locais de trabalho, dos rios onde pescavam, dos terrenos onde plantavam, dos cemitérios onde seus amigos foram enterrados, ou das escolas onde seus filhos tinham amigos. Embora não possa ser considerada uma patologia, a desesperança se materializa em uma série de laudos relacionados laudos relacionados à problemas de saúde mental das populações das Bacias do Paraopeba e Rio Doce.  

“Nós observamos uma alta prevalência dos transtornos psiquiátricos mentais relacionados ao estresse e depressão, cinco vezes maior do que a população brasileira avaliada pela Organização Mundial de Saúde”, explica a professora do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG, Maila de Castro.

A pesquisadora, que coordenou um estudo da UFMG sobre consequências do rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG), reforça que, para além dos riscos de contaminação, as comunidades atingidas por barragens estão mais vulneráveis ao adoecimento em saúde mental e precisam de uma atenção especial das autoridades.


Os indicadores de saúde mental de municípios de Minas Gerais impactados pelos crimes de mineração também revelaram aumento do consumo de álcool e outras drogas, de todos os tipos de violência (em especial a doméstica), de depressão, suicídios e tentativas, de surtos psicóticos e efeitos psicossomáticos”, diz o texto da cartilha “O impacto do desastre à saúde da coletividade”, publicado pela Fiocruz.

Entre os atingidos que participaram da pesquisa, 71% relataram ter sido atendidos pelo SUS para assistência relacionada ao desastre, 14% recorreram ao plano de saúde, 12% custearam suas despesas com recursos próprios e somente 1% teve suas despesas com assistência em saúde custeadas pela Samarco.

Embora sejam casos emblemáticos e extremos, os grandes rompimentos em Minas Gerais não são os únicos exemplos de como as barragens podem afetar a vida das comunidades atingidas. A constante ameaça à vida, o risco da contaminação, as perdas materiais de terrenos ou casas, a destruição dos vínculos comunitários por conta do deslocamento forçado são algumas das consequências que as barragens têm causado na vida das comunidades atingidas pelo Brasil afora.

Água do Rio Paraopeba segue contaminada cinco após o crime. Foto: Arquivo Funai

Mesmo quando não há um rompimento de fato, o próprio planejamento e construção dos empreendimentos causam uma piora geral na qualidade de vida da população. Na fase da operação, em muitas comunidades, hoje há um temor constante de rompimento, o que leva à degradação contínua do estado físico e mental dos moradores.

Segundo Judite da Rocha, mestra em saúde pública pela Fiocruz e integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), além dos rompimentos, os principais danos causados se referem à contaminação da água, a violência contra as mulheres no caso de inchaço de pequenas cidades e os danos psicológicos causados por medo de tragédias.

A comunicação hostil por parte dos empreendimentos, a desconsideração dos modos de vida no território atingido e a deslegitimação de pautas coletivas e da participação social são características no modo de atuação das empresas em relação a populações afetadas por suas atividades.

Durante ato em Brumadinho, moradores relatam dores fortes na barriga, diarreia, náuseas e manchas na pele. Foto: Filipe Chaves/Mídia Ninja

Nesse sentido, a operação de barragens no país se insere em um modelo econômico que viola o direito básico das populações à saúde em seu sentido mais amplo. No Brasil, a Lei Orgânica da Saúde diz que: “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.”  Vale lembrar que a Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade.

“Por isso, nossa luta é para que os atingidos tenham qualidade de vida, acesso à moradia adequada e condições de ter uma vida digna”, explica Judite. Em reunião da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), autoridades e representantes de movimentos sociais defenderam a criação de uma política pública específica para garantir o atendimento à saúde para os atingidos pela mineração.

Parceria entre MAB e Fiocruz visa criar um programa de saúde para os atingidos

Participantes do Seminário Nacional realizado no Rio de Janeiro (RJ) pelo MAB e Fiocruz para debater com atingidos impacto das barragens na saúde das comunidades afetadas pelos empreendimentos. Foto: Gabrielle Sodré

Diante desse cenário, o MAB construiu uma parceria com a Fiocruz para consolidar um estudo sobre os principais danos causados pelas barragens à saúde dos atingidos. A proposta é subsidiar a criação de programas específicos de saúde para as comunidades afetadas, explica Moisés Borges, integrante do Coletivo de Saúde do MAB. “Após um diagnóstico realizado em conjunto com a organização, estamos mapeando as políticas de saúde que já estão disponíveis e tentando entender quais são as insuficiências desses programas para apontar se há necessidade de se criar novas estruturas de estado específicas para as populações atingidas, ou se é possível fazer ajustes nas existentes”, esclarece o dirigente.

