Política de Direitos dos Atingidos é referência para a luta e para acordos judiciais, explicam especialistas e militantes
Publicado 20/12/2023 - Atualizado 20/12/2023
Após décadas de luta, a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB) foi sancionada no último dia 15 de dezembro pelo presidente Lula. O texto estabelece diretrizes para a reparação dos direitos das comunidades atingidas por rompimentos, construções e outros danos decorrentes da instalação desses empreendimentos. A normativa trata tanto das estruturas de armazenamento dos rejeitos de mineração, quanto de reservatórios hídricos. O texto, construído com protagonismo dos atingidos, foi aprovado com vetos a alguns trechos.
Mesmo se tratando de uma conquista histórica e inédita, a atenção ao tema na imprensa voltou-se especificamente para os pontos vetados, gerando dúvidas sobre a efetividade da lei. A grande polêmica foi em torno da retirada do termo “ocorrido” no trecho que determina quais fases e tipos de danos serão contemplados com a normativa. Na imprensa comercial, veiculou-se a notícia de que, com os vetos, a PNAB não contemplaria casos como o de Mariana e Brumadinho.
No entanto, na avaliação de especialistas, o receio não tem motivo. O advogado Artur Colito, membro da Rede Nacional de Advogados Populares, e associado da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, explica que a Constituição Brasileira não permite que novas legislações vigorem sobre casos anteriores a elas.
“De acordo com a Constituição, no seu art. 5º, inciso XXXVI, proíbe-se a retroatividade quando afetar a segurança jurídica das relações sociais, como julgado pelo STF em 1991 na ADI MC 605, que define os limites da retroatividade. Como as empresas que gerem barragens fizeram pressão pelo veto integral da lei, alegando incorretamente sua inconstitucionalidade, é provável que tentariam combater a aplicação da PNAB com base nesses pontos, argumentando um suposta ofensa à segurança jurídica e ao princípio da irretroatividade para seguirem na impunidade por seus crimes”, esclarece.
Na avaliação do MAB, a PNAB poderá ser utilizada de várias formas para casos como Mariana e Brumadinho, já que ambos os crimes se perpetuam, com danos continuados e futuros.
Joceli Andrioli, da coordenação nacional do Movimento, afirma que a PNAB traz reforço para que estes crimes também sejam julgados de acordo com a lei. “O que faltava era justamente determinar e quantificar o que as empresas deveriam pagar e a forma como elas deveriam pagar por estes crimes e a PNAB vem para garantir isso” pontua.
Segundo Thiago Alves da coordenação do MAB em Minas Gerais, o Movimento já apresentou propostas para utilizar a PNAB no caso dos atingidos da bacia do Rio Doce.
“É possível ter a PNAB como referência para várias situações para além dos pedidos judiciais, como o critério para se afirmar a quantidade de atingidos que devem ser considerados na Repactuação e toda a forma de participação durante o acordo e depois dele. A lei prevê a criação de comitês locais para cada obra ou rompimento e isso já pode ser encaminhado. Inclusive já pautamos na Comissão Externa da Câmara dos Deputados para que o Comitê estadual Pró-Rio Doce seja totalmente reformulado ou criado outro a partir do que é indicado pela PNAB”, conclui.
Aprovada após os crimes, política de direitos estadual já garantiu direitos nas bacias
Em 2021, após o rompimento na Bacia do Paraopeba e com a recorrência deste tipo de crime em Minas Gerais, os atingidos pressionaram o legislativo e executivo mineiro a aprovarem a Política Estadual de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PEAB). A legislação, assim como a normativa nacional, não pode vigorar sobre casos já ocorridos, mas tem servido de suporte para tratar dos direitos e reparação nestes territórios.
A defensora pública de Minas Gerais Carolina Morishita explica que na bacia do Rio Doce, por exemplo, a garantia das Assessorias Técnicas Independentes (ATI’s) só foi possível graças à políticas de direitos estadual.
“Desde 2018, o direito às ATI’s era garantido por um acordo, mas nunca tinha sido executado. Quando a PEAB chegou, nós conseguimos demonstrar que não garantir as assessorias era o descumprimento de um dispositivo legal. Talvez as ATI’s não seriam garantidas sem PEAB”, exemplifica.
A PEAB também foi citada nas petições do Ministério Público de Minas Gerais no contexto do conflito causado pela barragem Doutor, da Vale, no distrito de Antônio Pereira, em Ouro Preto (MG), onde também foi conquistada a Assessoria Técnica Independente.
Quase 3 anos após a implementação da PEAB, o Governo Zema ainda não regulamentou a lei. O MAB ainda denuncia que o grupo de trabalho criado para regulamentar a lei não conta com a participação dos atingidos.
A expectativa da defensora é que com a PNAB muitos outros direitos avancem nestes territórios e também em outros casos por todo o Brasil. “A existência da lei em si abre novos espaços interpretativos e de diálogos e demonstra um compromisso do Estado Brasileiro com esta pauta. É um ganho com certeza para os casos de Mariana e Brumadinho”, declara.
Décadas de luta
A Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens é pauta do Movimento dos Atingidos por Barragens há mais de 30 anos. Em 2010, o Movimento constituiu um grupo de trabalho para elaborar as diretrizes da proposta apresentada ao Congresso Nacional. O texto foi construído por atingidos de todo o Brasil diante das demandas dos territórios e das distintas violações sofridas, como os deslocamentos forçados nas barragens de Itaipu (PR), Tucuruí (PA) e Sobradinho (BA).
Na avaliação de Thiago Alves, a PNAB é uma conquista histórica dos atingidos, mas não cessa ou sana a luta por justiça e garantia de direitos a estas populações.
“A questão dos passivos socioambientais sempre foi importante para o MAB e precisamos seguir a luta para garantir mecanismos de Estado que façam as empresas pagarem pelos prejuízos que já causaram. Agora, em cada região, precisamos estudar a lei e apontar as possibilidades de luta tendo a PNAB como instrumento e buscando pautar outras formas de pressão e garantias de direitos, inclusive no contexto dos crimes da mineração ”, ressalta.
Desde agosto deste ano, o MAB está em jornada de lutas denunciando os danos sofridos pelas populações das bacias do Rio Doce e Paraopeba. Para o mês que vem, quando se completam 5 anos do crime da Vale em Brumadinho, os atingidos estão organizando uma série de mobilizações que pautam sobretudo a execução do fundo de microcrédito e recursos para projetos comunitários (Anexo 1.1 do acordo) e a criação de um protocolo de saúde no SUS para o atendimento dos atingidos e atingidas.
O rompimento da barragem da Vale na mina Córrego do Feijão derramou 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos tóxicos na Bacia do Paraopeba e Três Marias e ceifou 272 vidas. No último dia (13), o Tribunal Regional Federal da 6° Região deu início ao julgamento do pedido de habeas corpus do presidente da mineradora à época do rompimento, Fábio Schvartsman, que tenta se retirar do processo de homicídio. Três vítimas ainda não foram localizadas.