Desenvolvimento para quem? Piauí, um território atingido pela ganância do capital
Coletivo de comunicação Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Piauí, assina artigo sobre a implementação de grandes empreendimentos que visam somente o lucro no território nordestino brasileiro
Publicado 21/12/2023 - Atualizado 22/12/2023
O estado do Piauí, ao longo dos anos, tem sofrido com as crescentes investidas dos grandes empreendimentos e isso tem causado prejuízo para o meio ambiente e para a população piauiense. A promessa de “desenvolvimento” e oportunidades de emprego se contrapõe ao modelo de chegada das empresas no território, com expulsão de agricultores e famílias, consequências para a natureza, adoecimento, divisão de famílias e comunidades.
A riqueza de um território não deve ser medida pela possibilidade de exploração, mas sim pela cultura local, pelos saberes construídos ao longo dos anos e coletivamente, pela relação, apropriação e pertença das pessoas com a terra. O território de vida e trabalho também pode significar um local sagrado, local de memória e herança de histórias. Tudo isso significa que quando a concepção de desenvolvimento adentra um lugar deve-se considerar a quem serve esse desenvolvimento.
Conforme SILVA (2014, p. 164), a “palavra desenvolvimento possibilita que os governos, alicerçados por campanhas midiáticas que difundem a abertura de mercado e a instalação das transnacionais como uma necessidade imperativa para a melhoria das condições de vida, convençam a população local de que a chegada destes empreendimentos será uma possibilidade de ganho efetivo.”
O domínio de setores estratégicos, encobre o objetivo central das grandes empresas, o lucro desenfreado. As empresas se apropriam do território, extrai a matéria-prima e uma mão de obra barata e descartável, na qual só garante um período de contrato e logo é substituída por trabalhadores de outras regiões que não tem nenhuma relação e/ou sentimento de pertença com o território.
Diante do exposto, observamos que o impacto socioambiental nos territórios do Piauí pelas grandes empresas, e as drásticas mudanças climáticas sentidas em todo estado, com período de chuva aumentando a cada ano e causando o desmoronamento de casas, deslizamento de terra e famílias desabrigadas, e período de altas temperaturas e calor extremo, atingindo principalmente a população mais pobre e periférica, geram prejuízos incalculáveis para a vida das pessoas.
A chegada de mega projetos impacta e desestabiliza a vida das pessoas e o ecossistema. Porto-Gonçalves (2004: 39) ressalta que, “Assim, des-envolver é tirar o envolvimento (a autonomia) que cada cultura e cada povo mantêm com o seu espaço, com seu território; é subverter o modo como cada povo mantém suas próprias relações de homens (e mulheres) entre si e destas com a natureza.
Analisando mais de perto a realidade do estado do Piauí, temos um território com muitas potencialidades, mas que tem sido cobiçado por grandes empresas, pois os estados vizinhos já passaram por esse processo de invasão dos mega projetos. A localização geográfica do estado lhe proporciona um local com grande extensão de vegetação semiárido e caatinga, o que significa territórios com característica de seca e quente.
Observando as características do local, uma das principais empresas com atuação no estado do Piauí é a multinacional Enel Green Power, na qual domina a escala de projetos no setor elétrico, com o maior parque eólico e o maior parque solar da América Latina instalado no norte e sul do estado, respectivamente. A atuação da Enel Green Power representa uma das características centrais do capitalismo, o domínio de grandes territórios e mercados por poucas empresas.
No norte do estado, onde se encontra a extensão litorânea, a cobiça está na implementação de parques eólicos. Localizado nos municípios de Lagoa do Barro do Piauí, Queimada Nova e Dom Inocêncio, o parque eólico Lagoa dos Ventos é o maior parque eólico atualmente em operação na América do Sul.
O Nordeste brasileiro é responsável por grande parte da produção de energia eólica, mais de 90% da produção nacional, são 828 parques eólicos em operação no país, sendo 725 parques estão no Nordeste. Como principal impacto, os parques eólicos afetam casas, cisternas, estradas, acessos a determinadas regiões e até a saúde mental de moradores, além de problemas na produção agrícola.
Já no sul do estado, o município de São Gonçalo do Gurguéia, localizado a 800 km da capital Teresina, é o local onde está instalado o maior parque solar da América Latina. Como consequência da ganância pelo lucro, a Enel foi responsável pelo rompimento de uma bacia de contenção de águas de chuva das obras do Parque Solar São Gonçalo, em fevereiro de 2020. A principal fonte de água para consumo, local de banho e irrigação de pequenas propriedades rurais foi amplamente atingido, deixando a água do rio imprópria para consumo, e um rastro de destruição no rio Gurgueia, um dos principais do estado e o principal da região. Há relatos, inclusive, de reações alérgicas de moradores que tiveram contato com a água dos rios, devido a contaminação dos mananciais, além de deixar a água do rio imprópria para consumo. Não diferente de outras regiões, o modo de violação se repetiu, e atingiu pelo menos cinco municípios do entorno, São Gonçalo, Corrente, Barreiras, Riacho Frio e Gilbués.