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Segundo Moisés, é preciso que o serviço de saúde seja contextualizado para o território atingido, seja ele atingido por qualquer situação. Por exemplo, em regiões onde os rios contêm metais pesados acima do tolerável é preciso que o sistema de saúde preveja a realização de exames mais complexos e frequentes a fim de diagnosticar com agilidade doenças decorrentes da possível contaminação e se providenciar um tratamento adequado. “Para além da criação desse tipo de protocolo, as soluções em saúde precisam ser pensadas junto aos atingidos e proposta por eles com base em suas experiências e necessidades”, explica.

Estamos construindo uma participação através do coletivo Nacional de saúde do MAB,  para que a nossa base social possa participar e contribuir nesse debate dessas políticas públicas. Então nós temos esses dois grandes objetivos que é construir essas políticas, analisar essas políticas públicas, mas também, essa análise a partir do contexto territorial partir e impulsionada pelos coletivos estaduais de saúde.

Paulo Amarante, especialista em saúde mental na Fiocruz. Foto: divulgação

Segundo o pesquisador da Fiocruz, Paulo Amarante, presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental, para além de contabilizar os diagnósticos relacionados aos problemas sociais causados por grandes empreendimentos, é preciso se criar políticas públicas que pensem a saúde não como tratamento de doença, mas como qualidade, defesa e promoção da vida. Para ele, noções individualistas e medicalizantes dominam discussão sobre bem-estar pautada pelo alto consumo de medicamentos. Falta foco na comunidade e no território.

“Você vê o sofrimento das pessoas, numa situação de crise, de perda de vínculo, de perda de condições materiais, perda de referências. As pessoas ficam, claro, desnorteadas, sem pé, sem chão, sem teto, sem céu, etc. Então, não adianta querer “patologizar” tudo, tratar apenas como uma doença. As pessoas estão sem condições materiais de ter uma vida digna, sem água potável, sem sua casa, perderam vínculos afetivos, culturais, sociais. É preciso resolver a raiz do problema. Então, o trabalho de um profissional de saúde mental – essa é a minha linha na Fiocruz – é envolver o sujeito no protagonismo da criação de soluções”, avalia. O pesquisador reforça que, por isso, participação é um fator essencial para garantir justiça para os atingidos.

“Não adianta dopar as pessoas com remédios. Aquelas pessoas tiveram suas condições de vida precarizadas e elas precisam de reparação. Elas precisam dizer o que elas querem, o que elas precisam. Você tem que considerar o atingido como um sujeito, que tem um desejo, que tem uma expectativa de vida e você precisa envolver esse sujeito no projeto de transformação daquela realidade”, enfatiza o pesquisador.

Segundo o Moisés, esse é o papel do MAB no debate das políticas de saúde público: envolver os atingidos na solução do problema. Então essa é a nossa perspectiva. Queremos fortalecer o protagonismo das pessoas do território na criação de políticas específicas para aquela região, aquele problema.

5 principais impactos das barragens na saúde dos atingidos

Conheça os principais impactos na saúde coletiva provocados pela insegurança, contaminação dos territórios e impunidade de mineradoras. Confira os principais impactos: 

1 – Contaminação do solo e água com metais pesados por conta dos rompimentos
Além de causar coceira e diarreia, estudos revelam que a água que tem chegado até alguns rios de Minas Gerais podem conter elementos químicos como arsênio, ferro e chumbo acima dos valores máximos permitidos na legislação por conta dos rompimentos nas bacias do Rio Doce e Paraopeba. Esses metais podem se acumular no organismo aos poucos, levando a complicações renais, danos cerebrais, ou câncer.

2 – Deterioração dos índices relacionados à saúde mental
O deslocamento forçado por conta da construção de uma obra, a vida ameaçada pela operação de uma barragem com risco de rompimento e a perda de um ente querido, ou da casa onde se viveu uma vida inteira levam ao frequente adoecimento mental dos atingidos. 

3- Violência sexual e explosão de DSTs em cidades que sediam obras
Durante as obras das Hidrelétricas de Belo Monte e Jirau, houve uma explosão ns casos de violência sexual, inclusive contra crianças e adolescentes, nos municípios de Altamira (PA) e Jaci Paraná (RO), provocando um aumento sem precedentes dos casos diagnosticados de doenças sexualmente transmissíveis na população local.

4 – Danos às condições de vida de gestantes e seus embriões
Uma investigação sobre as populações atingidas pelo rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG), associou exposição in utero aos efeitos do crime a uma pior saúde neonatal, com maior proporção de partos prematuros. Ou seja, a exposição a um evento traumático durante a gravidez pode provocar consequências capazes de afetar gerações futuras.

5 – Precarização do acesso a serviços públicos de saúde 
Devido à explosão populacional em pequenas cidades, durante a construção de grandes hidrelétricas, a população passa a sofrer com a precarização dos serviços básicos, como a saúde, tendo dificuldade de acessar atendimentos, remédios ou tratamentos, devido à incapacidade dos municípios de absorverem o contingente de trabalhadores. 

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