Crônica | Pedras e sonhos em Salvador
Reinaugurando nossa seção de Crônicas, o jornalista Thiago Alves escreve sobre a primeira capital do então território colonial português (que já foi, lamentavelmente, o maior porto para a chegada de pessoas negras escravizadas das Américas) e celebra a resistência dos moradores que reinventam a cidade e sua cultura todos os dias
Publicado 03/04/2024 - Atualizado 03/04/2024
“Às vezes, eu queria avistar o mar, só para não ter uma tristeza…”
João Guimarães Rosa, em Manuelzão e Miguilim (Corpo de Baile)
A praia nos recebe na solidão de uma manhã de quarta-feira. Sol azul em nuvens passeando. No chão de pedras de muitas cores e formas, restos de construção, pedaços da natureza levados pelas ondas até aquela porção do mundo. Muitos fragmentos de azulejos, aparentemente antigos, portugueses talvez, marcados pelos desenhos criativos dos colonizadores. Chama atenção o formato redondo da maioria. Tudo esculpido cuidadosamente pelas águas que, desde tempos não contados, chegam como ondas salgadas que nunca descansam.
Atravessamos o mar em zelosa e alegre expectativa. Um barco pequeno e sem segurança, mas guiado por um trabalhador experiente. Somos deixados a algumas centenas de metros passando embaixo de uma ponte que mostra em seus pilares as marcas da convivência tumultuada com o oceano. Chegamos a um pedaço pequeno de praia de areias brancas e sem pedras para testemunhar os caranguejos subindo na areia, o silêncio das águas batendo tímidas e quietas, o céu que de azul fica escuro, de escuro fica azul nos intervalos da chuva que cai e embala o diálogo solitário e amigo deste grupo.
Quem serão? Mais alguns que visitam a cidade que completou 475 anos neste 29 de março de 2024. Salvador, a primaz do Brasil. Tudo respira história, passado e presente se misturam nas ruas. A tecnologia dos séculos que avançam se confunde com a rudeza do abandono de ruas e prédios, vielas e corpos. Há milhares deles tentando ganhar a vida insistindo com cada turista uma foto, uma benção vendida, uma fita colorida, um artesanato, uma pintura no braço. Outros imploram por comida e água. Alguns mais irados tomam à força o que não conseguem. Haverá perigo nas ruas?
Risco é a violência da linha abaixo da pobreza que atinge mais de 11% da população de 2,4 milhões de pessoas. Pior é o projeto de segregação e expulsão dos pobres do direito à cidade com o transporte mais caro entre as capitais do nordeste, com quase 50% da população morando em áreas de risco – onde falta creches e não há ações efetivas para drenagem e saneamento, condenando centenas de milhares de pessoas a riscos de alagamentos e doenças. Uma capital muito rica governada pelo branco bronzeado que repete o mesmo projeto que inaugurou a cidade.
O grupo visitante presencia uma vendedora de acarajé que arruma com enérgica rapidez o próximo pedido, enquanto cobra da branca mais perto:
– Por que você falou que fui eu quem disse que ele é um capitão do mato?
– Mas eu também fiquei indignada, porque ele acusou o rapaz de roubo!
“Eles são mesmo capitão do mato. E agora querem me prender por desacato”, responde alto a indignada baiana negra retinta com roupas coloridas.
A Polícia Militar mais letal do Brasil se desloca em torno da praça e comenta entre si o ocorrido. A tensão racial está no ar. Sente-se, toca-se, ouve-se, cheira-se o passado colonial que nunca acaba.
Mas Salvador é tudo, menos desistência. Resiste com seu povo nas ruas dos Malês, dos Búzios e em todas as batalhas que levaram ao 2 de julho de 1823. Luta nas mãos e nos pés que cantam e dançam, criam e estudam, inventam e sonham. Vence nos 2 de Julho diários dos que reivindicam dignidade e direitos.
A paisagem é pedra e água, gente e sonho gastos pelas ondas salgadas que quebram sem cessar, as mesmas ondas que também renovam a esperança dessa gente, como as areias do mar.
* Thiago Alves é jornalista e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Minas Gerais. Atua ativamente no campo das lutas populares e, entre uma tarefa e outra, observa as pessoas e paisagens redor, buscando perceber a beleza do cotidiano, que vira prosa simples, crônicas sem pretensão.