Importante destacar que o município de Gilbués tem uma das maiores áreas de solo degradado do Nordeste e é um dos principais núcleos de desertificação do país, conhecido como o “Deserto de Gilbués”. Nesse território é possível notar em diversas áreas a erosão violenta que cria voçorocas, crateras enormes com solo sem vegetação que pode ser facilmente alterado por enxurradas. Esse impacto é sentido principalmente pelos agricultores familiares da região, onde estão perdendo a sua principal fonte de trabalho e renda devido o solo está se tornando improdutivo.
É importante lembrar que o norte do Piauí, no município de Cocal, aconteceu o rompimento da Barragem de Algodões, em 2009, foram 50 milhões de metros cúbicos de água sendo liberados em poucos minutos causando a morte de nove pessoas no momento do rompimento, no entanto, entre as mortes imediatas e aquelas que ocorreram depois de doenças decorrentes da tragédia, totaliza 24 vidas perdidas. Com o rompimento da barragem, centenas de famílias ficaram desabrigadas.
Passados mais de 10 anos depois da tragédia, o governo do estado afirma ter compensados os atingidos e atingidas pela tragédia por meio de acordo e pagamento de indenização, porém o rompimento da barragem de Algodões trouxe perdas materiais e traumas psicológicos para toda a região, o cenário de devastação ainda é visível, e a vida das pessoas atingidas mudou definitivamente, assim como afetou a principal atividade produtiva da região, a criação de peixes, na qual deixou de existir completamente.
É comum entre as corporações, negar a existência dos sujeitos e das violações, e, assim, é a atuação da empresa Equatorial Energia, responsável pelo abastecimento de energia no estado. Desde a capital do estado e em todos os municípios do interior, a empresa causa danos aos consumidores. Esse que é um serviço essencial, impacta negativamente a vida das famílias.
O Piauí é o estado onde se tem a energia mais cara do nordeste e lidera também um dos piores fornecimento de energia, ou seja, a população paga caro por uma energia de péssima qualidade, esse problema é fruto da privatização do setor elétrico no estado. No ano de 2023, a empresa Equatorial Energia está sob Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI, diante das recorrentes denúncias dos consumidores. Mesmo diante deste cenário, recentemente a empresa anunciou reajuste de mais de 14% na tarifa para os consumidores. Outro impacto sofrido, é a negação ao acesso à Tarifa Social de Energia Elétrica- TSEE por famílias baixa renda, no qual se trata de um direito de um desconto mensal na tarifa de energia para as famílias inscritas no CadÚnico do Governo Federal.
O impacto do alto preço da tarifa de energia é grande na vida e no bem-estar da população piauiense, sobretudo, na vida das mulheres. Entendendo que as mulheres são as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e do trabalho do cuidado, a dedicação em economizar energia também recai sobre essas mulheres, e se traduz em uma sobrecarga mental exaustiva. Ainda que todo esforço seja colocado para racionar a energia elétrica, mas essa é uma luta em vão, a tarifa de energia é uma parte muito significativa nas contas mensais. E quando se fala da má prestação do serviço, diariamente famílias lidam com a constante queda e oscilação de energia, resultando em constantes picos de consumo, queima e perda de eletrodomésticos. Por tanto, ainda que se tenha esforço, a prestadora do serviço é a grande responsável pelo impacto no bolso dos consumidores.
Observando toda problemática em torno da ação das empresas do setor elétrico e do serviço de energia elétrica fornecido para a população, e com o histórico de crimes e violações no estado, desde de 2010 projetos para construção de hidrelétricas no segundo maior rio do nordeste, o rio Parnaíba, estão sendo colocados em pauta. O rio Parnaíba, já conta hoje com a usina hidrelétrica Boa Esperança (UHE Marechal Castelo Branco), localizada no município de Guadalupe, no Piauí, e recentemente o atual governador do Estado volta a negociar a implementação de exploração do Rio para construção de hidrelétricas, o que atingiria pelo menos cinco municípios da região do médio Parnaíba, e também municípios do estado do Maranhão.
O Piauí tem demonstrado que as violações de direitos humanos e a busca desenfreada pelo lucro causam impactos para a vida das pessoas e para o meio ambiente, diante disso é urgente repensar a forma que o território tem sentido o impacto dos grandes empreendimentos. E também a forma como se tem vendido o imaginário de “desenvolvimento” e “energia limpa” onde a população nada aproveita e muito fica com a destruição.